Tralhas do Porão: Cilibrinas do Éden

Tralhas do Porão: Cilibrinas do Éden

Por Mairon Machado

E há um mês, perdíamos Rita Lee. A Rainha do Rock nacional partiu para o paraíso da música, unindo-se a tantos outros gigantes que também deixaram de criar obras por aqui, sendo mais recentemente Tina Turner e Gal Costa por exemplo, mas com um legado atemporal para gerações e gerações de admiradores de música no Brasil (e por que não no mundo) inteiro.

Lucia Turnbull (a esquerda) e Rita (a direita). Cilibrinas em ação

A carreira de Rita e repleta de altos, muitos altos, baixos, e também muitos baixos. Ao sair dos Mutantes, em 1973, talvez ali tenha diso seu ponto de inflexão mínimo em toda sua carreira. Sem rumo, Rita uniu-se a Lucia (Lucinha) Turnbull, uma amiga que já havia participado de alguns vocais de apoio em duas canções de Hoje é O Primeiro Dia do Resto das Suas Vidas, o segundo disco solo de Rita: “Vamos Tratar da Saúde” e “De Novo Aqui Meu Bom José”.

Lucia, nascida em 22 de abril de 1953 na cidade de São Paulo, foi muito cedo para Londres. No ano de 1969, estudou na escola International House. Lá, ela teve aulas com o professor canadense Ken Wilson, o qual possuía um trio junto com a esposa e com outro colega de escola, o sul-africano Mike Klein. Aos fins de semana, o trio fazia shows folk, e Lucia entrou na banda, com apenas 16 anos. Eles eram o The Solid British Hat Band, que acabou tendo diversas outras formações após o retorno de Lucia ao Brasil. Um dos músicos que passou pela Solid British foi Ritchie.

Lucia (a direita) com a The Solid British Hat Band
O raríssimo Either/Or, com participações (não-creditadas) de Rita e Lucinha

No Brasil, e fã de Beatles, Lucia começou a andar com o pessoal dos Mutantes. Em 1972, voltou à Inglaterra junto de Rita e Liminha, encontrando novamente seu amigo Mike. Assim, participam do projeto Everyone Involved, registrando o raríssimo Either/Or, disco independente que era apenas para ser presenteado aos fãs, jamais comercializado.

Voltando novamente ao Brasil e logo após a saída da Rita, uniram-se, criando então as Cilibrinas do Éden. O nome, um tanto quanto psicodélico, foi ideia de Rita, que imaginou uma mistura suave, delicada e acústica com vocais femininos, violões, viola caipira, flauta, sinos e, por que nao, cantos de pássaros. “Afinal, se Alice cooper faz tudo aquilo no palco, estraçalha bonecas e mata frangos, é por que sua música é falha. A originalidade hoje, está na simplicidade“, disse Rita justificando sua nova faceta musical.

A dupla conseguiu um contrato com a Phillips, que já havia produzido os álbuns anteriores de nossa camaleoa, e foi colocada como uma das principais atrações da gravadora em um evento gigantesco, a Phono 73. Mais precisamente no dia 10 de Maio de 1973. Era a abertura do evento, que serviu para inaugurar oficialmente o Palácio de Convenções do Anhembi, em São Paulo. Porém, o que era para ser uma nova virada na carreira de Rita, naufragou. A dupla foi colocada para abrir o antigo grupo de Rita, Os Mutantes, que na época contavam com o maior arsenal sonoro do Brasil, tanto que seu show era batizado de 2000 Watts de Rock. A dupla subiu (ou foi empurrada para o palco, dado o nervosismo de Lúcia) vestindo roupas já ultrapassadas para 1973. Rita usava uma cartola alta, enfeitada por uma pluma preta. Já Lúcia entrou com duas enormes asas de anjo e roupas coloridas. O repertório foi totalmente baseado em novas composições de Rita, fugindo do que já havia sido gravado com sua antiga banda. Resultado: fiasco total e o fim do projeto logo na sequência.

Apresentação das Cilibrinas no Phono 73

Porém, a dupla seguiu adiante, primeiro com o Baseado Nelas (trazendo junto a irmá de Lucia, Lilly Turnbull), e unindo-se ao pessoal da Lisergia, banda formada em 1971 pelo guitarrista Luis Sérgio Carlini, o baixista Lee Marcucci e o baterista Emilson Colantonio com o nome Coqueiro Verde. Em 72, mudam para Lisergia, influenciados pelo uso de muitos alucinógenos, quando foram descobertos por Rita, que os convidou para acompanharem a dupla com Lúcia. Com sua empresária Mônica Lisboa, Rita montou o show Tutti Frutti, que acabou batizando a banda como Tutti Frutti, show que ficou em cartaz no Teatro Ruth Escobar, ão Paulo, de 15 de agosto até 16 de setembro de 1973, para o lançamento da nova carreira da cantora.

Em dezembro, a Tutti Frutti entrou no estúdio Eldorado para gravar seu primeiro LP. Inicialmente planejado para ser lançado sob o nome Tutti Frutti, o disco, produzido pelo então baixista dos Mutantes Liminha, acabou sendo arquivado, ganhando as mentes dos ouvintes apenas nos anos 2000, em um bootleg chamado Cilibrinas do Éden que saiu em vários países (principalmente na Europa).

Este disco começa com “Cilibrinas do Éden”. uma faixa pretensamente experimental, com barulhos diversos, notas de violão totalmente aleatórias e vocalizações muito malucas. Com “Festival Divino” a coisa começa mesmo, com Rita tocando uma linda canção, acompanhada apenas de violão, mas com momentos bastante experimentais em escalas de blues. Chegamos a ótima “Bad Trip (Ainda Bem)”, onde os vocais da dupla misturam-se aos dedilhados de violão e as boas passagens elétricas, mas com destaque mais que especial para o trecho instrumental onde violões, guitarra e baixo surgem tocando uma melodia fantástica, e mostrando como Rita era uma ótima instrumentista. Destaque também para mais um belo solo de guitarra, e pela impactante presença do moog. A primeira estrofe da letra desta canção acabou aparecendo em “Shangri-Lá” (do álbum Rita Lee de 1980)

As inspirações progressivas de “Vamos Voltar Ao Princípio Porque Lá É O Fim” parecem saídas do Yes de Tales From Topographic Oceans, assim como “Paixão da Minha Existência Atribulada”, mais uma boa faixa onde os violões surpreendem no dedilhado, e com o baixão e o moog também marcando presença. O lado A encerra com “Gente Fina É Outra Coisa”, faixa que lembra bastante o que Rita apresentaria posteriormente junto à Tutti Frutti, e que em 1977, teve sua letra totalmente reformulada, batizada agora de “Locomotivas”, e que foi tema da novela de mesmo nome.

Mais um pouco das Cilibrinas no Phono, com Lucia em destaque

O Lado B abre com o rock cru de “Nessas Alturas dos Acontecimentos”, faixa pesada onde a s guitarras estão tomando conta, altíssimas, e claro, com altas doses de experimentação, seguida do rockzão de “E Você Ainda Dúvida”, que ficou conhecida pela apresentação da Tutti Frutti no Festival Hollywood Rock de 1975, e que aqui ganha ainda uma citação a “Tutti Frutti”, de Little Richard. A versão de “Minha Fama de Mau”. de Erasmo e Roberto Carlos, que Rita veio a gravar com o próprio Erasmo no ótimo Erasmo Carlos Convida … (1980), também está presente, bastante roqueira, com citação a “A Hard Days Night” (The Beatles)”, seguida pelo original de “Mamãe Natureza”, que recebeu poucas mudanças para a versão final, que aparece em Atrás Do Porto Tem Uma Cidade (1974), o primeiro disco oficial da Tutti Frutti. Vale ressaltar que “Minha Fama de Mau” e “E Você Ainda Dúvida” possuem aplausos no final, provalvemente inseridos para parecer que foram gravadas ao vivo.

Vale lembrar, por curiosidade, que “Nessas Alturas Dos Acontecimentos” e “Paixão Da Minha Existência Atribulada” já haviam aparecido na coletânea Os Grandes Sucessos de Ritta Lee (1981), sendo que ambas NUNCA foram um sucesso. Outra curiosidade é que encerrando o álbum chamado Cilibrinas do Éden estão duas canções de Rita com os Mutantes, “Hoje É O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida”, que é um pouco diferente da versão apresentada no disco-homônimo, e “Mande Um Abraço Pra Velha”, retirada do compacto do 7° Festival Internacional da Canção, e uma das Maravilhas Prog que o grupo já fez.

Rita, Lucinha (acima), Lee Marcucci, Luis Carlini e Emilson Colantonio. A Tutti Frutti em 1974

O que ficou para a história é que este acabou se tornando um novo caminho para Rita. Mais lapidado e maduro, o projeto deu origem a uma das maiores bandas do rock nacional, a Tutti Frutti, que levou o nome de Rita para patamares jamais vistos anteriormente, e lançando no mínimo três discos emblemáticos (Fruto Proibido – 1975; Entradas & Bandeiras – 1976; Babilônia – 1978). Em 1978, Rita começou seu relacionamento com Roberto de Carvalho, e uma nova fase, de ainda maior sucesso do que com Tutti Frutti e Mutantes, se seguiu. A união Rita & Roberto acabou levando a saída de Carlini, que levou consigo o nome Tutti Frutti. Carlini montou um novo grupo, junto com o ex-Casa das Máquinas Simbas (vocais), Renato Figueiredo (baixo) e Juba Gurgel (bateria), lançando em 1980 Você Sabe Qual O Melhor Remédio, de relativo sucesso. Ainda seguiu uma carreira de músico de estúdio, tendo ao todo mais de 400 registros junto de diversos artistas.

Já Lucinha seguiu com a Tutti Fruti até 1975. Saindo do grupo, fez o Rock Horror Show ao lado de Paulo Villaça e Zé Rodrix em 1975. Depois de alguns shows com a banda Bandolim, ao lado de Péricles Cavalcanti (violão) e Rodolfo Stroetter (contrabaixo), acabou virando vocal de apoio em trabalhos de artistas como a própria Rita (Babilônia), Guilherme Arantes (Corações Paulistas), Caetano Veloso (Cinema Transcedental), Gilberto Gil (Refavela e Refestança), entre outros. Em 1979, tentou uma carreira solo, lançando o single “Música no Ar / Oi Nóis Aqui Trá Veis” com participação, entre outros, de Liminha (baixo) e Perinho Santana (arranjo, vocais) na faixa do Lado A, e nada mais nada menos que Gilberto Gil (vocais), Lincoln Olivetti (piano), Robertinho do Recife (guitarras) entre outros grandes nomes da música nacional nos anos 70 na faixa do Lado B. No ano seguinte, saiu seu único disco solo, Aroma, de relativo sucesso, e seguiu sua vida, sendo que a partir dos anos 80, nunca mais falou com Rita. Aroma que certamente, junto com Você Sabe Qual O Melhor Remédio e Either/Or, está para ser retirado dentre as Tralhas do Porão em algum lugar do mundo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.