Maravilhas do Mundo Prog: The Flowers – I’m Dead [1969]

Maravilhas do Mundo Prog: The Flowers – I’m Dead [1969]
Por Mairon Machado
Primeiramente, não confunda o nome da banda da capa que está vendo acima. Apesar da mesma ser da Flower Travellin’ Band, o grupo que registrou nossa maravilha dessa semana não foi o homenageado da semana passada, mas sim o seu embrião, o The Flowers.
Como vimos,  a Flower Travellin’ Band destruiu o cenário musical japonês através de um álbum seminal, Satori, lançado em 1971 e que até hoje ainda causa seus estragos. O grupo capitaneado pelo produtor Yuya Uchida, ficou poucos anos caminhando sobre a Terra, suficientes para deixar seu legado como uma das mais importantes bandas da história do hard prog nipônico.
Mas, antes de se envaretar como produtor musical e conceber a suíte “Satori”, Yuya já havia feito parte de uma pequena obra-prima da geração psicodélica de Tóquio gravada pelo The Flowers. O nome da maravilha: “I’m Dead”. 
Antes de entrarmos nos méritos de “I’m Dead”, voltamos no tempo para percorrer um pouco da história de Uchida. Nascido em 17 de novembro de 1939 na cidade de Kobo, durante a adolescência, nosso nobre escorpiano teve contato com o rock ‘n’ roll de Elvis Presley. A performance do americano encantou os olhos do jovem japonês, que resolveu montar seu primeiro grupo em 1957, o qual foi batizado de Blue Caps. A primeira apresentação de Uchida foi em  1959, no Nichigeki Western Carnival. Depois, mudando de grupo como que de cueca, Uchida se fixou como músico do Takeshi Terauchi and the Bluejeans, onde fez diversas (e raras) gravações.  
Nesse período, Uchida também começou a desenvolver sua carreira como artista de cinema, a qual ele iria fazer sucesso posteriormente nos anos 70 e 80, participando de um filme chamado “Subarasii Akujo” em 1963. Entre 1965 e 1968, gravou mais cinco filmes, todos sem grande sucesso.
Alguns álbuns de Uchida pré-The Flowers
Com a chegada da invasão britânica, a cabeça de Uchida mudou completamente, passando a virar um seguidor nato do The Beatles, sendo que uma homenagem aos Fab Four foi construída e registrada em forma da canção “Welcome Beatles”, quando os mesmos fizeram sua visita ao Japão em 1966.
Porém, Uchida não conseguia ninguém para montar um grupo na linha do som dos garotos de Liverpool, e como solução, mandou-se para a europa. Lá, deparou-se com os novos sons de The Who, Jimi Hendrix, Cream, Janis Joplin e toda a geração flower-power que brotava tanto no Reino Unido quanto na América, além de tomar os primeiros ácidos e ver o nascimento da psicodelia londrina no famoso UFO Club.
Alucinado com as experiências europeias, Uchida voltou para o Japão e decidiu se concentrar na construção de um grupo psicodélico nos moldes do que havia ouvido e visto no velho continente. Apesar da conservadora visão sobre música dos japoneses, o músico decidiu inovar, enfrentando a tudo e a todos para mostrar sua música.
Toshi Ichiyanagi, o inventor de “I’m Dead”
Apresentando o projeto inovador para diversos ícones japoneses, Uchida acabou recebendo o apoio de Toshi Ichiyanagi, curiosamente ex-marido de Yoko Ono (futura viúva de John Lennon). Ichiyanagi estava viajando com psicodélicos e alucinógenos, liderando uma ópera que misturava orquestra sinfônica e rock’n’roll. Ao conhecer as ideias do garoto, propôs a ele a gravação de uma canção que fosse inspirada no quadro I’m Dead, de Tadanori Yokoo. Detalhe, essa canção deveria ter 30 minutos!
Uchida adorou a ideia, e como havia acabado de montar uma banda ao lado de Hiroshi Chiba (vocais), Hideki Ishima (guitarras), Katsuhiko Kobayashi (guitarras), Ken Hashimoto (baixo) e George Wada (bateria), partiu para o processo de composição da pequena obra-prima pedida por Ichiyanagi. Com a entrada da jovem cantora Remi Aso, o The Flowers nascia praticamente a fórceps, entrando nos estúdios da NHK Radio em meados de 1969 para registrar em um único take, uma das canções mais piradas da história da humanidade, a qual é considerada o grande épico psicodélico do Japão.
Compacto do The Flowers
“I’m Dead” começa com uma soturna introdução, onde entre batidas nos pratos, as guitarras fazem um tema macabro utilizando-se do recurso da variação do volume. Ishima passa a variar a afinação das cordas da guitarra, enquanto Wada delira nos pratos, e então, o wah-wah surge na guitarra, querendo abrir espaço para a nave viajante do The Flowers sair do chão.
O tema inicial é repetido pelo wah-wah, e depois de acordes soltos da guitarra, com Hashimoto tocando algumas notas graves no baixo, guitarra e prato executam uma curta sessão percussiva, para então uma lisérgica guitarra surgir solando ao fundo, enquanto Wada faz rolos entre tons, bumbo e caixa. Notas aleatórias do piano assombram o quarto, seguidas da marcação de um metrônomo ditando o ritmo das batidas de Wada no bumbo.
Um pequeno solo de wah-wah e o baixo surge para Ishima solar alucinadamente, com uma guitarra extremamente lisérgica sobre o ritmo simples mas envolvente de baixo, bateria e guitarra. As notas ácidas de Ishima injetam adrenalina na canção, que ganha delirantes minutos de soberba maestria psicodélica, passeando por temas com wah-wah, volume e notas totalmente dispersas, além de agressivas batidas nas cordas do instrumento.
Ishima e Kobayashi alternam-se nos solos, e com o baixo marcando o ritmo, a bateria passa a fazer diversas viradas, voltando para a soturna introdução, com Ishima e Kobayashi agora solando em cima de escalas bluesísticas. A parte percussiva é uma espécie de embrião do que Jamie Muir faria no King Crimson, e a guitarra de Ishima literalmente frita as cordas com notas totalmente discernes e enlouquecedoras. Essa sessão da canção é muito viajante e tenebrosa.
Depois dos minutos apavorantes de guitarra, baixo e percussão, onde a guitarra uiva de dor, wah-wah e volume elaboram um tema para explodir no arrepiante sustain das guitarras, com uma barulheira infernal de bateria, baixo, guitarra, e um Chiba gritando louca e apavoradamente ao fundo. De arrepiar os cabelos de um calvo!
A lisergia volta no solo de Kobayashi, cercado de barulhos e percussão, variando notas muito agudas e outras extremamente graves, enquanto Ishima faz uma estranha marcação na sua guitarra. Novamente o piano aparece, e como uma locomotiva invadindo sua casa, o The Flowers leva “I’m Dead” para a insanidade total, com Kobayashi solando sob o ritmo avassalador de Wada, as escalas complicadíssimas de Hashimoto e da torturante marcação de Ishima, além dos gritos alucinados de Chiba, em um frenêsi diabólico e puramente insano.
Entregue à diabólica tortura mental que o The Flowers construiu, seu corpo aterrisa em terra firme, relaxando com o retorno ao início da canção, onde a guitarra expele seus últimos gritos, com a percussão fazendo o enterro dos ossos resultantes da macabra insanidade cometida minutos antes, e como um coveiro sozinho dentro de um cemitério isolado da humanidade,  entre tosses e gritos, colocar a pá de cal no túmulo dos instrumentos com orgísticos gritos e barulhos das guitarras de Ishima e Kobayashi, bem como do piano e da percussão, em uma piração jamais vista na música japonesa, e por que não, na história do rock progressivo, onde os instrumentos parecem representar a dor de alguém que está sendo enterrado vivo, encerrando a canção com belos harmônicos cobrindo as ácidas notas da guitarra, soluçando seus últimos suspiros.
Capa de From Pussys to Death in 10.000 Years Freakout
Essa maravilhosa sessão instrumental de 27 minutos acabou sendo escondida dos mortais por mais de 30 anos. Ao que parece, Ichiyanagi achou que a canção era tão delirante e hipnótica que ninguém ia querer comprar aquilo, ficando a fita master da gravação da mesma perdida no acervo de Uchida, até que em 2002, saiu na coletânea da Flower Travellin’ Band intitulada Music Composed Mainly By Humans (capa que ilustra a matéria). 
Antes disso, ela já havia saído de forma clandestina no bootleg From Pussys to Dead in 10.000 Years Freakout, o qual também contém outras raridades ligadas ao The Flowers, com destaque para uma espetacular apresentação ao vivo do grupo no Rock’n’Roll Jam 70 fazendo uma estonteante e definitiva versão para a recém lançada “How Many More Times” (Led Zeppelin), com uma interpretação vocal fenomenal de Remi Aso.
A fabulosa estreia vinílica do The Flowers: Challenge
Após a gravação de “I’m Dead”, Uchida registrou com o The Flowers o fabuloso Challenge (1969), com a capa contando com todos os Flowers nus. Recheado de covers de canções ainda não conhecidas na terra do sol nascente, mas que hoje são sucessos mundiais, esse LP apresenta clássicos como “Piece of My Heart” (Big Brother & the Holding Company)”, “Hey Joe” (Jimi Hendrix)  e “White Room” (Cream), destacando também a bela “Hidariashi No Otoko”, única canção composta por Uchida e que é uma pequena amostra da potência psicodélica de “I’m Dead”, até montar a Flower Travellin’ Band e estourar no Japão.

9 comentários sobre “Maravilhas do Mundo Prog: The Flowers – I’m Dead [1969]

  1. Parabéns mais uma vez pela escolha do tema, Mairon. Sou fã do Uchida e ele teve uma carreira fascinante não apenas ao lado da FTB. Tem umas coisas no entanto que ainda não consegui descobrir direito: uma diz respeito ao fato do Uchida ter se tornado amigo de Lennon e que foi visitá-lo em sua estada na Inglaterra. O que a gente encontra de informações são todas repetições disso que acabei de escrever, ninguém se animou a discorrer sobre o assunto, infelizmente. Também dizem que ele gravou com o Zappa nos anos 70 e com o Ventures. Quanto ao Ventures, tudo bem, porque inclusive ele tem um disco lançado "Yuya meets The Ventures", mas do Zappa com ele não achei nada. Você saberia de algo, pequena grande luz que ilumina as obscuridades do rock?

  2. Bom, parece que o Yuya Uchida and 1815 Super Rock'n Roll Band abriu um show do Zappa no Japão em 1976, mas daí a tocar com o próprio tem uma diferença enorme. Continuamos caçando…

  3. Claro Gaspa, grande sábio detentor da sabedoria para ensinar a criação da iluminação às obscuridades do rock, do que eu já li sobre Uchida, a relação com Lennon mais próxima foi que na época que Ichiyanagi foi apresentado a Uchida, ele já estava sem a Yoko. Quando Uchida esteve no Japão, ele conheceu a Yoko no mesmo evento q o Lennon conheceu ela. Parece que ouve uma pequena confraternização, e nela, o Lennon lembrou-se de Uchida apresentando Welcome para os Beatles, dai eles virando "conhecidos" mas não amigos (mais pela Yoko, q logo em seguida começou sua relação com o beatles)

    Já sobre Zappa, em discos oficiais não tem citaçao em lugar nenhum ao nome de Uchida. Até vou olhar com calma hoje à noite, mas não lembro de nada com Uchida nem na época dos Mothers, nem depois. As informações na internet dizem que foi em meados da década de 70. Modéstia a parte, eu tenho todos os vinis do zappa até 1988, então, se tiver o nome de Uchida em alguns deles, trarei amanhã

    Abraço, e novamente, obrigado pela inspiração nesse o primeiro texto sobre Uchida

  4. Obrigado, Mairon
    Você pesquisa daí que eu chuto daqui. Incrível como as informações vão sendo distorcidas com os pitecos dos internautas. Mesmo no livro do Julian Cope sobre o rock japonês, que tem um capítulo enorme sobre a FTB, não me lembro dele sequer citar essa "amizade" com o Lennon. E já está até na wikipédia (bom, errr, claro!)!!!!

  5. É, essa da wikipedia foi chupinhada do discogs (ou vice-versa), e a confiança é zero

    A informação que obtive foi de uma revistinha antiga, a pop som. Nao tenho o numero, infelizmente, mas a capa era o Hendrix

    Meus "amontoados" as vezes me salvam

  6. Gaspa, olhei com calma disco por disco do Zappa nos anos 60 e 80. Tirando Studio Tan, Orchestral Favorites e Sleep Dirt, que meus vinis não possuem encarte, e o Waka-Jawaka, que a capa ta bem detonadinha, nao dando para ler os créditos, os outros vinis dessa época não tem nenhuma citação à Uchida.

    Será que Zappa não participou de algum disco do Uchida?

    1. TALVEZ esse tal quadro na verdade seja o “Made in Japan, Tadanori Yokoo, Having Reached a Climax at the Age of 29, I Was Dead” um dos trabalhos mais famosos do cara

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