Datas Especiais: 50 Anos de Novo Aeon

Datas Especiais: 50 Anos de Novo Aeon

Por Marcelo Freire

Há discos que parecem nascer sob um signo: não apenas registros sonoros, mas mensagens codificadas, enigmas lançados no tempo. Novo Aeon, de Raul Seixas, é desses. Lançado em 12 de novembro de 1975, o álbum permanece como uma pedra filosofal do rock brasileiro: não se esgota, não se acomoda, não se torna mero registro nostálgico. É, antes, uma obra que continua a irradiar dúvidas e fascínios, como se Raul, ao lado de Paulo Coelho, tivessem realmente intuído que o futuro não viria pronto, mas precisaria ser inventado — a cada audição, a cada geração. Meio século depois, o álbum mantém-se como um farol de rebeldia, mistério e invenção — uma obra que combina teorias esotéricas, filosofias de botequim, crítica social, cordel, blues e delírio rock’n’roll, numa alquimia rara na música popular brasileira. Se em discos anteriores, Raul Seixas já havia ensaiado sua persona de maluco beleza, aqui ele a redimensiona com um discurso mais ousado (ainda que, à época, parecesse mais conservador), entrelaçando as sombras e as luzes de sua própria busca existencial. Novo Aeon não é apenas um repertório de canções: é um manifesto, o seu rito de passagem profissional, além de provocação metafísica. Cada faixa, seja pela ironia debochada, seja pela dramaticidade quase trágica, funciona como peça de um quebra-cabeça maior, em que o artista se coloca como arauto de uma “nova era”, antecipando debates sobre liberdade individual, espiritualidade e ruptura cultural. Celebrar seus 50 anos é, portanto, revisitar uma obra que ainda ressoa como intempestiva e necessária. Mais do que nostalgia, o que Novo Aeon nos oferece é a lembrança de que o rock brasileiro pode ser tão filosófico quanto visceral, tão utópico quanto contraditório. Em tempos de conservadorismo e repetição, Raul continua a sussurrar — ou gritar — que o mundo está sempre à beira de se reinventar.

Foto de Frederico Mendes / Acervo Kika Seixas.

Em 1975, Raul Seixas já não era mais uma promessa: era um fenômeno. Dois anos antes, em 21 de julho de 1973, Raul já havia conquistado notoriedade com Krig-ha, Bandolo!, que trouxe clássicos imediatos como “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa” e o seu hino (sempre defendo que todo grande artista só se torna grande quando possui um hino): “Metamorfose ambulante”, apresentando ao Brasil aquele roqueiro nordestino que falava de questões sociais, alienação e autocrítica com uma coragem inédita.

O mega-sucesso Gitâ com a inscrição Imprimatur Sociedade Alternativa apresentada pela primeira vez

Mas foi com Gitâ, lançado em julho de 1974, que ele se tornou um verdadeiro fenômeno nacional. A faixa-título, inspirada no Bhagavad Gita, dialogava com religiosidade e filosofia em um nível raríssimo para a música popular e virou (mais um) hino radiofônico, fazendo com que o disco vendesse milhares de cópias e emplacasse sucessos que projetariam sua figura para além da contracultura, posicionando Raul no centro da cultura popular brasileira. Além dessa pérola em sua obra, o disco trazia “Medo da chuva”, “Sociedade alternativa” e uma de suas melhores (e mais subestimadas) músicas: “Loteria da Babilônia”, inspirada em um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges (um dia, quem sabe, escreverei sobre essa relação nessa música). O seu desejo para o passo seguinte, portanto, não seria o de repetir a fórmula, mas de arriscar ainda mais — e aqui há um dos pontos-chave para entender o disco, já que Raul rompe com o seu empresário, Guilherme Araújo, justamente após o estrondoso sucesso de Gitâ.

Guilherme fôra responsável pela imagem dos tropicalistas no final da década de 1960 e início da década de 1970 e construiu para Raul uma personagem extravagante e agressiva, baseada na sua superexposição por meio de práticas arrojadas de marketing, algo incomum na época. Raul prefere seguir sem a sua tutela, justamente por não concordar com o modo como a sua imagem estava sendo apresentada, o que é perceptível na diminuição da quantidade de simbologias em seus discos (sobretudo nas letras). Novo Aeon será, assim, o penúltimo disco com o selo da “Sociedade Alternativa”, voltando a aparecer somente em seu último disco como artista solo, A Pedra do Gênesis, de 1988. Desse rompimento com Araújo, Raul traz menos símbolos no material do álbum, insere menos misticismo nas letras, que passam a refletir mais os problemas do cotidiano, bem como diminui drasticamente as entrevistas e evita o uso da sua imagem para impactar, para chocar (não à toa, o cantor passa a cortar mais curto o seu cabelo, como se vê na intrigante foto da capa).

Paulo Coelho (esquerda) e Raul Seixas (direita) em foto de Galzito, provavelmente em 1974 – uma das melhores duplas de compositores do rock mundial.

Posto isso, Novo Aeon surge não como tentativa de prolongar o êxito comercial de Gitâ, mas como obra que assumia riscos estéticos e líricos, mergulhando de cabeça no esoterismo, na filosofia e no humor ácido. Talvez por isso não tenha sido recebido de imediato como o grande sucesso que o antecedeu, sendo considerado por boa parte da crítica como um fracasso (a própria gravadora, a Phillips, considera “frustrante” a baixa vendagem, ainda que tenha feito uma ótima divulgação do álbum, contando com o lançamento de um compacto duplo e de dois clipes musicais no programa dominical da Rede Globo, o Fantástico). A questão é que, depois da explosão no ano anterior de Gitâ, um dos álbuns mais vendidos da década, o baiano tinha alcançado uma posição única: era ao mesmo tempo ídolo popular, enigma filosófico e roqueiro marginal que falava de liberdade em plena ditadura militar. Nesse contexto, lançar Novo Aeon era corresponder às expectativas criadas tanto por sua genialidade musical quanto pela linha criada por Guilherme Araújo para a sua carreira. Raul não queria apenas apresentar um novo punhado de canções de sucesso que repetissem a fórmula, mas sim propor um rito de passagem coletivo: um convite a entrar em outra era — esotérica, libertária, anárquica — em que o rock brasileiro se afirmava como veículo de rebeldia e revelação, ou seja, não como tentativa de prolongar o seu êxito comercial com Gitâ (1974), mas como obra que assumia riscos estéticos e líricos.

O título não poderia ser mais explícito: Raul evocava o “novo éon” de Aleister Crowley (“æon ” como uma transliteração mais direta do grego) que tem origem na Grécia e pode significar “vida”, “geração”, “tempo” ou “eternidade”; No gnosticismo, “éon” refere-se às entidades divinas que emanam de Deus; e, por fim, na filosofia e na mitologia, pode se referir a um período de tempo extremamente longo, como um século ou uma era), que seria, portanto, a era de Horus, do “faça o que tu queres”. O tempo, e esta coluna da Consultoria do Rock, trataram, portanto, de reposicionar Novo Aeon ao que ele realmente é desde o seu lançamento: uma das obras-primas de Raul Seixas e, sem exagero, um dos álbuns mais instigantes do rock brasileiro, ainda que visto por parte da crítica como um disco “difícil” ou “excessivamente hermético”. Ao mesmo tempo, é inegável que consolidou Raul como um artista imprevisível e ousado, alguém que não se deixava aprisionar por expectativas de mercado. A censura acompanhava cada movimento dos artistas nacionais de perto (e pensar que estivemos muito perto de retornar a isso…), e o simples fato de Raul brincar com símbolos religiosos já era, em si, um gesto de enfrentamento. Se não foi um campeão de vendas, tornou-se um marco de autenticidade artística — talvez a mais complexa e visionária de todas as suas obras.

Aleister Crowley nos trajes da Ordem do Templo do Oriente (“Ordo Templi Orientis” é o nome latino da organização ocultista fundada por Crowley). Foto de Arnold Genthe em 1919.

Em 1975, o Brasil vivia tempos sombrios. Com o auge da Ditadura Militar, em pleno governo Geisel, a censura se sofisticava, não apenas cortando versos, mas moldando discursos. Na contracultura, buscava-se um refúgio: o psicodelismo ainda reverberava, o misticismo ganhava força, e havia quem recorresse à astrologia, à alquimia e às filosofias orientais como forma de escapar do peso sufocante da realidade. Raul Seixas, que já se declarava como “metamorfose ambulante”, captou essa atmosfera. O que poderia soar como delírio esotérico era, na verdade, também uma forma de resistência. Novo Aeon não se limita a propor uma “nova era” espiritual; ele abre frestas de significações num Brasil cinzento, como se dissesse: a liberdade ainda é possível, mesmo que precise ser sussurrada em símbolos. O rock já começava a ocupar um espaço mais sólido no mundo, mas ainda era visto no Brasil como elemento marginal diante da MPB engajada ou da música radiofônica de fácil consumo.

Nesse cenário, a música tinha um papel paradoxal: por um lado, artistas eram perseguidos e exilados; por outro, discos ousados encontravam brechas para circular e alcançar o público. Se no exterior, 1975 era um ano de experimentações radicais, com Bowie encarnando o andrógino Thin White Duke em Young Americans, com o Pink Floyd consolidando sua crítica ao sistema em Wish You Were Here, Supertramp com o ótimo Crisis? What Crisis?, que continha várias críticas sociais em seus sucessos radiofônicos aparentemente inofensivos e com Bob Dylan trazendo a intensidade lírica de Blood on the Tracks, por aqui tínhamos um turbilhão criativo de igual (ou talvez maior) quilate: Caetano lançava Jóia, Gil soltava seu Refazenda na praça, Milton Nascimento expandia os horizontes do Clube da Esquina com sua obra-prima Minas e Tim Maia apresentava ao mundo os 2 volumes de seu Racional. Nesse panorama, Raul se destacava por ser um elo raro entre o rock internacional e a canção brasileira — sem ser cópia, sem ser mero tradutor, pois era a figura única capaz de dialogar tanto com a contracultura internacional quanto com a tradição brasileira de lirismo e irreverência.

O até hoje enigmático Marcelo Motta, mentor de Raul Seixas e Paulo Coelho, fotografado por Oscar Schilag no início dos anos 70 no Rio de Janeiro.

O disco é um verdadeiro dream team que merece ser escalado em sua totalidade, pois uma de minhas teses é a de ser defensor de fichas técnicas, e no Brasil somos péssimos em reconhecer os nossos talentos “invisíveis”, porém babamos o ovo dos estrangeiros em cada detalhe, o que torna um verdadeiro crime não haver, nesse e em diversos outros lançamentos nacionais, informações disponíveis que especifiquem os músicos de sessão que participaram especificamente de cada gravação… Raul Seixas não costuma ser lembrado por sua excepcional qualidade e conhecimento musical, mas o fato é que sabia como nenhum outro artista no Brasil escolher seus parceiros musicais, pois tinha a capacidade incrível de saber que músico seria o ideal para cada faixa, daí escolher vários mestres de um mesmo instrumento — comece a ouvi-lo prestando atenção (preferencialmente com bom fones) no instrumental… Muitos desses monstros atuaram com tanta, mas tanta gente, que não vou ter sequer espaço aqui na coluna para listar em sua totalidade seus currículos, portanto serei breve em cada um dos respectivos portifólios, mencionando uma ou outra coisa na maioria dos casos, embora alguns realmente mereçam mais detalhes por sua profusão de colaborações — colocarei sempre em letra maiúscula os músicos do álbum em meio à constelação de grandes artistas:

• O produtor (e também responsável pela mixagem) foi ninguém mais, ninguém menos que o MARCO MAZZOLA (que também produzira os dois anteriores de Raul Seixas e, ao longo de sua prolífica carreira, meio mundo da música, tais como Rita Lee, Gal Costa, João Bosco, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Djavan, Gilberto Gil, Chico Buarque, Simone, Elis Regina, Caetano Veloso, Banda Eva, Angélica, Paul Simon, Miles Davis — em parceria com o Quincy Jones —, Manhattan Transfer e por aí vai, dê um google no nome dele e se assuste);

• Os arranjos foram feitos genial maestro e arranjador uruguaio MIGUEL CIDRAS (um dos compositores do grande sucesso de Sidney Magal, “Sandra Rosa Madalena, ‘a Cigana'”.);

• Tocando violão, temos ANTENOR GANDRA (Roberto Carlos, Belchior, Cassiano — inclusive, o solo de “A lua e eu” é dele), Daudeth Azevedo, mais conhecido como NECO (esse tocou em mais de 500 — sim, QUINHENTOS — álbuns de nossa MPB, gente como Miltinho, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Elis Regina, além de ter sido dos grupos Os Ipanemas e Os Catedráticos, é outro que se você der um google no nome dele se assustará), RICK FERREIRA (que também era produtor e que já tocou com os mais diversos nomes da música brasileira, de Erasmo Carlos e Guilherme Arantes a Ana Carolina e Zezé di Camargo e Luciano, de Leonardo e Chrystian & Ralf a Zé Ramalho, Caetano Veloso, Barão Vermelho, Matanza, Legião Urbana…), além do próprio RAUL SEIXAS;

• Na guitarra, além do ANTENOR GANDRA e RICK FERREIRA, temos GABRIEL O’MEARA (O Peso, Maria Bethânia, Tim Maia), ALMIR BEZERRA (The Fevers, Erasmo Carlos, Eduardo Araújo), PEDRINHO DA LUZ (também do The Fevers, Hyldon, Gerson King Kombo) e LUIZ CLÁUIDO RAMOS (irmão do cantor e seresteiro Carlos José, gravou com Elis Regina, Erasmo Carlos, Odair José, Rita Lee, Carlos Lyra, Nara Leão, até com Mick Jagger o sujeito já gravou);

• No piano, o ícone ANTONIO ADOLFO (Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Elis Regina), um dos grandes nomes esquecidos da Bossa Nova; o já mencionado uruguaio MIGUEL CIDRAS, e HUGO BELLARD (que fez os arranjos de A Tábua de Esmeralda de Jorge Ben, além de ter tocado com vários artistas como Tim Maia, Ivan Lins, e ser o autor do hit “Pertinho de Você”, que também arranjou e produziu; essa música é o compacto simples mais vendido de todos os tempos no Brasil, com mais de 1 milhão de cópias vendidas somente aqui, fora o que vendeu no exterior em espanhol, e mais de 50 regravações, ficando 48 semanas em 1º lugar na parada oficial das gravadoras, a ABPD);

• Nos teclados, o monstro JOSÉ ROBERTO BERTRAMI, da banda Azymuth, que também tocou com gente como Tim Maia, Erasmo Carlos, MPB-4, Marcos Valle, Erlon Chaves, Sérgio Sampaio e Gonzaguinha;

• No baixo, temos PAULO CÉSAR BARROS, irmão de Renato Barros (juntos formaram a banda Renato e Seus Blue Caps), que tocou com Reinaldo Rayol, Roberto Carlos e Erasmo Carlos; o lendário JAMIL JOANES (Som Imaginário e Banda Black Rio), que também já tocou com Elba Ramalho, Gal Costa, Luiz Melodia, João Bosco, Tim Maia e Toots Thielemans; LUIZÃO MAIA (pai do baixista Zé Luís Maia e tio do também baixista Arthur Maia), que consagrou-se na MPB tocando com nomes como Nelson Cavaquinho, Tânia Maria, Elis Regina, Tom Jobim, Gonzaguinha, Djavan; e LIEBERT BATISTA (The Fevers, Golden Boys, José Augusto, Joel Teixeira, Trem da Alegria, Bozo, Reginaldo Rossi);

• Fechando a instrumentação, na bateria, PEDRINHO BATERA (O Som Nosso de Cada Dia), que também tocou com Belchior, Jorge Ben, Chico Buarque; Ivan Miguel Conti Maranhão, o MAMÃO, da Azymuth, e que já empunhou também suas baquetas para Roberto Carlos, Jorge Ben, Paulinho da Viola, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Gal Costa e Maria Bethânia; e fechando a turma, LÉCIO DO NASCIMENTO, o eterno baterista do The Fevers.

Raul Seixas e Flávio Cavalcanti em 1974 nos estúdios da primeira emissora de televisão a operar no país, a extinta TV Tupi.

Todas as vezes em que vejo esse timaço musical, entendo por que Novo Aeon justifica o culto. E se Raul era o alquimista dos sons, Paulo Coelho foi o mago das palavras. Em Krig-ha, Bandolo!, compôs com Raul 5 das 12 músicas e em Gitâ, 7 das 12 canções; em Novo Aeon, assina 7 das 14 composições — em 2 delas (“Tente outra vez” e “A maçã”), a letra é assinada também por Marcelo Motta, que é responsável sozinho pelas letras de “Eu sou egoísta”, “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)” e “Novo Aeon”. Aliás, aqui temos outro rompimento considerável de Raul Seixas: “A Maçã” foi, inicialmente, composta por Raul Seixas em parceria somente com Marcelo Motta. No entanto, em um segundo momento, Raul “melhorou” a canção mostrando-a a Paulo Coelho, que acrescentou uma coisinha aqui e outra li na letra, e modificou um par de versos, o que levou Raul a um desentendimento com Motta e à sua expulsão da sociedade secreta Astrum Argentum, da qual Marcelo Motta era um dos líderes. Motta foi o mentor de ambos, Raul Seixas e Paulo Coelho, e foi quem lhes apresentou Aleister Crowley. Dessa forma, a parceria de Paulo Coelho é decisiva para o tom do disco, especialmente nas faixas que carregam forte densidade simbólica. Se hoje se pode discutir o peso de Paulo Coelho como escritor, é inegável que no contexto de Novo Aeon sua presença funcionou como catalisadora. Ele trouxe elementos de hermetismo, tarô, cabala e filosofia ocultista que Raul traduziu em linguagem popular. O resultado é esse amálgama único entre o sagrado e o profano, o trágico e o cômico.

Se Gitâ era a revelação, Novo Aeon é a iniciação: o álbum termina com o seu grande destaque (bem ao estilo de Raul ‘o princípio, o fim e o meio’ Seixas), a faixa-título “Novo Aeon” (com letra de Marcelo Motta), que é o coração esotérico do disco. Raul convoca Crowley, o tarot, o fim de uma era e o nascimento de outra. O arranjo mistura clima folk-rock e aura ritualística de um arranjo que combina elementos de rock progressivo com influências da música brasileira, criando uma sonoridade inovadora e envolvente. É uma canção-profecia que funciona como porta de entrada para o universo ocultista de Raul Seixas e Paulo Coelho. A música é quase uma invocação, anunciando que um ciclo se fechava para dar lugar a outro: “O sol da noite agora está nascendo / Alguma coisa está acontecendo / Não dá no rádio nem está / Nas bancas de jornais / Em cada dia ou qualquer lugar / Um larga a fábrica, outro sai do lar / E até as mulheres, ditas escravas / Já não querem servir mais / Ao som da flauta / Da mãe serpente / No para-inferno / De Adão na gente / Dança o bebê / Uma dança bem diferente”. É o hino máximo dos thelemistas (que são os seguidores da Thelema), a filosofia religiosa que Motta traz para o Brasil e da qual tem em seus discípulos Raul e Paulo dois grandes seguidores; baseada em um postulado de mesmo nome (Thelema), adotado como princípio fundamental por algumas organizações ocultistas, foi desenvolvida no início de 1900 por Aleister Crowley, um escritor inglês e mago cerimonial que acreditava ser o profeta de uma nova era, o “Æon de Hórus”, a “Lei de Thelema”, que tem no lema “Faze o que tu queres, há de ser o todo da Lei. O amor é a lei, amor sob vontade.” sua preconização máxima. Na faixa, Raul canta que “Já não há mais culpado / Nem inocente / Cada pessoa ou coisa é diferente / Já que assim, baseado em que / Você pune quem não é você?”. Espécie de prece e manifesto, Raul termina a faixa sozinho, num misto de canto, leitura apressada e declamação, sem acompanhamento musical: “Querer o meu / Não é roubar o seu / Pois o que eu quero / É só função de eu / Sociedade alternativa / Sociedade novo aeon / É um sapato em cada pé / É direito de ser ateu / Ou de ter fé / Ter prato entupido de comida / Que você mais gosta / É ser carregado, ou carregar / Gente nas costas / Direito de ter riso e de prazer / E até direito de deixar Jesus sofrer”. Faixa intensa que encerra o álbum, como se nos informasse que, a partir dali (do álbum inteiro), devêssemos seguir esses preceitos, nossa vida começando no momento em que o álbum termina, já que a canção é uma proclamação e convite: uma “nova era” está a caminho, mas não se trata apenas de mudança social — é transformação de consciência.

Se “Novo Aeon” fala em tom apocalíptico e profético de cristãos e ateus, de Jesus e Adão, da Mãe Serpente e menciona o inferno, “Rock do Diabo”, certamente um de seus melhores rocks, traz o já famoso lado provocador de Raul, com letra de Paulo Coelho afrontando moralismos e confirmando Raul como mestre da ironia. Com um delicioso rock cinquentista da safra de Elvis Presley, daqueles com os riffs de guitarra energéticos que tão bem criam aquela atmosfera de rebeldia e contestação (e um naipe de metais discreto e certeiro que, obviamente, não é mencionado na ficha técnica do álbum…), a letra subverte símbolos religiosos, desafia a caretice reinante e retoma o Raul debochado, dialogando com o imaginário satânico de forma irônica, lembrando as provocações de artistas como Black Sabbath, mas em registro tipicamente brasileiro, quase carnavalesco. De refrão delicioso (“Enquanto Freud explica as coisas / O diabo fica dando os toques / O Diabo é o pai do rock / Foi ele mesmo que me deu o toque”), a faixa é obrigatória em qualquer boa festa do ramo.

EP com 4 faixas de Novo Aeon

Passando pelo quase plágio de “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, dos The Beatles, “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)” é o momento saboroso de um aparente nonsense do disco (em relação à música dos Beatles, aqui Raul Seixas acelera um pouco o ritmo), na qual ele mergulha no lúdico, nos lembrando como Raul nunca perdeu o espírito infantil em meio ao misticismo, vide um de seus maiores sucesso da carreira, “Carimbador Maluco”, composta para fazer parte de um especial infantil da Rede Globo, Plunct, Plact, Zuuum de 1983 — só que Raul é Raul: ainda que infantil, a letra da canção faz uma pesada crítica à burocracia do governo e foi inspirada no texto “Ser Governado É”, presente no livro A Ideia Geral de Revolução no Século XIX, do anarquista Pierre-Joseph Proudhon. Considerando isso, cuidado ao classificar “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)”, pois com Raul Seixas sempre há uma mensagem interessante, e aqui não é diferente, ainda mais se considerarmos que a letra é de Marcelo Motta: o Sr. Peixuxa dessa música é a Morsa da “História das Ostras Curiosas”, do clássico Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, e sua crítica, obviamente, não é explicita, pois usa uma linguagem lúdica e fantasiosa para abordar temas como corrupção, impunidade e poluição ambiental. A letra sugere que pessoas influentes se safam de problemas como a corrupção (“Entra pelas portas do fundo / Do Oceano Atlântico, um cara / De baleia, terno e gravata / Seu nome é Peixuxa / É amigo dos peixes / É gente e respira debaixo do mar / mas sempre com um charuto na boca / Vai andando debaixo d’água / Vai até o mediterrâneo / Pois tem um encontro com hora marcada / Com a lua cheia para um lindo jantar / Tem gente estranha por debaixo do mundo / Tal qual Peixuxa, baixo, gordo, salgado / Tem gente estranha trabalhando nos fundos / Que não é peixe mas não morre afogado”), enquanto os versos “E quando eu olho / O mar com petróleo / Eu rezo a Peixuxa que ele fisgue essa gente” deixam claro que o lado infantil do Maluco Beleza não era para qualquer tipo de criança.

O auge do álbum está na abertura com o hino maior de todo o seu hinário: “Tente outra vez”, uma das maiores músicas nacionais de todos os tempos, e que certamente é uma das mais emblemáticas da carreira de Raul Seixas, não apenas pela sua força poética, mas também pela função quase mítica que desempenha dentro da música popular brasileira. Escrita em parceria com Paulo Coelho e Marcelo Motta, a canção se afasta do tom de deboche, ironia e contracultura, que marcam grande parte da obra do artista, para assumir um registro quase épico, de exortação e esperança. O que salta aos ouvidos é a forma como Raul ressignifica a estrutura da canção de incentivo. Sua voz rasgada, imperfeita e visceral, dá um peso emocional às palavras que, em outros intérpretes, talvez soassem como meros slogans motivacionais. Aqui, ao contrário, a canção carrega o timbre de uma verdade conquistada pela experiência — de alguém que já caiu, já se feriu, e ainda assim insiste em erguer-se. Musicalmente, a faixa cresce em intensidade, acompanhando o gesto poético de convocação: inicia de forma contida, quase íntima, e vai adquirindo corpo até se tornar uma catarse coletiva. Esse crescendo transforma a audição em um ritual, no qual Raul não apenas canta, mas convoca, quase como um pregador ou xamã. No contexto do Brasil dos anos 1970, atravessado pela ditadura militar e por um ambiente de censura e desencanto, a canção funcionava como um chamado à resistência subjetiva: resistir era, também, manter a chama acesa da esperança. Não se tratava de um hino político direto, mas de um gesto metafórico e simbólico poderoso: “Veja! Não diga que a canção está perdida” é, por si só, uma afirmação de que ainda há futuro possível, mesmo quando tudo parece ruir. Cinquenta anos depois, “Tente Outra Vez” mantém sua atualidade, tendo se convertido em algo maior do que uma simples canção: tornou-se uma espécie de mantra nacional, repetido em momentos de superação pessoal, de coletividade em estádios, de homenagem em velórios. A obra transcendeu Raul e sua época, projetando-se como mensagem universal: a de que sempre é possível levantar-se, recomeçar e resistir.

Em contraste com canções como “Ouro de Tolo” (1973), em que Raul desmonta ironicamente a promessa da classe média e a “felicidade” imposta pelos padrões sociais, “Tente Outra Vez” se ergue como um discurso positivo, quase místico. A diferença não é de tom — já que a mesma voz rasgada e visceral imprime autenticidade —, mas de direção: se antes o artista se dedicava a destruir ilusões, aqui ele oferece uma nova base de sustentação, um canto de recomeço. Já em “Metamorfose Ambulante” (1973), Raul havia se declarado avesso a verdades fixas e ideologias engessadas: preferia “ser essa metamorfose ambulante” a seguir um credo imutável. “Tente Outra Vez” pode ser lida como a consequência natural desse espírito: se a vida é mutação e movimento, a queda é parte inevitável do processo, e a insistência em levantar-se torna-se o verdadeiro gesto filosófico. Essa visão dialoga, de maneira mais ou menos explícita, com o pensamento de Friedrich Nietzsche, autor que Raul lia com fascínio. A ideia nietzschiana do eterno retorno e da necessidade de afirmar a vida mesmo em suas dores ressoa na canção: “Veja! Não diga que a canção está perdida” é quase uma tradução poética do imperativo nietzschiano de dizer “sim” à existência. A convocação de Raul não é apenas psicológica; é uma exortação existencial. A presença de Paulo Coelho na composição também não é mero detalhe: o futuro escritor, já então parceiro espiritual de Raul, compartilhava da busca por uma espiritualidade heterodoxa, que unia esoterismo, magia, alquimia e cristianismo popular. Nesse sentido, “Tente Outra Vez” pode ser vista como um “mantra popular”, em que o discurso motivacional se funde a uma tradição de pregação messiânica — Raul como um profeta urbano, que pregava em discos, shows e entrevistas a possibilidade de um “novo aeon”, uma era de transformação espiritual. Como observa Pedro Alexandre Sanches em seu ótimo livro Como Dois e Dois são Cinco (2000), Raul representava uma rara figura no cenário musical brasileiro: um artista capaz de misturar “rock, religiosidade, delírio e crítica social” em uma mesma linguagem. Ou seja, somente Raul Seixas seria capaz de unir Nietzsche e pregadores de esquina, rock’n’roll e filosofia, desespero e esperança. Esse caráter quase litúrgico da canção foi identificado por Sylvio Passos, fundador do fã-clube Raul Rock Club e um dos principais estudiosos de sua obra. No também muito bom Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida (2002), Passos descreve “Tente Outra Vez” como uma das músicas que mais condensam a figura do “Raul-mito”: não apenas o cantor de rock, mas o profeta urbano que reunia multidões em torno de sua palavra, como se fosse um pregador de esquina.

Outro momento marcante é “A Maçã”, balada sensual e psicodélica que, filosoficamente, aborda o desejo humano sem culpas, evocando o mito bíblico para subvertê-lo em celebração do prazer. Composta em parceria com Paulo Coelho e Marcelo Motta, “A Maçã” é uma canção que explora temas de desejo e tentação. A letra utiliza a maçã como metáfora para o pecado e a busca pelo conhecimento proibido. Musicalmente, ela apresenta arranjos suaves e melódicos, com destaque para a interpretação vocal emotiva de Raul Seixas. Em contrapartida, “Caminhos II”, releitura de “Caminhos” do lado A, oferece um Raul mais introspectivo, reafirmando a condição de errante que atravessa sua obra. Mergulhada no existencialismo, a penúltima faixa do LP é uma das canções mais intrigantes do disco. Há também a boa balada em falsete, “Sunseed”, cantada em inglês por Raul e sua segunda esposa, Glória Vaquer, irmã de seu guitarrista Jay Anthony Vaquer. A produção é marcada por arranjos experimentais e uma interpretação vocal que transmite a sensação de transcendência psicodélica. Por fim, a maior joia não só dentro do riquíssimo catálogo de Raul Seixas como do próprio álbum, “Tu és o MDC da minha vida”. Escondida em Novo Aeon, essa faixa nitidamente destoa das demais, é um bilhete secreto que escapou aos ouvidos mais apressados. É, sem exagero, repito, uma joia perdida, tanto no álbum quanto em toda a discografia do Raul ‘Maluco Beleza’ Seixas.

Raul Seixas em 1983 em fotografia do uruguaio Ariel Severino.

A própria sigla do título já é instigante: o que diabos um conceito matemático está fezendo numa canção popular?! Raul Seixas e Paulo Coelho, mestres em brincadeiras semânticas (sobretudo o segundo), nunca confirmaram. Essa ambiguidade condiz com sua estética de referências múltiplas: misticismo, humor, filosofia de botequim e ironia romântica. O resultado é uma canção que parece rir de si mesma enquanto revela uma ternura rara, um momento de vulnerabilidade que contrasta com os manifestos libertários de outras faixas. O sabor irônico da música ganha mais sentido quando lembramos que, antes de se tornarem ícones do rock brasileiro, Raul Seixas e seu parceiro Paulo Coelho trabalharam em gravadoras — Paulo Coelho era gerente na própria Philips e Raul Seixas fora produtor na CBS (o que explica, em grande parte, seu faro para bons músicos). Essa vivência nos bastidores da indústria fonográfica deu aos dois um olhar afiado para os truques de marketing, os jargões publicitários e a estética pop de consumo rápido. Em “Tu és o MDC da minha vida”, Raul se diverte justamente com essa cultura de vitrines: a canção soa como um jingle de amor embalado para o rádio, mas é cheia de piscadelas críticas ao próprio mercado que eles conheciam tão bem. Não à toa, o time que toca nessa faixa era do pessoal dos Golden Boys, Renato e seus Blue Caps e The Fevers.

Musicalmente, a faixa mergulha no universo que Raul admirava e satirizava com carinho: a Jovem Guarda e o brega romântico dos anos 60 e início dos 70. O arranjo tem a cadência de hit romântico radiofônico e o balanço inocente dos rocks que lembram Roberto Carlos em seus primeiros discos, Odair José e Reginaldo Rossi. Em vez de renegar esse repertório, Raul o celebra com afeto irônico — uma demonstração de que sua rebeldia incluía abraçar, e não apenas negar, as raízes populares do pop brasileiro. A letra é um mosaico de marcas e personagens que povoavam o imaginário brasileiro da época e a sua cultura de massa, pois Casas Bahia, Sansui, Pink Floyd, Flávio Cavalcanti são citações que funcionam como uma crônica pop dos anos 70. Ao evocar uma loja de varejo popular, um fabricante japonês de eletrônicos, um gigante do rock progressivo e um apresentador de TV de estilo pomposo, Raul mistura alta e baixa cultura com a naturalidade de quem enxerga poesia na propaganda e no cotidiano. É um inventário que, ao mesmo tempo, documenta e ironiza a febre consumista e o culto à novidade. No fim, “Tu és o MDC da minha vida” é mais do que uma curiosidade escondida em Novo Aeon: é um rock delicioso e sucesso instantâneo de um artista que conhecia as engrenagens da indústria, amava o pop em todas as suas camadas e não tinha medo de brincar com isso. Revisitar essa canção hoje é reconhecer o quanto Raul Seixas ia além da caricatura do roqueiro maluco. Aqui, sua genialidade se expressa no detalhe, não no espetáculo — e é justamente esse sussurro irreverente que faz da faixa uma joia secreta, pronta para ser redescoberta por quem mergulha fundo em sua obra.

Revisitar Novo Aeon em 2025 me deu muito prazer e me fez perceber que o disco ainda fala muito conosco, talvez até mais do que em 1975. Suas canções nos lembram que liberdade não é concessão, mas conquista diária; que espiritualidade não é dogma, mas busca; que o rock pode ser ao mesmo tempo festa e filosofia, riso e rito. Assim como Lar das Maravilhas e Fruto Proibido, este é um disco que atravessa muitíssimo bem o tempo. Só que, no caso de Raul, há sempre algo a mais: a sensação de que sua voz continua a nos cutucar, inquietar, convocar, já que o Novo Aeon anunciado por ele não foi apenas o título de álbum: foi um chamado para que enxergássemos novas possibilidades de existir. Meio século depois, esse chamado ainda ecoa.

Contra-capa do LP

Track list

  1. Tente Outra Vez
  2. Rock Do Diabo
  3. A Maçã
  4. Eu Sou Egoísta
  5. Caminhos
  6. Tu És O MDC Da Minha Vida
  7. A Verdade Sobre A Nostalgia
  8. Para Noia
  9. Peixuxa (O Amiguinho Dos Peixes)
  10. É Fim De Mês
  11. Sunseed
  12. Caminho II
  13. Novo Aeon

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