Histórias de Colecionador: A Formação Musical de Eurico

Histórias de Colecionador: A Formação Musical de Eurico

Por Mairon Machado

Todo colecionador de discos sabe que na sua coleção, há mais que histórias de compras ou presentes de discos. Há também pessoas que marcam eternamente, seja pela doação de itens (como no texto anterior), pela presença em um momento específico (um show, um sebo, um bar) ou, essencial para aprender a gostar de música, amigos que lhe apresentam coisas desconhecidas, e que se tornam audições diárias a partir de então.

Com Eurico não foi diferente. Como já tem seus quase quarenta anos, Eurico pegou na infância o boom do BRock dos anos oitenta. RPM, Legião Urbana, Titãs, Ultraje a Rigor, Ira!, Camisa de Vênus, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Paralamas do Sucesso, entre outros, eram presenças constantes na vida do pequeno Eurico. Nomes internacionais estavam na moda, tais como Tears For Fears e A-ha, além da onda synth de Pet Shop Boys, Erasure e Depeche Mode duelando com “velharias” do porte de Led Zeppelin e Pink Floyd.

Alguns amigos mais próximos, e mais velhos, começaram a surgir entre a infância e a adolescência de Eurico. O primeiro que marcou foi Bentinho. Morador de uma cidade vizinha a de Eurico, o cara possuía uma coleção considerada invejável. Ele apresentou várias bandas que Eurico só conhecia de nome, como Deep Purple, Mutantes, Rolling Stones, Beatles, Queen, Ramones, entre outros, e claro, ampliou o leque de audições de Pink Floyd e Led Zeppelin. Foi com Bentinho que Eurico viu seu primeiro VHS, uma cópia de The Song Remains the Same que veio a marcar sua vida em uma outra história que será contada por aqui. A audição primeira de “Echoes” quase foi um orgasmo para o garoto de apenas dez anos. Aquela sonzeira de vinte minutos enlouqueceu o menino Eurico, e Pink Floyd virou uma das várias bandas de cabeceira do guri.

Outro nome importante é Pilha Fraca. Maluco, elétrico e fanático por Jethro Tull, pilha fraca tinha contatos e trazia LPs quase que semanalmente para sua casa, e Eurico aproveitava para conhecer Black Sabbath, Van Halen, The Who, Iron Maiden, W. A. S. P., Metallica, Guns n’ Roses, Slayer, entre outros. Era Eurico entrando no rock mais pesado, e descobrindo que o instrumento preferido dele era a guitarra. Eurico ficava horas tocando air guitar, fingindo ser Jimmy Page (seu grande ídolo), Ritchie Blackmore, Tony Iommi e principalmente, Eddie Van Halen. As diabruras do holandês fritaram com o cérebro de Eurico, e para o garoto, ninguém tocava mais que Eddie.

Mas voltando ao amigo de nosso personagem, o forte de Pilha Fraca realmente era Jethro Tull. Uma das várias histórias do garoto com a banda envolveu uma viagem de 400 km, pedindo carona e sem grana, para assistir aos britânicos. Por lá, Pilha Fraca pegou uma caixa de papelão, rasgou a mesma e escreveu: “Viajei 400 km para ver minha banda favorita e não tenho dinheiro pro ingresso. Por favor, me ajudem a ver Jethro Tull”. Mendigando moedas, conseguiu realizar o sonho de ver Ian Anderson de perto.

Os anos passaram e veio Seu Duro. Esse nome foi importante para Eurico por mostrar que havia mais na música além do rock ‘n’ roll. Seu Duro surgiu para Eurico por conta de Jimi Hendrix e uma ensebada troca de vinis. Logo viraram amigos, com Eurico passando tardes e noites ouvindo som na casa de Seu Duro. Foi aí que Eurico conheceu o jazz de Keith Jarrett, Art Blakey, Duke Ellington, Count Basie, Charlie Mingus, e claro, John Coltrane. Um aprendizado que abriu o mundo e os ouvidos de Eurico.

Porém, como toda turma de amantes da música, há um guru na vida deles, e no caso de Bentinho, Pilha Fraca e Seu Duro, o guru é o mesmo: Chofer. Chofer é um cara de respeito. Com seus sessenta e poucos anos, é considerado por todos os amigos de Eurico, e também pelo nosso amiguinho, como o maior conhecedor de música da cidade onde Eurico nasceu. O cara tinha de tudo na sua casa, mas principalmente, o que mais tinha era marra, e muita fama. Para Eurico, se aproximar de alguém desse nível de conhecimento era impensável. Mas um dia, ele conheceu Chofer.

A casa humilde foi construída pelo próprio Chofer. Uma casa de madeira, com três cômodos, dois deles destinados para a coleção de discos, e a cozinha. O banheiro é uma boa e velha patente no fundo da casa. Chofer não é de dar bola para bens materiais, apenas quer curtir os seus discos e VHSs. “Cara, DVD arranha, DVD não tem o mesmo som. VHS é melhor cara”, para se ter ideia da rooteza de Chofer. Trabalhando como frentista, Chofer ganha o suficiente para alimentar-se tanto do ponto de vista carbo-proteico como musical, dedicando todo seu lazer para a música, acompanhado de sua cigarrilha e chás dos mais diversos tipos. Foi assim que se tornou reconhecido inclusive nacionalmente, com nomes do porte de Turíbio Santos e Elomar se tornarem amigos de Chofer. Essa do Elomar se tornou uma lenda entre os chegados, já que sempre que acontecia algo que Chofer não curtia, ele avisava o detrator: “vou falar pro Elomar!”. E pior, ele falava mesmo, em conversas telefônicas que duravam horas com o velho baiano.

Quando Eurico conheceu Chofer, através de Seu Duro, ficou abismado pela simplicidade do cara, e também pela coleção. Chofer apresentou nomes que Eurico nem imaginava que podia ser uma banda. Ginger Baker’s Airforce, Chocolate Watch Band, The Incredible Bongo Band, Shákti, The Mahavishnu Orchestra, Mothers of Invention, e por aí vai, foram as primeiras iniciações de Eurico ao mundo maravilhoso de Chofer. O garoto se tornou um frequentador assíduo da casa do novo amigo, e passou a consumir Keith Jarrett, John Coltrane, Miles Davis, Chick Corea, John Abercombrie, fazendo do jazz uma paixão ainda maior, ao mesmo tempo que descobriu o violão clássico de Kazuhito Yamashita, Larry Coryell, John Willians, Julian Bream e principalmente, Andrés Segóvia.

Mas além da música, Chofer fez Eurico sentir o que era vivenciar um show. As histórias das apresentações que Chofer havia visto nos anos 70 faziam os olhos de Eurico brilhar. Santana, John McLaughlin e Paco de Lucia foram shows nos quais a descrição de Chofer trazia com detalhes a precisão e o virtuosismo desses grandes músicos. O show de Rick Wakeman na turnê de Journey To The Centre of the Earth era igualmente exaltado por Chofer, que dizia: “ver aquelas cobras no meio da plateia, e aquela capa brilhante do loiro – Wakeman – nos teclados era tipo assistir uma espécie de Guerra nas Estrelas. Só que não havia Guerra nas Estrelas ainda!”. Outro grande nome do progressivo que Chofer adorava exaltar ter visto era o Genesis em 77. “Cara, o Phil Collins era baixinho, mas berrava muito. Quando eles tocaram ‘Supper’s Ready’, achei que o mundo ia terminar!”.

Exageros a parte, Chofer era sempre muito fiel aos detalhes, e dois deles nunca mais saíram da mente do jovem Eurico. O primeiro foi quando Chofer assistiu a Elis Regina pela primeira vez. O então rapaz havia viajado para assistir aos Mutantes da fase progressiva, e infelizmente não conseguiu ingresso. Para não ficar sem ter o que fazer, foi assistir ao espetáculo Falso Brilhante. Seguem as palavras que Eurico nunca esqueceu: “Cara, todo mundo falava da tal Elis, que Elis isso, Elis aquilo, cara, eu achava que Elis era uma bosta. Daí fui conferir. A banda começou a tocar, e ela surgiu, nanica cara, uma coisinha de nada. Eu me levantei rindo, pronto pra ir embora, e a mulher começou a cantar. Só que ela estava sem microfone cara, mandando ver no mesmo nível da banda, cara. Sabe o que é isso? A mina arregaçou cara. Cai de quatro pra ela”.

A outra descrição foi nada agradável para Chofer. Em uma fase mais controlada na sua vida, o já adulto Chofer foi conferir de perto Eddie Van Halen, quando a sua trupe passou pelo país promovendo o álbum Diver Down. Seguem as palavras de Chofer: “Meu, o tal Van Halen foi algo que não sei te dizer. Galera dizia que tinha um guitarrista chamado Eddie Van Halen que era melhor que Hendrix, que o vocal era incansável, daí eu fui. Cara, nunca vi tanta gente. Era um bando de gente que eu achei que não ia caber no ginásio. Fiquei lá cara, todo esmagado, e os caras começaram a tocar. Bicho, era muito alto o som. Eu não conseguia ouvir nada. De repente, eu vi um loiro pulando no palco, e gemendo. Cara, não era pra mim, sai da pista e fui tomar uma cerveja. Cara, o som era muito alto mesmo no bar! Eu não aguentava cara! Daí comprei um saco de pipocas e coloquei umas pipocas nos ouvidos. O som continuava alto. Daí rasguei o saco em dois e taquei nos ouvidos. Cara, foi aí que o tal Eddie Van Halen começou a tocar! Era mais alto ainda. E pior, o cara tocava e pulava ao mesmo tempo. Era ao mesmo tempo incrível, mas tão extraterrestre que eu fiquei me tremendo. Cara, olha meus dentes – balançando os dentes – ficaram frouxos de tão intenso que era aquele som. Nunca vou me esquecer.

Eurico desconfiou de tanta dramaticidade, mas sabia que Chofer era um cara que praticamente nunca mentia, então, embasbacado pela potência sonora que havia ouvido na descrição do show, foi para casa viajando nas palavras de Chofer, se imaginando no show do Van Halen bebendo uma ceva, com sacos de pipoca nos ouvidos e vendo um de seus grandes ídolos da guitarra pulando e tocando a poucos metros de seus olhos, com o som a todo vapor. Ou seja, ele estaria no paraíso!

Com o passar dos anos, outros nomes foram surgindo na formação musical de Eurico, mas certamente, a importância desses quatro caras na apresentação de sons para o menino foi fundamental para que hoje ele faça parte de nossas páginas.

5 comentários sobre “Histórias de Colecionador: A Formação Musical de Eurico

  1. O Chofer é foda…tem mais história dele! muito bom!
    “Trabalhando como frentista, Chofer ganha o suficiente para alimentar-se tanto do ponto de vista carbo-proteico como musical, dedicando todo seu lazer para a música, acompanhado de sua cigarrilha e chás dos mais diversos tipos.”
    sensacional descrição!
    Abs!

  2. Cara, vocês estão impressionados com o Chofer porque não conhecem a figura. Se conhecessem, iam ver que ele é muito, mas muito mais impressionante do que o Mairon relatou. Sabe aquelas figuras que tem uma cultura (não só musical) imensa, que conhece artistas desde iniciantes a estrelas de primeiro time da música brasileira (e não só conhece como chama de amigo e troca altas ideias por telefone, sendo que alguns deles viajam milhares de quilômetros só para bater um papo despretensioso com a figura), um sujeito que chegou a se eleger vereador e desistiu da vida pública porque seus projetos para a cultura da cidade não conseguiram ser aprovados pela câmara (e que doou todo o salário que recebeu para instituições de caridade, sendo que continuou trabalhando de frentista durante seu período no legislativo), que serve como referência cultural não só na cidade, mas em todo o entorno dela, e que mesmo assim é super humilde, gente fina e caridoso com quem precisa? Estas são algumas das características do Chofer real! Figura raríssima!

    Este texto do Mairon, para mim, é especialmente tocante, até porque conheço todas as figuras citadas, e as histórias contadas, sendo que algumas eu vivenciei junto. Tanto que, uma das coisas que faltou o Mairon falar, é que praticamente a cidade inteira foi apresentada à MTV no começo da década de 1990 por causa de uma fita VHS que o Bentinho gravou em uma temporada de férias na casa d uns primos da capital. Seis horas de programação, com comerciais e tudo, e clipes de bandas totalmente desconhecidas como Pearl Jam, Alice In Chains, Red Hot Chili Peppers ou Faith No More, em uma época onde a MTV pegava só em alguns locais e estas bandas não eram tão faladas ainda. Para mim, particularmente, esta fita foi um choque, e influenciou o gosto musical de muita, mas muita gente mesmo na cidade!

    O Pilha Fraca foi o cara que me fez conhecer Rush “de verdade” ao conseguir a coleção completa da banda (na época até o Presto) emprestada em vinil com a promessa de devolver tudo no dia seguinte. Eu e ele dividimos as bolachas, e passei uma madrugada e uma tarde gravando tudo em fitas K7, sem ouvir antes, para dar tempo de ele levar de volta pro dono e cumprir a promessa. Lembro até hoje do medo que senti ao ouvir “Witch Hunt” no fome de ouvido, totalmente no escuro, lá pelas 4 da manhã… essa marcou…

    E o Seu Duro… Esse é impossível de descrever o quão influente foi na vida de quem gosta de música na terra do Eurico… além de ser, disparado, o melhor guitarrista da cidade (e região), ainda tem um coração imenso e uma vontade de ensinar a quem se dispuser e passar o seu conhecimento musical adiante para quem se dedicar a aprender! Não tenho como mensurar o quanto aprendemos de música com ele… figuraça!

    Fico no aguardo de mais histórias do Eurico! Está muito legal esta série!

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