Glass Harp: o Pai Nosso do rock

Glass Harp: o Pai Nosso do rock
Por Marco Gaspari
Só para provocar o chifrudo, aquele que se intitula “o pai do rock”, Deus costuma privilegiar determinados músicos com um talento excepcional e alistá-los na legião de missionários que espalha a palavra de Seu filho por aí. Realmente, o rock cristão não costuma empolgar os adeptos do lado negro do rock’n’roll, mas fico imaginando o tinhoso querendo seduzir um ou outro desses talentos não só para fazer desfeita ao rival, mas porque gostaria muito de tê-los no som ambiente que embala os cômodos quentinhos de sua morada.
Philip Tyler Keaggy, ou Phil Keaggy, guitarrista do power trio norte americano Glass Harp, é uma dessas figuras que valeriam qualquer esforço satânico. Não que sua vida tenha sido virtuosa a ponto de merecer um texto no verso de um desses santinhos que se distribuem nas igrejas. Muito pelo contrário: Phil foi uma típica criança americana nos anos 50 e um clichê de adolescente nos 60.
Nascido em 1951 na cidade de Youngstown, Ohio, aos quatro anos de idade perdeu metade do dedo médio da mão direita em um acidente com a bomba d’água que abastecia a casa da fazenda onde morava. E crescer com nove dedos nas mãos não encoraja ninguém a empunhar uma guitarra, não é mesmo? Por isso Phil pediu ao pai uma bateria no seu aniversário de 10 anos. Ao invés disso, ganhou uma guitarra Sears Silvertone e penou até aprender a tocá-la. Poucos anos depois trocou por uma Stratocaster e lá pela metade dos anos 60 já tocava nas bandas de garagem locais e tinha como concorrente outro futuro guitar hero: Joe Walsh (James Gang, Eagles).
Em 1965, na escola, Phil começou sua amizade e parceria com o baterista, guitarrista e compositor John Sferra. Ao voltar cheio de idéias de uma curta estadia na Califórnia com a banda The New Hudson Exit, em 1968, Phil convidou John e o baixista Steve Markulin para formarem o Glass Harp. Passaram então a rodar o circuito colegial e de clubes da região de Youngstown, ganhando entrosamento e uma certa notoriedade, além de gravarem várias demos. Uma delas, “Where Did My World Come From” acabou virando um single lançado pelo selo United Label.
Glass Harp, Human Beinz, Raspberries e o James Gang de Joe Walsh eram as bandas mais populares do nordeste de Ohio nessa época. E após a saída de Markulin para se juntar ao Beinz, o Glass Harp recrutou o baixista e flautista Daniel Pecchio para o seu lugar. A crescente fama do grupo, no entanto, começou a trazer problemas para seus membros que, ainda no final da adolescência, tiveram que abandonar a escola e estudarem por correspondência para darem conta dos compromissos. O ano era 1969 e eles não apenas ganharam uma edição da “Battle of the Bands” da região, como também a atenção de um dos jurados que estava lá como olheiro do produtor Lewis Merenstein, votado na época como produtor do ano pela Rolling Stone pelo seu trabalho no disco Moondance, de Van Morrison.
Bastou uma ouvida nos demos e uma olhadinha na banda ao vivo para convencer Merenstein a apadrinhar o grupo, oferecendo inclusive um contrato para alguns discos no prestigiado selo Decca. Bom, eu não tenho os ouvidos de um produtor musical nem sou músico, minha ignorância musical também me impossibilita afirmar se o Phil Keaggy glissandeia, arpejeia ou simplesmente embuceteia na guitarra, mas pelo que a gente lê de quem ouviu o Glass Harp ao vivo nesses idos de 69 e comecinho dos 70, os garotos impressionavam. A guitarra ágil de Keaggy soava carregada de lirismo e a cozinha de Sferra e Pecchio não era apenas competente, era versátil e poderosa. Em suma, eles prometiam.
O entusiasmo pela banda era tamanho que um gaiato qualquer chegou a espalhar um boato de que Jimi Hendrix, ao ser entrevistado em um programa de TV ou nas páginas da Rolling Stone, teria afirmado que Phil Keaggy era o melhor guitarrista do mundo. Essa historinha corre solta até hoje, mesmo depois dos vários desmentidos de Keaggy, já que Hendrix dificilmente conhecera a banda ao vivo e seu disco de estréia, embora gravado no Electric Lady Studios, de Jimi, em Nova York, e produzido por Merenstein, ficaria pronto duas semanas após a morte do guitarrista.
De toda forma, antes de gravarem esse disco, um fato influenciaria e muito o som do jovem guitarrista e de sua banda: a mãe de Phil, grande entusiasta e apoiadora incansável do Glass Harp, morreu em fevereiro de 1970. Keaggy tinha apenas 19 anos e havia sido um adolescente nômade em função de sua vida de músico, mas muito apegado à família. Como músico em plena era hippie, começava a se envolver com drogas e todos os excessos do psychedelic way of life. Inconformado com a morte da mãe e confortado pelas palavras de fé de uma de suas irmãs, fez uma reflexão de vida e resolveu se converter ao cristianismo, usando a música como expressão de sua crença.
Álbum de estréia do Glass Harp

Não pense com isso que o homônimo LP de estréia do Glass Harp seja trilha sonora de missa de domingo.  Longe disso, mas que tem o dedo do Homem lá, isso tem. Para começar, é belíssimo, com harmonias tão ricas que nem o mais iluminado dos beatos conseguiria descrever. No entanto, é power rock. E dos bons, daqueles de arrepiar. O que dão um pouco de bandeira são as letras: “Can You See Me” e “Look In The Sky” são verdadeiros hinos de fé e mesmo as músicas compostas por Sferra ou Pecchio são carregadas de soul. A produção magnífica de Merenstein, recheada por belíssimas intervenções de cordas e pontuada aqui e ali pela flauta etérea de Pecchio, chega a ser deslumbrante. E olha que nem citei ainda a guitarra de Keaggy, lírica, comovente, inventiva, muitas vezes celestial. O álbum é foda.

O Glass Harp é hoje considerado um dos pioneiros do rock cristão contemporâneo, mas nem por isso seus membros eram coroinhas de plantão. Ao vivo, esse power trio era diabólico, na mais pura tradição creamniana, com ferozes jams que se prolongavam acima dos  30 minutos e toneladas de peso martelando os ouvidos. Como contratados do selo Decca, tocaram do Fillmore ao Winterland Ballroom e abriram para Yes, Alice Cooper, Traffic, Chicago, Grand Funk Railroad e mais um monte de super bandas. E convenhamos que não dava  para ser muito bonzinho ao encarar a platéia de tia Alice.



Segundo álbum: Synergy
Em 1971, com seus integrantes na faixa dos 20 anos apenas, o Glass Harp já prometia ser the next big thing, carregando de tinta a imprensa musical e caindo nas graças do público americano e dos críticos, impressionados com a ousadia camaleônica de suas apresentações ao vivo. Seu segundo disco, Synergy, ainda mantinha as estruturas harmoniosas da estreia, mas desta vez arriscava um pouco de folk, abusava do hard rock e se aventurava no progressivo. As músicas “Mountains”, “Never Is A Long Time” e “One Day At A Time” devem ter feito muito big star procurar seu médico atrás de uma boa receita de analgésico para dor de cotovelo.
Reunidos com Merenstein e os executivos da Decca, começaram a traçar planos para o primeiro registro ao vivo da banda, que deveria ser lançado como o próximo LP. A oportunidade chegou quando o Glass Harp foi convidado para ser a banda de abertura do concerto do Kinks, a ser realizado em 1972 no Carnegie Hall. Três verdadeiros desafios para três garotos: tocar no maior templo da música americana, abrir para uma das mais lendárias bandas do rock inglês e reverter a costumeira indiferença do público novaiorquino. O que se ouve dessa gravação, tirando os primeiros minutos de natural nervosismo, é uma verdadeira celebração ao rock’n’roll, quase uma hora de energia pura, incontida, impiedosa. Cinco músicas apenas no set list: a poderosa “Look In The Sky”, a paquidérmica “Never Is A Long Time”, a adaptação do clássico hino gospel “Do Lord”, a pirotécnica “Changes” e a épica “Can You See Me”, esta última com 30 minutos de improvisos fantásticos e um medley da então inédita “David And Golliath” e “One Day At A Time”. Uma merecida ovação da platéia encerra o show.



It Makes Me Glad: terceiro álbum de estúdio
Inexplicavelmente, esse registro só viria a público na forma de CD vinte e cinco anos depois. No lugar dele foi lançado em 1972 o terceiro álbum de estúdio da banda: It Makes Me Glad. Um disco mais contemplativo, mas ainda assim maravilhoso. Ele contém as três músicas que os fãs apelidaram “The Trilogy”: uma suíte épica de 10 minutos composta das músicas “David and Golliath”, “I’m Going Home” e “Do Lord”.
Logo após o lançamento desse LP e no auge da fama, Phil Keagy decide abandonar a banda e abraçar de vez o gospel, iniciando uma carreira solo coroada com algumas dezenas de álbuns, prêmios e indicações para o Grammy de melhor álbum na sua categoria. A banda ainda tentou seguir em frente, recrutando o guitarrista Tim Burks e o violinista Randy Benson. O som do grupo enveredou para o progressivo, mas nenhum registro dessa nova fase viu a luz do dia. O grupo encerrou de vez suas atividades em 1973. Os três membros originais da banda se reuniram novamente em 1997 e desde então têm lançado CDs e excursionado regularmente. Vários vídeos de suas novas apresentações podem ser vistos no YouTube.
O álbum ao vivo do Glass Harp lançado
apenas em CD, 25 anos depois de sua gravação
Para encerrar, fica a pergunta: como é que uma banda dessa magnitude permanece obscura nos dias de hoje? Não se lê o nome Phil Keaggy em nenhuma relação dos melhores guitarristas do rock e nenhum LP do Glass Harp ilustra as discotecas básicas da vida. Vai ver o som deles é muito datado para os modernos da crônica musical. Para mim, no entanto, cada música do Glass Harp é uma verdadeira cápsula do tempo e, como tal, recomendo tomar uma ou outra em jejum de vez em quando. Faz um bem danado.

21 comentários sobre “Glass Harp: o Pai Nosso do rock

  1. Eu conheço apenas o ao vivo no Carnegie Hall. Acho um otimo disco, mas nao conseguu ser aquele que me causou uma paixao avassaladora, apesar da sonzeira de Do Lord. Vou atras dos outros para tentar entender o por que de essa banda nao ser tao conhecida como o Gaspari cita, mas acho que isso vai muito no fato de ate mesmo a James Gang, que muita gente ja ouviu falar, tambem nao ser tao reconhecida mundialmente, ou seja, na epoca, era tanta boa que aquelas com poucos discos ou que excursionavam apenas pelos EUA e nao iam longe (europa) nao conseguiam sucesso. Portanto, faltava um marqueteiro como Peter Grant ou o boneco que lançou os beatles para bandas do porte do Glass Harp.

    Baita texto Gaspa, parabens!

  2. Belíssimo texto, Gaspari. Pra variar…
    Mas nunca tinha ouvido falar nessa banda. Só talvez o nome, bem por cima.
    Fiquei pensando se a religião influenciou realmente "o som" da banda ou se isso mexeu apenas com as letras e a atitude dos membros.
    Se é que teria como ela influenciar o som, não sei…
    A propósito, por onde a gente começa com essa banda? =]
    Parabéns pelo texto!

  3. Temos dois comentários bem interessantes:

    Mairon.
    Você pegou na veia. Também acho que a concorrência, no quesito qualidade, rebaixou para a segunda divisão várias bandas da época. Mas eles eram da Decca e tinham um excelente empresário/produtor. Todos apoiavam e investiam na banda. A saída do guitarrista, que abandonou o barco e partiu definitivamente pro lado gospel, no momento em que a banda ia alçar vôo, danou tudo.

    Adriano.
    A banda já estava formada e tocando junto antes do Phil Keaggy abraçar a religião. Então acho que as letras, mais do que o som, foram influenciadas pela sua religiosidade recente. Se bem que a sonoridade de sua Fender é bastante celestial. De todos os álbuns, o que eu mais gosto é o primeiro. Os outros dois, que inclusive saíram no Brasil na época, têm poucas músicas marcantes. Mas são poderosas também. Dá para ouvir quase tudo do primeiro disco no youtube.

    Acho também que a função de blogs na internet é justamente resgatar essas obscuridades. Para o bem e para o mal. Isto é: tem algumas obscuridades que merecem uma nova avaliação. E tem um monte de bandas que receberam uma segunda chance apenas pelo fato de serem obscuras. O que, convenhamos, não sustenta essa segunda chance.

  4. Groucho

    Se queres conhecer musica gospel, eu te recomendo três discos:

    Trilha sonora do filme Matadores de Velhinha (o melhor disco gospel que já vi)

    Sam Cooke (alguma coletanea de singles da decada de 50 e 60)

    Qualquer coisa do Dixie Hummingbird, a mais importante banda gospel dos estados unidos

    A partir dai, vc vai descobrir outras coisas da area, mas acho esses o melhor do gospel

  5. Mairon, valeu pelas indicações. Sam Cooke eu já conheço algumas coisas, então vou atrás desse Dixie Hummingbird! Trilhas sonoras eu não costumo baixar, só se for de uma banda apenas ou se for algo esquisito, tipo a trilha do Dellamorte Dellamore..
    Quanto ao Glass Harp, eu tô ouvindo e tô gostando. Ao que parece, a banda segue a linha do Jody Grind, um som indeciso entre o hard e o prog ainda nascentes. Uma coisa que me prendeu a atenção foi um solo na música "Look in the Sky", cujo som lembra um flugelhorn. Aquilo é guitarra? Quem tirava um som parecido com a guitarra era o Peter Banks, do Yes. Afora isso, o guitarrista Phil Keaggy é realmente foda!

  6. Mais uma banda da qual nunca ouvi falar… quando eu acho que estou conseguindo ter uma certa "bagagem" musical, vem um texto destes e me apresenta mais um novo caminho a ser trilhado… como já percebi faz tempos, esta estrada não tem fim, e tem infinitas derivações, encruzilhadas e retornos…

  7. Groucho, mesmo não costumando, a trilha de matadores de velhinhas é uma obra de arte gospel. A maioria das canções é só vocal. Existem preciosidades ali que me levaram a ouvir musica gospel. Outro bom disco, mas q tem muito preconceito, é o ultimate gospel, do elvis.

    Micael, mesmo não tendo ouvido falar do Glass Harp, tu tb conheces zilhoes de bandas que muita gente daqui nao sabe que existe.

    Isso que é o prazer de ser um colecionador. Cada um tem seu album com suas figurinhas mais raras ou não, mas todos curtem futebol!!

  8. "Para encerrar, fica a pergunta: como é que uma banda dessa magnitude permanece obscura nos dias de hoje?"

    Porque as Revistas dita especializadas não possuem um REDATOR como o Mestre Siri da Gaita!

    Mais uma vez, Parabéns pelo belo e esclarecedor resgate do Glass Harp.

  9. Essa banda é muito legal, gosto bastante, a guitarra do Phil é surpreendente, usa algumas técnicas similares a do Jan Akkerman e do Peter Banks. Tenho o ao vivo e o primeiro, são ótimos, tem melodia e pegada, muito bons, recomendo tb! Parabéns pelo texto e pela pauta, Siri!
    Outra banda que sei, sem grande fundamentação, que é cristã e que é uma paulada é o Morly Grey, do único disco The Only Truth de 72.
    Abraço!!!
    Ronaldo

  10. Revirando o baú da Consultoria, encontro esse texto do Marco Gaspari sobre essa banda sensacional chamada Glass Harp. Phil Keaggy é, para mim, um herói da guitarra que ficou esquecido em algum recanto dos anos 70.
    Nessa praia, um disco que ganhou um certo reconhecimento nos dias hodiernos: “Victims of tradition”, da banda Agape, chefiada pelo ótimo guitarrista Fred Caban.

    1. Phil Keaggy tem uma ótima carreira solo também. E prestigiada lá fora. Aqui é que a coisa é sempre difícil: tenho lá no Siri da Gaita o primeiro disco solo dele à venda faz uma eternidade. Ninguém sabe quem é e ninguém acredita quando a gente diz que o cara é muito bom. Mas gostei de saber desse seu reconhecimento pelo talento do Keaggy, Francisco. Semana que vem (13/04/2016) sai uma matéria minha sobre outro grande guitarrista americano: Jerry Cole. Espero que leia.

      1. Já estou no aguardo pela matéria sobre Jerry Cole.
        Para quem tem dúvida sobre a capacidade de Keaggy, há um vídeo dele chamado “County down”, em que o dito cujo faz misérias com uma guitarra acústica. Outro bom guitarrista que merece ser lembrado: Miller Anderson…

  11. Que matéria! Mas vou puxar a brasa para nossa sardinha: o que seria desta consultoria sem o Mestre Jedi do Asilo, o venerável Marco Gaspari? A instituição está em festa com mais esta pérola do nosso Grão-Mestre.

  12. Viu Marco!!!
    O povo lê seus textos!!! Hahahah
    Essa é uma característica legal da Consultoria do Rock, os textos no geral não são datados…

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