Resenha de Show: Dialeto e David Cross (Blues Bossa Jam Session, 30 de Outubro de 2025)


Por Micael Machado
Em 2017, o trio paulistano Dialeto (formado por Nelson Coelho na guitarra, Gabriel Costa no baixo e Fred Barley na bateria – os dois últimos, também com passagens pelo Violeta de Outono) lançou o álbum Bartók In Rock, no qual faziam adaptações “prog rockers” para peças do compositor húngaro Béla Bartók, que viveu entre 1881 e 1945. Para participar do disco, o trio convidou o violinista inglês David Cross, mundialmente conhecido dentre os fãs de rock progressivo por sua passagem pelo King Crimson, entre 1972 e 1974. Os quatro músicos chegaram a fazer alguns shows de divulgação do trabalho, os quais resultaram no álbum ao vivo Dialeto – Live With David Cross, lançado em 2018, o qual foi minha introdução ao trabalho do Dialeto. Pois agora, em 2025, o trio e Cross se uniram novamente para dois shows no Brasil, um acontecido dia 28 de outubro no Teatro Sabesp Frei Caneca, em São Paulo, e outro, dia 31 do mesmo mês, no Teatro do Bourbon Country, em Porto Alegre, ambos dentro do projeto Blues Bossa Jam Session.
Com o apoio do Ministério da Cultura do Governo Federal, a ideia do projeto é “celebrar a riqueza do jazz e suas fusões com o blues, a bossa nova, o soul e o rock”, e, entre 13 de agosto e 12 de dezembro (em São Paulo, entre 15 de agosto e 17 de novembro) trará (ou já trouxe) nomes nacionais e internacionais aos palcos citados acima, dos quais a união entre o Dialeto e o ex-músico do King Crimson foi a quarta apresentação do projeto na capital gaúcha. Com preços de ingressos bastante acessíveis (a categoria chamada “inteira popular” custava menos de 40 reais), a iniciativa foi uma bela oportunidade para a população da capital gaúcha curtir espetáculos de nomes que, quase nunca ou raramente, vêm até o sul do país, como a cantora Vanessa Moreno ou a reconhecidíssima Banda Black Rio. Infelizmente, na noite mais “prog” do projeto, o público foi bastante reduzido, sendo que aqueles que tinham ingressos para os setores mais “distantes” do palco (chamados “plateia alta” e “mezanino”) foram “convidados” pela administração do evento a terem um “upgrade” em suas posições, ficando, desta forma, no setor “plateia baixa” (bem mais perto do palco que os demais setores), o qual, mesmo com esta alteração, não chegou a lotar…
Exatamente na hora marcada (ah, a velha pontualidade britânica), Fred Barley e Gabriel Costa entram no palco, e o show inicia com Gabriel passando uma alavanca de distorção (separada do instrumento) no braço do baixo, num efeito conhecido como “glissando” (algo que Fabio Golfetti, do citado Violeta de Outono, costuma fazer com frequência na guitarra) por alguns minutos, com Nelson Coelho entrando em cena já durante a execução desta introdução, para que a guitarra e a bateria, aos poucos, se juntassem à melodia executada pelo baixo. Cross entra por último no palco, se unido aos outros três na longa e atmosférica introdução de “Roumanian Folk Dances 3”, faixa que também abre o disco ao vivo citado acima, e que, nesta noite, só foi ganhar “corpo” depois de uns bons cinco minutos de uma climática construção introdutória. Logo em seguida, os quatro emendam “Roumanian Folk Dances 4”, onde Nelson e David executam linhas melódicas “gêmeas” em seus instrumentos, em uma faixa com um clima “oriental” e meio “misterioso”, com os dois instrumentistas também “duelando” em solos alternados mais para o final da mesma.

Nelson vai então ao microfone dar o tradicional “Boa Noite”, e dizer que “é muito legal poder estar com o Dialeto em Porto Alegre pela primeira vez, ainda mais em companhia do grande David Cross”, para muitos aplausos da plateia, anunciando depois “Mikrokosmos 78”, que inicia com Cross sozinho ao violino por uns bons três minutos, antes do Dialeto se unir a ele em mais uma melodia com “ares’ orientais, onde a guitarra de Nelson soou um pouco mais “pesada” do que nas músicas anteriores, e onde ele e Cross novamente trocaram “duelos” musicais em seus respectivos instrumentos ao longo da faixa. Terminada a música, Nelson volta ao microfone, e “convoca” Gabriel a “explicar pro pessoal” como funcionam os “mikrokosmos” de Bartok, e o baixista explica então que eles são um conjunto de peças numeradas criadas para serem um “tutorial” de ensino de piano, que começam “bem facinhas” no número um, ficando mais complicadas à medida que a numeração aumenta, dizendo então que iriam tocar “Mikrokosmos 113”, que “já não é tão fácil assim, mas vamos tentar fazer aqui”. Certamente a faixa mais rápida e “agitada” até então na noite, a música foi um deleite para os apreciadores de técnica e musicalidade dentro do rock (especialmente o progressivo), com Nelson e David se alternando nos momentos de destaque sob os holofotes. Em seguida, outra composição intrincada musicalmente veio na forma de “An Evening in the Village”, que, assim como no disco ao vivo, foi seguida pela cadenciada “The Young Bride”, outra bela composição, alternando partes mais “melódicas” a passagens mais “pesadas”, especialmente da guitarra de Nelson.
Com pouco mais de quarenta minutos de show, Nelson anuncia Fred na bateria e vocais da próxima música, e um ritmo eletrônico pré-gravado é acionado pelo baterista em um “kit” eletrônico ao lado de seu instrumento, com esta marcação servindo de base para um longo e belo improviso de Cross, seguido por outro de Gabriel, o qual, após uma breve pausa do baixista, se transforma nas notas iniciais de “Exiles”, a primeira composição do King Crimson apresentada na noite. Ao seu término, David foi pela primeira vez ao microfone, agradeceu pela oportunidade de estar de volta ao Brasil, especialmente ao lado do Dialeto, e disse que “vocês (o público presente) é que são o verdadeiro espetáculo essa noite, e merecem uma salva de palmas”, sendo ovacionado com palmas e assovios da plateia. Gabriel, então, assumiu os microfones para cantar “Tonk”, faixa da carreira solo de Cross, que passou meio despercebida no meio do repertório da noite (além de ser uma das poucas a ter menos de quatro minutos de duração apresentadas pelo quarteto).
Com Gabriel voltando a usar a alavanca no braço de seu baixo, e Fred “atacando” os itens de seu kit com as palmas da mão, os dois músicos criaram uma “base” onde, aos poucos, Gabriel começou a executar uma melodia repetitiva, sobre as quais Nelson e Cross surgiram com uma melodia facilmente reconhecida pelos fãs do King Crimson como sendo o início de “The Talking Drum”, a qual, entre muitos improvisos de Cross (acompanhado pela guitarra de Nelson) levou pelo menos uns quatro minutos antes de chegar em sua parte mais “agitada” na sua seção intermediária. Assim como no disco de estúdio do KC, “…Drum” foi emendada com a segunda parte de “Larks’ Tongues in Aspic”, ainda que a transição entre as duas não tenha sido com as “microfonias” da versão do Rei Escarlate, mas sim com alguns gritos e vocalizações dos quatro instrumentistas. Nesta, confesso que senti falta de um pouco de peso e distorção na guitarra de Nelson (que, para usar um termo frequentemente associado à tonalidade de Robert Fripp, não estava tão “esquizóide” quanto o timbre que o mestre das seis cordas do Rei Escarlate costuma usar). Mesmo assim, “Larks’…” foi um arregaço, e algo emocionante de se ver e ouvir, ainda mais quando, na parte em que a guitarra e o baixo fazem uma melodia “dobrada” ao mesmo tempo, Cross veio com um dos melhores solos da noite, quase atonal, em uma “barulheira” digna dos tempos em que tocava ao lado de Fripp e companhia. Fantástico!

Como, desde “An Evening in the Village”, o quarteto vinha seguindo a ordem do disco ao vivo na apresentação, sentei e relaxei aguardando ouvir a versão da turma para a fantástica “Starless”. Porém, fui surpreendido pelo início de “Easy Money”, onde Fred assumiu, mais uma vez, os vocais, e Cross chegou a sair do palco na primeira parte, voltando após a segunda citação do nome da música (e um longo solo de Nelson) para realizar mais um belo (e longo) improviso em seu violino, antes do retorno da parte cantada e o final da faixa (infelizmente, sem as risadas “malucas” da versão de estúdio). Nelson apresentou novamente a banda e fez os agradecimentos “de praxe” em shows como este, antes do quarteto, finalmente (para mim, ao menos) iniciar sua versão para “Starless”, a meu ver, a maior “maravilha do mundo prog” já registrada pelo King Crimson. Aparentemente, não era apenas eu o fã da canção presente ao teatro, pois foi, de longe, a faixa que recebeu a maior ovação do público em seus primeiros acordes, sendo, penso eu, aquela que o pessoal “reconheceu” mais facilmente quando iniciou. Ainda que os vocais de Fred ficassem longe da potência e alcance daqueles registrados por Wetton nos anos 70 (e, afinal, quem conseguiria chegar perto?), ouvir esta suíte ali, ao vivo, “na minha cara”, pela primeira vez “em todos esses anos nesta indústria vital”, foi de levar às lágrimas qualquer verdadeiro fã do King Crimson presente ao teatro naquela noite.
Assim como na carreira do Rei Escarlate na década de 1970, depois desta faixa, não havia nada mais a ser feito que pudesse superar a grandiosidade daquilo que havia sido executado no palco naquela noite, e o quarteto se uniu na frente do palco para se despedir do público com um “obrigado pessoal, obrigado Porto Alegre” de Nelson, sendo que a plateia, aos gritos de “mais um, mais um”, “conseguiu” trazer os quatro músicos de volta ao palco, com Nelson anunciando que fariam mais uma canção para encerrar a noite, e Cross agradecendo mais uma vez ao público, dizendo ter sido uma honra estar presente em Porto Alegre naquela data (ele que pareceu, ao longo de toda a apresentação, estar super à vontade no palco, “regendo” entradas e saídas dos companheiros durante as músicas, e chegando a executar algumas “dancinhas” meio desengonçadas de vez em quando, e, pelo menos por duas vezes, ficando bem perto de se atrapalhar com as próprias “acrobacias” e quase levar um tombo épico – algo que, felizmente, não chegou a acontecer). Quando o quarteto se posicionou para iniciar o bis, confesso que fiquei aguardando por “21st Century Schizoid Man”, música da qual Cross não participa da versão de estúdio, mas foi muito executada por ele durante seus anos ao lado de Fripp e companhia. Mas o que ouvi, para minha surpresa, foram os acordes iniciais de “The Great Deceiver”, faixa que abre o álbum Starless and Bible Black, e que nem o King Crimson costumava executar com tanta frequência ao longo dos anos 1970. Novamente com Fred nos vocais (tendo a ajuda de Nelson e Gabriel nos refrãos), a faixa ficou bem próxima da versão original, e seu final levou àquela que foi, para mim, a maior (e melhor) surpresa da noite: a execução de “Red”, minha faixa favorita na discografia do Rei Escarlate, e que não conta com Cross em sua versão de estúdio. Mesmo assim, ele conseguiu “encaixar” seu violino ao lado da guitarra de Nelson, em uma interpretação magistral deste clássico que, acredito, tão cedo não sairá da minha memória.

Ainda houve tempo para encontrarmos os músicos no pós-show, onde tive a oportunidade de autografar alguns itens e agradecer a um extremamente simpático e receptivo David Cross por toda a boa música que ele me proporcionou escutar ao longo dos anos, além de trocar uma ideia e pegar alguns autógrafos com o pessoal do Dialeto, além de falar um pouco com Gabriel e Fred sobre o tempo que eles passaram ao lado do Violeta de Outono (que, infelizmente, eu ainda não tive a oportunidade de assistir ao vivo, embora seja um grande fã desde a década de 1980). Todos foram muito simpáticos e atenciosos não só comigo, mas como todos que estavam ali para lhes agradecer por uma noite fantástica de rock progressivo em Porto Alegre. Pelo menos até aqui, certamente, foi o show do ano na capital gaúcha. Mas ainda temos dois meses pela frente até 2026, então…
Set List:
1. Roumanian Folk Dances 3
2. Roumanian Folk Dances 4
3. Mikrokosmos 78
4. Mikrokosmos 113
5. An Evening in the Village
6. The Young Bride
7. Exiles
8. Tonk
9. The Talking Drum
10. Larks’ Tongues in Aspic, Part Two
11. Easy Money
12. Starless
13. The Great Deceiver
14. Red


