Do Pior Ao Melhor: Paralamas Do Sucesso

Do Pior Ao Melhor: Paralamas Do Sucesso

Por Marcelo Freire

A produção dos Paralamas do Sucesso, ao longo de 40 anos de carreira, é considerável: contém treze álbuns de estúdio, sete álbuns ao vivo, dois álbuns em espanhol, quatro coletâneas, dois box sets e nove DVD’s. Centrarei esforços em ordenar, conforme suas qualidades, somente os álbuns de estúdio, mas já faço uma ressalva: não deixe de apreciar os álbuns ao vivo, todos acima da média, pois a banda no palco é praticamente imbatível e os shows têm, tranquilamente, 2 horas só de sucessos, com destaque para os excelentes Vamo Batê Lata (1995, que trazia 4 músicas de estúdio inéditas), D (1987) e o Uns Dias Ao Vivo (2004), além do obrigatório em qualquer boa discoteca Acústico MTV (1999). Também chamo a atenção para as coletâneas intituladas Arquivo (1990), e Arquivo II: 1991-2000 (2000), que possuem músicas inéditas. Confesso que foi difícil classificar a produção da década de 80 da banda, porém a coluna pede que tenhamos um olhar crítico, então ouvir novamente a discografia completa do grupo procurando o que é mais fraco, ao invés do que mais gosto, foi um bom exercício de distanciamento (que fica evidente nas posições de Cinema Mudo e de Big Bang). Espero que, nos comentários, também coloquem suas próprias listas, caso divirjam da minha.


13º. Sinais do Sim [2017]

Na discografia da banda, todos os discos são acima da média e consistentes, exceto o seu último lançamento, que apresenta dificuldades para emplacar. “Escutamos coisas que escutávamos antes mesmo de começarmos a banda, principalmente rock dos anos 1960 e 1970”, disse Barone em entrevista à época do lançamento. A novidade fica por conta de Mário Caldato Jr., produtor com quem os músicos nunca haviam trabalhado. “Nos identificamos de cara e demos uma carta branca pra ele fazer tudo o que quisesse. Ele sentiu firmeza no repertório e potencializou nossa força com um acabamento fantástico”, complementa Barone. Entre as surpresas de Caldato está Rodrigo Amarante, ex-Los Hermanos. “Ele convidou o Rodrigo para fazer alguns vocais pontuais, algo meio escondido, muito sutil. Tanto que ele não fez questão de ser creditado, mas mesmo assim nós quisemos agradecê-lo”, disse Herbert. Realmente, o propósito buscado pela banda, de um disco leve, se cumpre. O trio parece revisitar suas várias fases e repertório, porém parece que tudo ficou polido demais, limpo demais e sem a pegada típica deles. A sensação ao ouvir cada uma das músicas é a de que há outra na discografia deles que soa melhor. Todas as vezes em que o ouço, fico com a sensação de que poderia ter sido um álbum mais roqueiro se a direção de arte e a produção apontassem para outro lado. Os vocais de Herbert parecem mais inseguros, mais fracos – o que confere emotividade, é verdade, mas destoa dos demais discos do grupo. Um álbum bom de se ouvir, sem dúvida, se esta coluna tivesse como premissa darmos notas, ele seria nota 8,0 numa boa, sobretudo pelos ótimos timbres de guitarra e pelas sempre boas ideias de canções de Herbert Vianna, mas só o adquira se for um completista, caso contrário invista primeiro sua grana nos discos anteriores. Tomara que não seja o último lançamento dos Paralamas, pois seria uma despedida melancólica.


12º. Brasil Afora [2009]

O álbum foi gravado no estúdio de Carlinhos Brown (que participa da faixa “Sem Mais Adeus”) e teve Liminha como produtor (e autor, juntamente com Arnaldo Antunes, da faixa “A Lhe Esperar”) – o que realmente reflete em uma qualidade excelente de gravação, mas parece que falta algo para ele voar mais alto. Segundo álbum de composições feitas após o acidente de Herbet Vianna, Brasil Afora carece do que sempre foi um diferencial nos álbuns dos Paralamas: ao menos um hit matador. Herbert Vianna é da estirpe dos maiores hitmakers do mundo e, aqui no Brasil, está no páreo com Lulu Santos, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Tim Maia, Michael Sullivan e Paulo Massadas e César Augusto (que tem cerca de 950 composições no mundo sertanejo). Antes de atirarem pedras, não confundam um grande hitmaker com um grande compositor (por nossas terras, Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim e Gilberto Gil são nossos melhores exemplos), e é aí que Herbert se destaca, pois ele também tem faro para grandes composições (tal qual Renato Russo e Paul McCartney, por exemplo), daí esse álbum carecer de composições mais ganchudas e isso ser um tipo de expectativa não cumprida. Além das duas citadas, “Meu sonho” e “Aposte em mim” (que são as melhores canções do álbum) talvez sejam as que cheguem mais perto de serem um grande hit, pois tratam-se de duas ótimas faixas, da melhor safra de composições de Herbert Vianna, e estariam tranquilamente, juntamente com “Sem mais adeus” e “A lhe esperar”, nos ótimos álbuns 9 Luas (1996) ou Hey Na Na (1998). A bela “Palhaço” e a estradeira “Tempero zen” também merecem destaque, são faixas interessantes, porém não ao ponto de fazerem o disco decolar e voar na altura dos demais. Outro aspecto peculiar do álbum são os metais, que aqui são utilizados de modo mais discreto e com bastante bom gosto. Não se trata de um álbum ruim, daqueles que lamentamos terem sido lançados, longe disso: é um disco que merece estar na sua coleção, coloque-o para tocar e verá que é bastante agradável e equilibrado, não pulará nenhuma faixa, coisa que acontece, por exemplo, com Cinema Mudo (1983), em que você tem que descartar ao menos duas ou três faixas, bem como no Big Bang (1989), que também não dá para ouvir por inteiro. Caso você seja fã da banda (se tem 6 ou 7 discos deles na prateleira pelo menos) e ainda não o tem, pode comprá-lo numa boa, terá uma banda mais melódica e com levadas mais suaves do que o usual na carreira deles. Parece um contrassenso, em um ranking de discos, o penúltimo colocado receber mais elogios do que críticas, mas basta emparelhá-lo com os demais e verá que deve ficar somente à frente de Sinais do Sim (2017), o que corrobora a qualidade da discografia da banda.


11º. Hoje [2005]

Contando com o bom trabalho de Liminha (que produz 6 faixas) e o sempre eficiente Carlo Bartolini (responsável pelas outras 7), o décimo primeiro álbum de estúdio dos Paralamas é o primeiro com canções compostas após o acidente de Herbert Vianna sofrido em 2001, ao contrário do disco de estúdio anterior Longo Caminho (lançado um ano depois do acidente com músicas compostas na leva de Hey Na Na de 1998), e conta com participações especiais de Mano Chao em “Soledad Cidadão” (composta em parceria com Pedro Luís), Marcelinho da Lua na boa “Ao acaso” e Andreas Kisser em “Fora do lugar” (composição de Leoni) e “Ponto de vista”, além de Nando Reis, parceiro de composição em “Pétalas”, e Apollo 9 em “Deus Lhe pague” do Chico Buarque, que garantem a posição do álbum à frente de Brasil Afora (2009) e Sinais do Sim (2017). É um disco doído, pois, obviamente, as inevitáveis marcas do acidente aparecem ao longo das faixas. Em “2A”, faixa de abertura, Herbert canta uma dolorosa declaração decorrente das mudanças que o acidente causou em sua vida: “Meu destino não me deixa em paz / De coração, não sei se eu posso amar / Amei tanto há tanto tempo atrás / Mas sofri, chorei, cansei de soluçar / Nem sei se é o fim, / Mas a luz da vida ainda brilha pra mim. / Pra uma princesa eu entreguei meu coração / Ela me fez cantar, sorrir, sonhar, sentir tesão / Me entreguei, fiz tudo que ela quis / Mas o destino me deixou na mão / Se é assim, que não seja o fim / Pois a luz da vida ainda brilha pra mim. // Então xinga / Com dois “a” de caatinga / Ou então para / Sejam dois “a” de Saara”. A princesa da letra é a esposa de Herbert, Lucy Needham-Vianna, que faleceu no acidente de 4 de fevereiro de 2001, perto da costa de Mangaratiba, no Rio de Janeiro, quando o ultraleve em que ambos estavam caiu no mar após uma tentativa de looping por parte de Herbert, que era quem pilotava. O guitarrista foi internado por 44 dias, parte deles em coma, sofreu perda parcial da memória e ficou paraplégico. Como não se emocionar depois de tudo isso ao ouvir “2A”!? A verdade é que todo fã dos Paralamas estava à espera do que Herbert Vianna, um dos melhores e maiores músicos brasileiros, apresentaria após tudo o que aconteceu – e como estaria, se ainda seria o mesmo guitarrista de mão cheia, como cantaria, o que comporia… “2A” é o que falta em Brasil Afora (2009): o hit matador e que, nesse caso, já vale o álbum, pois trata-se de uma das melhores canções da banda, entra no top 10 fácil. Ouça também a sombria “Passo Lento”: “Te peço calma para que eu absorva tudo / que eu aprenda enquanto sofra / te peço um tempo pra / concatenar cada elemento / em passo lento”. Em “Ponto de Vista”, a música mais pesada em termos roqueiros da discografia da banda, Herbert canta com indignação que “Você aí em pé / você não deve saber / como é o mundo aos olhos de quem sofre / ao se mover”. Passados 20 anos do lançamento, temos aqui um disco menos ouvido do que merecia ser.


10º. Severino [1994]

O sétimo disco dos Paralamas do Sucesso entregava suas influências já no nome: paraibano de nascença, Herbert Vianna mirou a saga do retirante nordestino escrita pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto para mostrar que muito pouco, ou quase nada, havia mudado desde o lançamento do poema Morte e vida severina em 1955. Herbert e seus parceiros, Bi Ribeiro e João Barone, ousaram na produção musical com um trabalho sofisticado que abria mão de melodias e refrões mais palatáveis — o que não foi bem recebido por parte da crítica e do público da época, mas contribui, ano após ano, com a aura cult que o trabalho vem recebendo. O conceito do álbum já era apresentado na capa, certamente a mais bela da discografia da banda, que reproduz um manto bordado pelo artista plástico Arthur Bispo do Rosário, representando um homem cercado por nomes de órgãos e partes constituintes do corpo humano e, abaixo, a frase “Eu preciso destas palavras ‘escrita’”. Interno da antiga Colônia Juliano Moreira, onde viveu por mais de 50 anos, o sergipano Bispo do Rosário também era um retirante, um “severino”. Na distância da terra pátria, tal qual Gonçalves Dias em sua Canção do Eexílio (escrita em Lisboa em 1843), Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago (escrito em Paris em 1924), Caetano Veloso no exílio em Londres com seu Transa de 1972 e Gilberto Gil, também em Londres e igualmente exilado, com seu disco homônimo de 1971, os Paralamas gravam seu registro mais brasileiro em Cherstey, na Inglaterra, com produção de Phil Manzanera (ex-Roxy Music). O disco representou uma guinada estética ainda mais radical que a de Selvagem? (1986), gravado oito anos antes, pois avançou na trilha do experimentalismo e da crítica social, como nos versos contundentes da pequena pérola do disco O Rio Severino: “És tu Brasil, ó pátria amada, idolatrada por quem tem / Acesso fácil a todo os teus bens / Enquanto o resto se agarra no rosário / E sofre, e reza / À espera de um deus que não vem”, música originalmente gravada por Herbert em seu primeiro disco solo Ê Batumaré (1992). E é aqui que está a chave de interpretação do disco mais diferente de todos da banda: egressos de um álbum mal compreendido (Os Grãos, de 1991) e um disco solo do vocalista e guitarrista Herbert Vianna (Ê Batumaré, de 1992), os Paralamas precisavam dizer algo para o público e o disco de Herbert foi o fio condutor para Severino. Era um tempo em que o país vivia o erro de ter dado a Fernando Collor a chance de presidir a nação e promover medidas que fizeram mal a quase todos os brasileiros. Tudo isso estava no ar, essa tristeza, esse gosto amargo. Para o artista inquieto Hebert Vianna, era necessário olhar para quem éramos e para o que queríamos fazer da vida, já que a arte, ainda mais a popular, é uma forma de absorção em relação a essas experiências e vivências sociais. Logo, o contexto histórico promoveu as condições para Severino existir. Confessamente influenciado pela leitura de autores nordestinos e imerso num processo de redescoberta de sua própria origem paraibana, referências de Ê Batumaré (1992), Herbert estava ciente de que o próximo álbum do grupo passaria por semelhante processo. Bi e Barone sabiam que a banda tinha muito a dizer a partir dessa imersão no Nordeste do parceiro. Entregues ao experimentalismo e, como diz Barone hoje em dia sobre o álbum, “à vontade para esticar seu potencial artístico”, os Paralamas deram asas a uma imaginação compartilhada com aquele momento do país. Severino é a obra mais ousada e instigante da banda. Apesar de não ter gerado grandes hits comerciais, é um álbum que conquista pela sua coerência interna e pela coragem de romper com fórmulas estabelecidas. O repertório traz faixas que exploram temas profundos e até melancólicos, com letras que refletem um olhar mais introspectivo e maduro sobre a vida e as relações humanas neste país (“Nada justifica essa dor / É tua alma brasileira que ainda veste essa cor / Nada justifica essa dor / É tua alma posta à venda sem achar comprador”, canta e declama Herbet em “Nada justifica essa dor”). Embora fique na décima posição deste ranking, Severino merece atenção especial por sua contribuição para a diversidade e o enriquecimento da obra dos Paralamas do Sucesso — e tem duas das melhores músicas da banda ao vivo: as praticamente imbatíveis “Dos Margaritas” e “Vamo Batê Lata”, dois dos melhores hits matadores que já compuseram. É um convite à redescoberta e à apreciação de uma fase menos convencional, porém fundamental, para compreender a versatilidade e o espírito inquieto do trio.


9º. Cinema Mudo [1983]

Nenhum disco da carreira dos Paralamas do Sucesso tem um lugar tão especial na memória afetiva de tanta gente quanto Cinema Mudo. Lançado em 1983, em um Brasil que ainda estava sob o regime militar, instaurado em 1964 e que duraria até 1985, mas que já vivenciava fortes tensões sociais e políticas, com o movimento pelas “Diretas Já” ganhando força e culminando em greves gerais contra o regime imerso em crises econômicas e com a inflação em alta. Nesse caldeirão, o álbum foi o primeiro contato oficial do público com o trio brasiliense/carioca que viria a se tornar uma das maiores bandas do Brasil. Para muitos fãs da geração que hoje está na casa dos 50 anos, Cinema Mudo não é apenas um álbum — é uma trilha sonora de descobertas, rebeldia e sonhos juvenis de uma época muito, muito diferente da de hoje. Com uma pegada punk-reggae-crua e uma energia juvenil incontestável, o disco carrega um frescor que ainda hoje soa genuíno e contagiante. Faixas como “Patrulha Noturna”, “Vital e Sua Moto” e “Química” (essa de Renato Russo) são autênticos hinos de uma geração que buscava novas formas de expressão, identidade e pertencimento. A produção simples, quase artesanal, de Marcelo Sussekind (que a banda renega e considera ruim até hoje, nunca esconderam isso pois, de acordo com Herbert Vianna, a banda sofreu “manipulação” da gravadora, por ter acrescentado teclados, solos, ecos e efeitos que eles não queriam), reforça a sensação de que estávamos diante de uma banda que ainda procurava seu som, mas que já trazia em seu DNA a ousadia, a inventividade e a qualidade técnica de cada um em seus intrumentos que seriam suas marcas registradas ao longo da carreira. Cinema Mudo é o registro de um momento de efervescência cultural e musical, quando o rock nacional começava a ganhar voz forte nas rádios e nas ruas. Mais que isso, é um testemunho da coragem e da paixão de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone — jovens artistas que, com poucos recursos, conquistaram corações e mentes ao oferecer uma proposta autêntica e vibrante. Ao revisitar este álbum, quarenta e dois anos depois, não se trata apenas de ouvir música; é mergulhar em uma época, sentir a pulsação de um tempo em que tudo parecia possível. Por isso, mesmo na nona posição neste ranking — fruto do olhar crítico que esta coluna propõe —, Cinema Mudo tem um lugar privilegiado, pois foi o ponto de partida de uma jornada inesquecível.


8º. Big Bang [1989]

Esse foi o disco mais difícil de posicionar da lista — ora ele estava na 10ª posição, ora ele pulava para a 6ª —, Big Bang repete a fórmula do álbum anterior, o primoroso Bora-Bora (1988), com a mesma variedade de ritmos, porém está muitos degraus abaixo. A produção do álbum é ruim, o que destoa do nível elevadíssimo do antecessor; embora Carlos Savalla fosse o engenheiro de som da banda e já os conhecesse, aqui ele erra a mão (ou erram, já que os Paralamas também produziram o disco) — ouça “Dos restos” (parceria de Herbet com Liminha, que poderia ter ficado para ajudar na produção) e veja como o volume dos instrumentos está equivocado, a guitarra do Herbert some por detrás dos metais muito altos, que se sobrepõem à já altíssima bateria, estragando o que poderia ter sido um dos maiores rocks da banda. Outro ponto: o repertório do disco, no geral, é fraco. Sei que comprarei inimizades com os fãs mais ardorosos, mas “Rabicho do cachorro rabugento” e “Cachorro na feira” são muito ruins, além de serem basicamente a mesma canção. “Se você me quer” e “Lá em algum lugar” também são fraquíssimas — inclusive, essa faixa é a mais horrorosa em termos de gravação, será que não havia uma alma iluminada no estúdio para dizer que a faixa deveria ser gravada com uma sonoridade mais suave?! Nem “Nebulosa do amor”, querida por muitos, consegue se destacar. Enfim, nada disso é o problema em termos de classificação do disco, pois se parássemos por aqui, ele estaria de modo incontestável em último lugar; o verdadeiro dilema para a sua classificação é o fato de que o álbum contém, simplesmente, três petardos da carreira do grupo que estão, seguramente, em qualquer boa lista de suas 10 melhores músicas: “Perplexo”, “Pólvora” e “Lanterna dos afogados”. Como deixar nos últimos lugares um lançamento com essas maravilhas? Até pensei em considerar com outros olhos e ouvidos as ótimas “Vulcão Dub” e “Esqueça o que te disseram sobre o Amor (vai ser diferente)”, para ver se ele subiria ao menos 2, 3 casas para chegar em 6º lugar (mais que isso também não dá), mas não teve jeito… “Perplexo” tem um dos melhores trabalhos de bateria de Barone, nem mesmo no Bora-Bora (1988) ele conseguiu essa levada tão boa e certeira, meio embolada, meio lambada — sem falar do verso genial “Eu vou lutar, eu vou lutar / Eu sou Maguila, não sou Tyson”. “Pólvora” é uma das melhores músicas da banda, fica entre as 5 melhores tranquilamente. Aqui, sim, a gravação favoreceu o arranjo. E a letra? Hermética, misteriosa, difícil, daqueles milagres que somente os grandes compositores conseguem engendrar — afinal, quem em sã consciência conseguiria cantar com tanto molejo coisas como “As teorias que explicam o universo / Os versos que vasculham o coração / Os garis, estivadores e arquitetos / A fé manipulada dos cristãos // As alegrias, alergias, os afetos / Os fatos, frases, a simulação / O país ajoelhado, a morte, o sexo / A culpa e o olhar de acusação // O que é tudo isso diante da pólvora / Dessa paixão que se renova?”. Parece coisa da safra dos letristas dos Titãs. E aí temos “Lanterna dos afogados”, séria candidata a melhor música dos Paralamas — no mínimo, ela é pódio. Tudo nessa música é bom (nem a produção ruim consegue estragá-la): letra, arranjo, melodia, além de ter um dos três melhores solos de guitarra de Herbet Vianna, juntamente com “Mensagem de amor” e “Romance ideal”, ou seja, que música, meu Deus! Na disputa com Big Bang (1989) Cinema Mudo (1983) e Severino (1994), essas três pérolas, verdadeiras aulas de como se compõe um hit matador, fizeram a diferença, e fico feliz em não ter deixado a minha memória afetiva colocá-lo algumas posições acima.


7º. Os Grãos [1991]

Lançado em um período de transição para o rock nacional, Os Grãos representa um momento em que Os Paralamas do Sucesso começam a explorar novas sonoridades sem perder a essência que conquistou fãs ao longo dos anos 80. O álbum chega em uma fase em que a banda já desfrutava de sólida maturidade artística, mas que ainda buscava renovar seu repertório para se manter relevante e criativa. Com produção caprichada de Liminha e Carlos Savalla (que aqui acerta a mão), o disco traz uma mistura equilibrada entre faixas animadas e outras mais introspectivas, divididas segundo esse critério no lado A e no lado B. A pegada rock permanece firme, mas os arranjos estão mais elaborados, com influências que vão do reggae ao pop, passando por nuances de MPB mais tradicional. Essa diversidade reflete a vontade do trio de expandir seus horizontes musicais sem se distanciar do que os tornava únicos — vide a melhor música do disco, “Sábado”, meio ska, meio reggae, com levada insinuante num ótimo arrasa-quarteirão, carregada de sopros, mas que, ao mesmo tempo, contém sampler de “Good Times Bad Times” do Led Zeppelin, além de uma guitarra mais ardida que o de costume, deixando-a bem roqueira — sem contar que possui versos belíssimos: “Gotas de amor sobre as feridas / Como um bálsamo / Ondas de amor pelas cortinas / Como um sábado de sol // Eu só queria te dizer / Que aquela dor já passou / Fingir que não, passar por cima / Nunca me ajudou // Onda de amor me contamina / Como um sábado de sol”. “Sábado” é uma das primeiras faixas que aborda a relação com Lucy Needham. Aliás, em termos de beleza (e de relacionamentos), o disco traz “Tendo a Lua”, linda, linda, linda canção que é, ao mesmo tempo, de um amor perdido e de um novo amor: versos como “Eu hoje joguei tanta coisa fora / Eu vi o meu passado passar por mim / Cartas e fotografias, gente que foi embora / A casa fica bem melhor assim” refletem tanto sobre o fim do relacionamento com Paula Toller quanto sobre o início de um novo amor com Lucy. O grunge tomando conta das paradas do mundo todo e a banda mandando essa pedrada amorosa. Faixas como “Os Grãos” e “Vai Valer” mostram a banda segura em seus novos domínios entre grooves e levadas mais harmoniosas, enquanto “Nada por Mim” e “Vamos Compor” revelam um mergulho de vez em um lado mais sensível e melódico. A produção, embora polida, consegue preservar o calor e a espontaneidade que marcam a identidade da banda. O trabalho instrumental é primoroso, com destaque para a guitarra de Herbert Vianna, que equilibra técnica e emoção de forma exemplar. Os Grãos é um disco consistente, com um bom equilíbrio entre experimentalismo e o jogo ganho da fórmula que a banda já dominava da canção de sucesso (caso de “Carro Velho”, com a percussão de Carlinhos Brown e a bateria gravada no bloco Vai que Vem, de Salvador, e que lembra bastante canções de discos anteriores), o que demonstrou a evolução natural dos Paralamas e sua capacidade de se reinventar sem perder a essência. Aliás, já que mencionei tanto algumas referências à Lucy Needham quanto ao Carlinhos Brown, vai mais uma: a canção “Uma Brasileira”, lançada como música de estúdio no ao vivo Vamo Batê Lata de 1995, composta por Hebert em parceria com Carlinhos Brown e que conta com a participação especialíssima de Djavan, foi feita em homenagem à sua então esposa, Lucy. Herbert contou, em uma das edições do programa da Globo Caldeirão do Mion, que Lucy era inglesa e tinha um grande interesse pela cultura brasileira. Ele quis que a letra da música homenageasse a “alma brasileira” da esposa, com o refrão em inglês e o restante da letra falando sobre o interesse dela pelo Brasil. Voltando ao Os Grãos, se você, como eu, já leu ou viu críticas ruins a esse trabalho, colocando-o na rabeira da discografia da banda, ouça com cuidado “Vai Valer” e “O Rouxinol e a Rosa” e me diga que outra banda conseguiria tamanha leveza sem perder a vitalidade que lhe era peculiar? Enquanto isso, na linda balada “A Outra Rota“, Herbert Vianna parece pedir perdão a alguém por um erro cometido no passado e, ao mesmo tempo, apontando para outras possibilidade no futuro (em mais uma ótima letra na qual Herbert equilibra relacionamentos passado e presente): “Eu vou fechar as contas e me mandar / Me ajoelhar, pedir perdão / Depois te perdoar // Você não merece o que eu te fiz / Só pra te machucar / Como se forte fosse eu // Eu tô em outra rota pra outro lugar / Eu quero as coisas certas / Eu quero te falar”. Nela, merece destaque o desempenho do piano de João Fera, o “quarto paralama”. Ou seja, são três pequenas joias de um trabalho que merece ser redescoberto por fãs antigos e novos, pois guarda vários tesouros escondidos que só a audição atenta (sugiro que com bons fones de ouvidos) pode revelar (a faixa “Não Adianta” é um deles, mais uma em que Herbert deixa claro que o negócio é esquecer o passado e seguir adiante) e que, seguramente, deixam o disco à frente do mais experimental Severino (1994), que viria logo depois, do antecessor Big Bang (1989) e da estreia Cinema Mudo (1983).

Herbert Vianna, João Barone e Bi Ribeiro. Os Paralamas na década de 80

6º. 9 Luas [1996]

Se até aqui os álbuns oscilam entre notas de 8 a 9, a partir de agora são todos irrepreensíveis, com notas de 9 a 10, e demonstram o quanto os Paralamas eram capazes de enfileirar grandes hits com apurada qualidade técnica e ao longo de 3 décadas diferentes (pois os 6 primeiros colocados são lançamentos das décadas de 1980, 1990 e 2000). Lançado em 2 de julho de 1996, dois anos após o incompreendido e complexo Severino (1994) e num momento em que a música brasileira respirava novos ares e se reconfigurava diante da força do pop-rock dos anos 90, 9 Luas é um ponto de equilíbrio raro entre a maturidade de canções mais suaves, baladas e momentos mais delicados e o frescor das canções mais pegadas e agitadas da banda. A Legião Urbana lançaria A Tempestade ou O Livro dos Dias em 20 de setembro de 1996 e encerraria suas atividades onze dias após o falecimento de Renato Russo, ocorrido em 11 de outubro de 1996. Com isso, a nossa geração, que cresceu nos anos 80, buscava novos referenciais. Os Paralamas, atentos e inquietos, criaram aqui um trabalho que preserva a essência do grupo — a união de melodias acessíveis e arranjos elaborados — ao mesmo tempo em que absorve timbres mais limpos, batidas mais sutis e um clima mais contemplativo. Produzido pela própria banda e por Carlos Savalla (que enfim conseguem o que não alcançaram no Big Bang em 1989), há um refinamento sonoro evidente: guitarras menos distorcidas, baixo pulsante mas econômico e bateria precisa, quase minimalista em alguns momentos. É um disco que respira compenetração, dialogando com a MPB sem perder o DNA roqueiro da banda, embora a maioria das faixas seja mais suave — e esse é o ponto de virada que garante a 6º colocação a esse álbum, já que Herbert Vianna, em plena forma, entrega interpretações carregadas de calor humano, enquanto as letras transitam entre a poesia romântica e observações de um mundo em transformação — sem contar as ótimas versões de “De Música Ligeira”, da banda argentina Soda Stereo, e “Capitão de Indústria”, obra-prima de Paulo Sérgio Valle e Marcos Valle (“Eu às vezes fico a pensar / Em outra vida ou lugar / Estou cansado demais / Eu não tenho tempo de ter / Tempo livre de ser / De nada ter que fazer / É quando eu me encontro perdido / Nas coisas que eu criei / E eu não sei / Eu não vejo além da fumaça / O amor e as coisas livres, coloridas / Nada poluídas / Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar”). O álbum marca, portanto, a consolidação de uma fase em que os Paralamas pareciam interessados tanto em criar paisagens sonoras quanto em produzirem seus potentes hits matadores — e, paradoxalmente, foi exatamente essa mescla que rendeu alguns de seus grandes sucessos da década. Amigo, o disco abre com “Lourinha Bombril”! Lá na década de 90, 8 em cada 10 artistas almejavam esse hit; quem mais se aproximou disso foi o Skank com “Garota Nacional”, lançada no álbum O Samba Poconé apenas 17 dias antes (15 de junho de 1996). Cabe ressaltar que esse sucesso é uma versão de Herbert Vianna da música “Párate Y Mira”, composição de Diego Blanco e Bahiano da banda de reggae e ska argentina Los Pericos, e, sem bairrismos, a versão de Herbert Vianna é bastante superior à original. 9 Luas é uma obra que envelhece com elegância, mantendo viva a sensação de que, a cada audição, novas nuances se revelam. Ouvir hoje, praticamente 30 anos depois, faixas como “Na Nossa Casa”, me dão a certeza de que há tanto ainda a ser descoberto dessa banda… Destaco Senô Bezerra (que também toca trombone na faixa) e Adriano Machado, ambos responsáveis pelo arranjo de cordas da faixa e que a elevam a uma das mais belas da banda (os Paralamas devem ter umas 6, 7 músicas mais bonitas de todas). O álbum fecha com uma das canções mais subestimadas da banda, a delicada “Um pequeno imprevisto”, parceria de Herbert com Thedy Corrêa (“Eu quis querer o que o vento não leva / Pra que o vento só levasse o que eu não quero / Eu quis amar o que o tempo não muda / Pra que quem eu amo não mudasse nunca / Eu quis prever o futuro, consertar o passado / Calculando os riscos / Bem devagar, ponderado / Perfeitamente equilibrado”). Na próxima sexta-feira em que chegar do trabalho, relaxe no fim de tarde e início de noite ouvindo esse álbum e perceberá que ele ainda tem muito a nos dizer.


5º. Longo Caminho [2002]

Esse disco tem uma versão primorosa e emocionante de “Running on the Spot”, do The Jam, o que, por si só, o eleva à posição em que está e o deixa confortável à frente dos ótimos Os Grãos (1991), Big Bang (1989), Cinema Mudo (1983), 9 Luas (1996) e Severino (1994). Quer saber de que água a turma daqui de Brasília provava? Pois bem, coloque para tocar The Gift (1982), do The Jam, grupo do imparável Paul Weller (um dos maiores compositores do mundo em atividade), que rolava em 10 de cada 10 festinhas por aqui nos longínquos anos 80 (como sinto falta dessa época, meu Deus), e entenderá de onde vêm algumas coisas de gente como os Paralamas do Sucesso, Escola de Escândalo, Legião Urbana, Arte no Escuro, Aborto Elétrico, Capital Inicial, Plebe Rude, Finis Africae, Detrito Federal… O trio consegue deixá-la ao mesmo tempo com a sua pegada original e com a cara dos Paralamas como se, para tal feito, tivesse sido necessário percorrer o longo caminho mencionado na faixa que dá nome ao álbum. E a letra? Me parece genial, 20 anos depois de seu lançamento, Herbert cantar os seguintes versos de Weller: “Eu esperava que tivéssemos feito progressos reais / Mas parece que perdemos o poder / Qualquer passo de avanço / É como uma gota caindo no oceano / Estamos batendo na mesma tecla como sempre estivemos? / Somos apenas a próxima geração emocionalmente Incapacitada // Apesar de empilharmos os blocos de construção / A estrutura nunca parece ficar maior / Porque continuamos a chutar as fundações / e ficamos inúteis (parados) enquanto nossas vidas caem… // Eu acredito na vida e eu acredito no amor, / mas o mundo em que eu vivo continua tentando provar que estou errado”. Se um dia precisar explicar a um ET como se deve fazer uma versão de uma canção, apresente essa faixa a ele. Dito tudo isso, obviamente que vale registrar que estamos tratando do álbum lançado sob a emoção da recuperação de Herbert Vianna após o acidente de ultraleve ocorrido apenas um ano antes. A produção, a cargo do eficaz Carlo Bartolini, é uma das melhores dentre a discografia da banda e conseguiu dar uma sonoridade roqueira bastante agradável de se ouvir, sem querer mudar a característica original do som da banda, mas trazendo outras tonalidades ao som dos três músicos nesse momento tão complexo. As músicas foram compostas antes do acidente, e hoje, à distância, vejo que foi extremamente acertada a decisão da banda de aproveitar essas sobras de estúdio e de ideias ainda inacabadas em alguns casos e terminá-las, ao invés de partirem para composições novas, assim como foi acertada a decisão de quase todas as faixas estarem centradas no trio Bi, Barone e Herbert. Ao ouvi-lo, agradeço aos céus por não terem feito de Hey Na Na um álbum duplo! “Flores no Deserto” foi escrita em homenagem a Marcelo Yuka, ex-baterista d’O Rappa, que, em 2000, foi atingido por tiros ao tentar impedir um assalto e que também ficou paraplégico: “havia inocência em seu sorriso / enquanto caminhava rente ao precipício / estava calmo por acreditar em perfeição / tal qual o tolo da colina na canção”. Como curiosidade, foi um dos primeiros discos da EMI a ter proteção anticópia, porém a tecnologia não era perfeita, dando assim a possibilidade de se copiar o disco. O título da última canção, “Hinchley Pond”, é o nome da fazenda dos pais de Lucy Needham-Vianna, esposa de Herbert, falecida no acidente. A música é sensível e dolorida e os versos “Oh, céu azul / Leve-me para lá / Me deixe na pequena lagoa / Onde eu tinha uma nova vida / Onde meu verdadeiro amor pertence” são os mais pungentes do compositor, que pede emocionadamente para morrer junto de sua amada na mesma lagoa que a afogou. O disco ainda tem a excelente “O calibre”, o hit matador do álbum (“Eu vivo sem saber / Até quando ainda estou vivo / Sem saber o calibre do perigo / Eu não sei da onde vem o tiro”), a lindíssima “Seguindo Estrelas” (provavelmente a balada mais linda da banda, parece ter sido lançada ontem), a ótima “Longo Caminho”, a também belíssima “Cuide bem do seu amor” (ok, ok, também séria candidata a balada mais linda da banda) e “Flores e Espinhos”, joia escondida no álbum. É um discaço, fundamental na discografia da banda, e só está em 5º lugar porque os quatro que vêm pela frente são todos obras-primas excepcionais. A tempo: em uma tradução livre, “Running on the Spot” significa “correr sem sair do lugar”…


4º. Bora-Bora [1988]

Se Selvagem? (1986) já havia indicado uma banda que começava a amadurecer seu som e ampliar suas influências, o quarto disco do grupo, Bora-Bora, é o álbum em que Os Paralamas do Sucesso dão o salto artístico decisivo, consolidando-se como uma das maiores forças do rock brasileiro dos anos 80. Sem Bora-Bora, não teríamos Õ Blésq Blom, dos Titãs, lançado um ano e meio depois, bem como não veríamos surgir bandas como Skank, Móveis Coloniais de Acaju, Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi na década seguinte. Foi a primeira experiência de produção “da casa”, assinada por Carlos Savalla em parceria com a própria banda, e marcou a entrada definitiva dos sopros no som do trio. Gravado no Estúdios EMI-RJ em fevereiro de 1988 e mixado no Townhouse Studios, em Londres em março do mesmo ano, o disco revela uma banda segura, ousada e disposta a experimentar, misturando reggae, rock, música latina e até jazz, com uma coesão impressionante em um lançamento que tinha o lado A mais alegre e o lado B mais introspectivo, revelando as agruras do fim do relacionamento de Herbert Vianna com Paula Toller. A terceira canção do álbum, a faixa-título “Bora-Bora” já anuncia essa expansão: uma canção que traz um ritmo contagiante, repleto de percussões tropicais, arranjos de metais precisos e a guitarra de Herbert Vianna alternando entre riffs marcantes e toques quase sutis, num equilíbrio perfeito, ou seja, temos aqui a especialidade da casa: os hits matadores do grupo. A letra, apesar da leveza, traz uma energia vibrante, evocando uma sensação de fuga, liberdade e festa, como se convidasse o ouvinte a um lugar idealizado de alegria e (des)encontros — uma espécie de paraíso pessoal, a Pasárgada de Herbert Vianna, na qual a perda da amada (Toller?) para um outro (Leoni?), explicitada nos versos “Te imagino com outro cara / Numa praia em Bora-Bora / Agora!”, não revela tristeza, apenas o amargo sabor da vontade de fugir (“Me imagino embriagado / Jogado no chão / De uma espelunca / Nunca! // Já não penso em nada disso / O ciúme é um laço / Um artifício meu / Eu já não sou mais tão menino / Pra me pintar / Da cor do teu destino teu”). Os músicos tocam como nunca e, definitivamente, dão uma aula de arranjo e uso de metais. “O Beco”, por sua vez, ao abrir o álbum, apresenta um lado mais introspectivo e atmosférico, quase cinematográfico — o título e a sonoridade remetem a uma caminhada por ruas estreitas e misteriosas, onde os arranjos ganham camadas e texturas que reforçam o clima de suspense e emoção contida. É uma das faixas que mostram a versatilidade da banda, transitando entre o pop acessível e a experimentação sonora, herança direta de Selvagem? (1986). “Quase um Segundo” (“Às vezes te odeio por quase um segundo / Depois te amo mais”) traz uma carga emocional poderosa. Com uma letra que fala da efemeridade do tempo e das relações, a música tem um arranjo mais contido, permitindo que a voz de Herbert se destaque em uma interpretação cheia de sensibilidade. O uso delicado dos metais e a bateria com toque mais sutil dão à faixa uma atmosfera de melancolia elegante. Porém, o auge do disco é a magnífica “Uns Dias”. A letra funciona como uma confissão contida — fala de ausências, de deslocamento emocional e do retorno ao que já não é mais como era antes: “Mas você chegou já era dia / E não estava sozinha / Eu tive fora uns dias / Eu te odiei uns dias / Eu quis te matar”. Não é um desabafo explosivo, é mais uma constatação melancólica: o narrador registra um hiato (“tive uns dias fora”) e observa as pequenas fraturas que isso provoca nas relações, ou seja, perdeu a sua amada para outro, o que torna a canção universal — quem nunca quis se explicar quando esteve ausente de seu amor que atire a primeira pedra: “Eu tive fora uns dias / Numa onda diferente / E provei tantas frutas / Que te deixariam tonta / Eu nem te falei / Da vertigem que se sente // Eu nem te falei / Que eu te procurei / Pra me confessar / Eu chorava de amor / E não porque eu sofria”. Herbert entrega a canção com uma fragilidade controlada: não se escora em gritarias nem em dramalhões, canta quase por dentro da sílaba, com pequenas raspagens de voz que humanizam a mensagem. Essa modulação cria empatia imediata — ouvimos alguém que se arrepende, que pensa alto, sem teatralidade. O arranjo e a melodia são incomuns, pois enquanto a melodia prioriza contornos ligados à voz, o arranjo intensifica os acordes que criam uma sensação de “meio-tom” emocional: nem totalmente resolvidos, nem tensos demais. Essa paleta harmônica permite que o ouvido sinta uma leve tensão que se resolve em pequenos alívios no refrão, sem alardes. A dinâmica da faixa cresce de forma orgânica — começa íntima, amplia-se no refrão e recolhe no verso seguinte — e isso confere à canção um fluxo narrativo que parece contar uma história em poucos minutos. Certamente, um dos pontos máximos da carreira dos Paralamas e, dentre a coleção de hits matadores, certamente é pódio. Nosso quarto lugar, portanto, é um divisor de águas na discografia dos Paralamas — um álbum que amplia as fronteiras do rock nacional e ajuda a definir uma nova identidade para a banda. O risco que eles tomaram aqui, combinando sofisticação musical (“Fingido”, “Dois Elefantes”, “O Fundo do Coração”) e apelo popular (nas faixas “Bundalelê”, “Sanfona”, “Um a Um”, clássico nordestino de Edgard Ferreira) foi recompensado com uma obra que resiste ao tempo e continua a surpreender e encantar fãs e críticos. Se você, caro leitor, não possui nenhum disco dos Paralamas, Bora-Bora é o must have em qualquer boa discoteca.


3º. Hey Na Na [1998]

Chegar a 1998 com mais de 15 anos de carreira, e sem jamais ter lançado um disco ruim, já era um feito (a banda já contava oito lançamentos), mas os Paralamas não se contentaram com a regularidade: com Hey Na Na, eles entregaram um álbum vibrante, versátil e cheio de fôlego novo — daqueles que soam tão inspirados que fazem o ouvinte pensar que está diante de uma banda no auge da juventude. Produzido por Chico Neves (que vinha se destacando por seu trabalho com artistas de linguagem moderna e experimental), o disco é uma prova de que é possível uma banda atualizar o seu som sem perder a identidade. O hit matador “Ela Disse Adeus” já mostra o tom: uma balada comovente, de melodia irresistível e letra que traduz como poucas a dor do abandono (“Ela disse adeus, e chorou / Já sem nenhum sinal de amor / Ela se vestiu, e se olhou / Sem luxo, mas se perfumou / Lágrimas por ninguém / Só porque, é triste o fim / Outro amor se acabou”). É daquelas canções que nascem clássicas, e que continuam emocionando em qualquer show. Há também a belíssima “O Amor Não Sabe Esperar” (com participações luxuosas de Marisa Monte e Dado Villa-Lobos), que amplia a paleta sonora do trio, trazendo delicadeza e refinamento pop sem jamais soar forçada. O álbum também carrega um contexto importante: foi o último de inéditas lançado antes do acidente de ultraleve de Herbert Vianna, em 2001. Ouvi-lo hoje, sabendo do que viria a seguir, dá um sabor agridoce — como se Hey Na Na fosse um brinde à vitalidade plena da banda, pouco antes de um período de provação e reinvenção. Quero destacar novamente a produção de Chico Neves e afirmar que ela merece menção especial: os arranjos são detalhistas, mas não engessados; há espaço para que a bateria de Barone respire, o baixo de Bi pulse com liberdade, e a guitarra de Herbert, ora limpa e cristalina, ora suja e distorcida, dialogue com os metais e teclados sem atropelos. Com um repertório sem pontos fracos, Hey Na Na mostra os Paralamas com uma segurança rara, dominando todos os terrenos que se propõem a explorar. É um disco que equilibra emoção e energia, maturidade e frescor, e que, em muitos momentos, parece feito sob medida para provar que o trio ainda sabia surpreender — e muito, basta ver “O Trem da Juventude”, canção que tem um arranjo difícil, que não a torna nem uma balada e nem um rock, deixando-a instigante e deliciosa. Só Herbert Vianna e seus parceiros para nos proporem uma levada em que se encaixem tão naturalmente versos como (quero ver você cantá-los sem enrolar a língua e no ritmo quebrado da música): “Minha alma é lavada, desencardida / E quem destratou a sua vida foi você / Desamarrada, desimpedida, desarmada / Voa livre pelo mundo até escurecer // Quando faz frio perto do mar / Quando não há nuvens no céu / Quando sopra o vento terral de manhã / Vale a pena acordar pra ver // Sempre atrasada, sempre iludida / De que vai voltar a vida que você deixou / O tempo, os homens / As marcas de noites e dias mal vividos / Nada disso te perdoou // Rede de surfistas no mar / Ligados por computador / Novas maravilhas pra se admirar / Não me venha com a velha dor // O trem da juventude é veloz / Quando foi olhar já passou / Os trilhos do destino cruzando entre nós / Pela vida, trazendo o novo”. E para você que é fã da banda e que, provavelmente, o colocaria atrás de Bora-Bora (1988), sugiro uma audição atenta de canções que costumam não chamar tanta atenção nesse discaço que me orgulho de poder colocar no pódio: a madura e delicada “Santorini Blues”, que fecha o disco e indica o quão versátil era Herbert Vianna aos 37 anos, compondo como alguém que já tivesse uma vida inteira de produções artísticas, pois aqui ele troca, como poucos, a urgência pelo contemplativo: imagens de viagem, mares azuis e um lirismo solar que faz o álbum pousar em um lugar idílico com doçura — prova de que, quando querem, os Paralamas também são mestres do detalhe; ouça também “Viernes 3 AM” e perceba, novamente, como esse sujeito era bom de composição nessa música extremamente angustiada e dolorida, nessa releitura respeitosa de Charly García que Herbert canta com sobriedade e um travo de madrugada portenha; e, por fim, a música mais bonita da banda: “Brasília 5:31” (com “Here Comes the Sun” dos Beatles de música incidental como um raio atravessando o céu de concreto daqui da capital, além da guitarra certeira de Dado Villa-Lobos), canção que muita, mas muita gente que viveu e vive na estrada, em turnês e shows, adoraria ter composto… Com 15 anos de sucesso ininterrupto, Herbert Vianna soube refletir lindissimamente em seus versos e música o outro lado da fama. 3º lugar merecido na classificação para essa coleção de grandes canções, até porque os dois álbuns seguintes são de outro planeta.


2º. O Passo do Lui [1984]

Embora o disco de estreia Cinema Mudo (1983) tenha apresentado ao Brasil aquele trio irreverente que misturava ska, reggae e rock com sotaque carioca e energia juvenil brasiliense, foi em O Passo do Lui que os Paralamas realmente encontraram a sua voz — e que voz! Gravado no início da explosão dessa nova safra do rock brasileiro (basta lembrar que, no mesmo ano, tivemos as estreias de Kid Abelha, Barão Vermelho e Titãs), com produção de Marcelo Sussekind guitarrista do Herva Doce, e aqui muito mais inspirado do que no trabalho anterior, já que trouxe a mudança de sonoridade desejada pela banda desde o primeiro disco, com a bateria e o baixo mais presentes, o álbum é uma sucessão de canções que, quatro décadas depois, continuam onipresentes nas boas rádios do ramo, nos shows e na memória afetiva de pelo menos duas gerações, composições que marcariam a banda e o rock brasileiro É impossível falar desse disco sem mencionar o seu repertório matador de hits emblemáticos. Quem me acompanha aqui na Consultoria sabe que tenho minhas idiossincrasias e uma delas é a de que uma banda se torna grande quando passa a ter um hino, e o dos Paralamas é “Óculos”, música que abre o disco. Hoje em dia uma música pop começar com quarenta e poucos segundos de introdução instrumental seria inimaginável, como acontece em “Óculos”, mas são justamente esses segundos que explicam o salto que o Paralamas deu. Bi e Barone estavam ali entrosadíssimos, bem captados, baixo e bateria pulsantes na cara do ouvinte, chacoalhando-o por inteiro e, ao mesmo tempo, ao fundo, algo diferente, um ingrediente especial que, aos poucos ia se fazendo notar: o talento de Herbert Vianna como guitarrista, seja compondo riffs espertos, solando ou criando ambiências. A batucada que marca a introdução de “Óculos” já mostra o quanto de evolução o álbum propõe. Teclados jamaicanos marotos servem de camada para uma performance extraordinária de Barone na bateria, deixando sua principal referência na época, Stewart Copeland, do The Police, em maus lençóis para igualá-la. A canção dá o tom para todo o restante do álbum. Sem dar descanso, vem em seguida “Meu Erro”, provavelmente a música mais emblemática da carreira da banda, tão irresistível quanto “Óculos” e com uma letra improvável para um sucesso tão animado: “E o meu erro foi crer / Que estar ao seu lado bastaria”. “Fui Eu” vem na sequência, apresentando ao mundo o que é uma balada roqueira brasileira com pegada de ska e mais uma letra bem sacada de Herbert Vianna. Com três faixas, o álbum já mostrava que estávamos diante de três monstros em seus instrumentos. “Romance Ideal”, com um dos solos mais lindos de Herbert Vianna, delicado e certeiro, já apontava para o futuro de Herbert como compositor de baladas perfeitas. “Ska” (impossível não se levantar para dançar já a partir do saxofone inicial de Léo Gandelman) botou o Brasil inteiro no passo do Lui! E a letra, com sua agressividade ensolarada? “A vida não é filme, você não entendeu / Ninguém foi ao seu quarto quando escureceu / Saber o que passava no seu coração / Se o que você fazia era certo ou não / E a mocinha se perdeu olhando o Sol se por / Que final romântico, morrer de amor / Relembrando na janela tudo que viveu / Fingindo não ver os erros que cometeu // E assim / Tanto faz / Se o herói não aparecer / E daí / Nada mais // A vida não é filme, você não entendeu / De todos os seus sonhos não restou nenhum / Ninguém foi ao seu quarto quando escureceu / E só você não viu, não era filme algum”. Esse era o lado A. Acha que o lado B dava descanso? “Mensagem de Amor”, com sua pura poesia pop, com um refrão que é daqueles que grudam na alma e uma das melhores guitarras de Herbert e “Me Liga”, rock simples e direto, impossível de ouvir parado sem querer dançar coladinho, mantinham o alto nível do álbum. Aliás, sobre “dançar coladinho”: se você tem menos de 40 anos, não tem como entender o que eram esses tempos pré-internet, pré-computador, pré-locadoras, pré-CD’s, pré-TV a Cabo: o Brasil da TV aberta e das rádios. Nas festinhas, levávamos nossos LP’s e era assim que a festa rolava, com o álbum dos Paralamas tocando sem que pulássemos nenhuma música. Afora isso, todas elas figuram entre as melhores composições dos anos 80 no Brasil, e juntas já seriam suficientes para colocar O Passo do Lui no topo de qualquer lista. Há 40 anos atrás, todo dia, a todo instante, tocava Paralamas na rádio e na TV. Mas o disco vai além dos hits óbvios. “Assaltaram a Gramática”, parceria com Lulu Santos e Arnaldo Antunes, é um exercício de lirismo e inventividade, brincando com as palavras de forma quase tropicalista. “Menino e Menina” tem uma ternura rara no reggae leve e animado, e até mesmo a quase sempre esquecida instrumental “O Passo do Lui” (que dá nome ao álbum e homenageia o percussionista argentino Lui, figura queridíssima no círculo da banda daqui de Brasília) tem uma energia contagiante. O Passo do Lui é o momento Beatles da banda, daqueles álbuns raros em que praticamente todas as faixas são candidatas a clássicos. É a síntese de um momento em que o rock brasileiro ainda soava fresco, divertido e cheio de possibilidades, e no qual os Paralamas, aos 20 e poucos anos (Herbert Vianna e Bi Ribeiro tinham tinha 23 e João Barone, 22), já estavam prontos para voos muito mais altos. Se ele não ficou em primeiro lugar neste ranking, é apenas porque Selvagem? (1986), o álbum seguinte na discografia da banda, é ainda mais completo e histórico. Mas, em termos de impacto cultural e de resistência no tempo, este disco está no mesmo patamar — e, para muitos fãs, será sempre o melhor. O legado de O Passo do Lui é o de um disco com tanto frescor, tão certeiro e redondo, que é difícil não querer ouvi-lo de novo e de novo, assim como é difícil recusar mais um copo de água geladinha em um dia de calor.


1º. Selvagem? [1986]

Se existe um disco que sintetiza o espírito criativo, político e musical dos Paralamas do Sucesso, esse disco é Selvagem?. E não é apenas pelo repertório excelente, ou pela produção de primeira linha (assumida por Liminha, no auge de sua genialidade), mas porque ele é, ao mesmo tempo, um retrato fiel do Brasil dos anos 80 e um manifesto artístico de uma banda no seu ápice de energia e inspiração. Gravado entre o final de 1985 e o início de 1986, Selvagem? é a obra que colocou Herbert, Bi e Barone no patamar de gigantes — não mais como “a banda divertida do ska brasileiro”, mas como músicos de peso, capazes de misturar reggae, rock, funk, música latina e crítica social em um mesmo caldeirão sonoro. É aqui que estão “Alagados”, “A Novidade” e “Selvagem” — três das maiores canções já compostas no país. Xeque-mate. São três aulas de como compor grandes canções e que qualquer aspirante a músico deveria estudar. “Alagados” é, com seus cinco minutos e dois segundos, um hino urbano dos nossos muitos Brasis, obra-prima composta por Hebert, Bi e Barone, com um refrão que qualquer brasileiro sabe de cor (“Alagados, Trenchtown, Favela da Maré / A esperança não vem do mar / Nem das antenas de TV / A arte de viver da fé / Só não se sabe fé em quê / A arte de viver da fé / Só não se sabe fé em quê”) e uma letra que costura realidades distantes e iguais, do subúrbio carioca à Jamaica. A guitarra de Herbert Vianna nessa música é, sozinha, uma obra de arte, possui os genes de Mestre Vieira e a harmonia típica da guitarrada paraense. Já “A Novidade” é outra obra-prima dentre o que de melhor já foi composto em nossas terras, melódica e poética, dessas que só poderiam mesmo nascer de um telefonema entre Gil e Herbert, (assista nesse vídeo como ela foi feita). O tema da desigualdade, tão caro à Gil, surge num rompante, como ele mesmo conta em seu livro Todas as letras, lançado em 2022, com organização de Carlos Rennó e textos de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik, após Herbert ter lhe mandado, via Sedex, a gravação instrumental da música num K7, que Gil retirou no correio: “Fui pro hotel e botei a fita no gravador. Depois de umas quatro passadas, saí anotando. Eram mais ou menos duas da tarde. Às três horas eu estava ligando pro estúdio já para passar a letra. Foi uma coisa assim: bum! A letra veio como um tiro certeiro, absolutamente de chofre, inteira. E de um modo surpreendente até pra mim, porque, mesmo sem tempo pra qualquer avaliação crítica no dia seguinte, resultou no que eu acho um dos meus melhores textos — pela escolha e pela maneira de tratar o assunto, pela concisão e pela elegância da construção.”. Gil conta também que a inspiração para a escrita da letra veio de um estímulo visual e outro sonoro: “O quarto do hotel dava para o mar, e eu estava escrevendo na mesinha de frente para a janela, com a visão do mar ao fundo. Daí a ideia da sereia que vinha dar à praia. Algumas sílabas no início do cantarolar do Herbert na fita me insinuaram algo que soava como a palavra ‘novidade’, e eu aproveitei essa sugestão sonora. O restante veio por acaso mesmo.”. E completa: “O tema da desigualdade sempre fez parte do modo de inserção da minha geração na discussão dos problemas da sociedade; do nosso desejo de expressá-los. Universitário por excelência, o tema é, portanto, anterior e recorrente em meu trabalho. Está em Roda, em Procissão, em Barracos. Agora, em ‘A Novidade’, a imagem da sereia é que dá a partida para o tratamento da questão; a novidade é essa. Pode-se imediatamente pensar no Brasil, mas é sobre o Terceiro Mundo em geral; mais: sobre todo o ‘mundo tão desigual’, mesmo, de que fala o refrão.”. A sereia, aqui, é usada como metáfora para a desigualdade social, porque é metade peixe (“Um grande rabo de baleia”) – desejada para quem necessita matar a fome – e metade humana (“O busto de uma deusa maia”) – que é contemplada/adorada por quem não precisa matar a fome: Ou seja, um “paradoxo estendido na areia: alguns a desejar seus beijos de deusa, outros a desejar seu rabo pra ceia”. No documentário que celebra os 30 anos dos Paralamas do Sucesso, os integrantes da banda contam que estavam no estúdio quando receberam a letra de Gil e que Herbert — ao telefone com o baiano — disse que começou a chorar muito e que entrou instantaneamente no que chamou de uma “CTI emocional”. O clipe da canção foi gravado em 16 viagens da barca que fazia a travessia Rio-Niterói, mostrando cenas de super lotação, de revolta e do cotidiano do trabalhador brasileiro. Já “Selvagem”, de Herbert e Bi, é uma pedrada que carrega o DNA do reggae e a fúria do rock, seja na guitarra, seja na letra cantada com fúria e atrevimento. Obra-prima de versos cortantes, “Selvagem” continua, décadas depois, assustadoramente atual. A repressão policial contra manifestações democráticas, o discurso endurecido em nome da “lei e da ordem”, governos que, em vez de oferecerem soluções, fabricam novas crises; os “meninos nos sinais, mendigos pelos cantos” — agora ainda mais numerosos numa paisagem urbana corroída por crises econômicas sucessivas — e os negros, cansados de apanhar, carregando na pele e na memória o peso de séculos. A canção, curta e circular, genialmente estrutura-se numa espiral que se repete em quatro ondas — a polícia, o governo, a cidade, os negros —, como se desse voltas num mesmo labirinto. Talvez seja esse o retrato mais fiel do Brasil: um país que gira sobre suas próprias feridas, incapaz de cicatrizá-las. Ou, quem sabe, o canto inquieto de um lugar que nunca deixou de ser, no fundo, selvagem: “A polícia apresenta suas armas / Escudos transparentes, cassetetes / Capacetes reluzentes / E a determinação de manter tudo / Em seu lugar // O governo apresenta suas armas / Discurso reticente, novidade inconsistente / E a liberdade cai por terra / Aos pés de um filme de Godard // A cidade apresenta suas armas / Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos / E o espanto está nos olhos de quem vê / O grande monstro a se criar // Os negros apresentam suas armas / As costas marcadas, as mãos calejadas / E a esperteza que só tem quem tá / Cansado de apanhar” O que temos, assim, com essas três joias, são três dos hits mais matadores de nosso cancioneiro nacional. A sonoridade do disco é cristalina e quente ao mesmo tempo: a bateria de Barone pulsa com autoridade, o baixo de Bi Ribeiro é um dos mais criativos da música brasileira (ouça “Alagados” isolando o baixo e entenderá), e Herbert Vianna está em um momento de pura inspiração — tocando, cantando e compondo como quem sabe que está fazendo (e vivendo a) história. No aspecto lírico, Selvagem? dialoga com um Brasil em transição: fim da ditadura, abertura política, desigualdade social, (des)esperança e frustração misturados. É um álbum que poderia ser estudado como documento histórico e, ainda assim, funcionar como trilha sonora de qualquer verão. Passados quase 40 anos de seu lançamento, ele continua fresco, atual, dançante e potente. Colocá-lo em primeiro lugar não foi tarefa difícil: entre tantas obras-primas da discografia dos Paralamas, esta é a que melhor equilibra genialidade artística, impacto cultural e qualidade musical.

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