Smith/Kotzen – Black Light / White Noise [2025]

Smith/Kotzen – Black Light / White Noise [2025]

Por Marcelo Freire

Uma síntese madura entre virtuosismo e memória afetiva do hard rock

Em Rei Lear, de William Shakespeare, o cego Gloucester diz ao seu filho a seguinte frase: “A maturidade é tudo (“Ripeness is all”)”. Quando Adrian Smith, do alto de seus 68 anos, juntou-se a Richie Kotzen de 55 anos, e lançaram o álbum autointitulado da dupla Smith/Kotzen em 2021, muitos pensaram se tratar de um projeto que contaria com lançamentos ocasionais; assim, quando um EP intitulado Better Days … And Nights foi lançado em 2022 — e atingiu o mesmo patamar de qualidade e reconhecimento — soubemos que os dois músicos tinham muita lenha guardada para queimar — ou, como desejou Gloucester dar a entender a seu filho, descobriram na inevitabilidade desse encontro que deveriam ser, antes mesmo de roqueiros, maduros. O segundo álbum colaborativo (ou já podemos chamá-los de banda?) de Smith e Kotzen, Black Light / White Noise (2025), mostra uma dupla mais coesa, desinibida e ciente do próprio legado. Longe de soar como uma colagem de riffs ou um projeto nostálgico gratuito, o disco é um diálogo fluido entre duas escolas do hard rock com raízes distintas, mas convergentes: a seriedade épica da NWOBHM trazida por Smith e o calor rasgado do rock norte-americano com tintas de soul e blues de Kotzen. Ou seja, é justamente nesses pontos que a maturidade de ambos se faz brilhante: sem abandoar o que fizeram, eles criaram um amálgama voltado para o futuro que tem como base o passado.

Adrian Smith e Richie Kotzen: maturidade é tudo.

Assim, quando dois músicos do calibre de Adrian Smith e Richie Kotzen se unem, a expectativa é de algo maior do que a soma das partes — e Black Light / White Noise não decepciona nesse quesito. O disco não só reafirma a química entre os dois, como também funciona como uma espécie de carta de amor às raízes do hard rock dos anos 80 e 90, costurada com a experiência de quem viveu cada uma das eras que ajudou a construir. As credenciais de ambos não dão margem a passos em falso: Adrian Smith, velho conhecido dos fãs do Iron Maiden, sempre foi o mais melódico e bluesy da tríade de guitarristas da Donzela. Sua sensibilidade aparece aqui em nuances, contrastando — e às vezes se fundindo — com a visceralidade de Richie Kotzen, que traz uma bagagem que vai de Mr. Big e Poison ao seu trabalho solo, passando por flertes com o soul, o fusion e o Rhythm & Blues. Como se não bastasse, ainda é um dos membros de uma das melhores surpresas da atualidade, o power trio The Winery Dogs. A soma dos dois não é um Frankenstein de estilos, mas uma fusão orgânica, guiada por composições coesas e maduras.

Virtuosismo a serviço da canção

Mais do que mostrar habilidade, o álbum ensina que a verdadeira maturidade artística não está na velocidade das notas, mas na sua intenção; ou seja, Black Light / White Noise não é apenas uma vitrine de talento técnico, mas um estudo de como o virtuosismo pode desaparecer dentro da música — não por falta de capacidade, mas por respeito à canção. Basta ouvir a belíssima “Heavy Weather”, a 8ª faixa do disco, para perceber que menos é mais e como os dois cantam bem juntos, sem que a potência vocal de Kotzen ofusque os bons vocais de Smith (sobre os vocais do álbum, falarei com mais vagar adiante).

O disco abre com “Muddy Water”, um petardo blues-rock que poderia muito bem estar em algum lado B do Electric do The Cult (1987) ou do Slide It In (1984) do Whitesnake. A guitarra vem suja, saturada como deve ser, e a bateria pulsa em meio tempo, sem pressa — um convite a prestar atenção. A letra evoca imagens de superação pessoal: “Wade through muddy water just to clear my name”. A ideia de redenção por meio da dor ecoa algo que Kotzen já havia explorado no seu álbum Into the Black (2006), mas aqui ganha o peso da maturidade (você vai ler bastante essa palavra hoje, esta resenha é uma reflexão sobre o tempo…) e da dupla perspectiva. Em “White Noise”, o duo resolve mirar no presente, com um pé fincado no passado. A canção tem groove e crítica social, algo raro nos dias de hoje. “All this white noise in my head / All this silence leaves me dead” — a letra é direta, sem metáforas rebuscadas, como nos bons tempos do hard rock oitentista que preferia a honestidade rasgada à elucubração poética. O riff principal é puro Adrian Smith: pentatônico, sujo e econômico, mas é a ponte instrumental, quase um duelo de guitarras, que entrega o DNA da dupla. Se fechar os olhos, dá para imaginar Ritchie Blackmore e David Coverdale trocando frases ali…

Tempero brasileiro: à esquerda, o baterista Bruno Valverde (Angra, Whom Gods Destroy) e à direita, Julia Lage (Vixen), esposa de Kotzen.

A faixa-título, “Black Light”, traz outra faceta da dupla: é mais sombria, quase psicodélica. A atmosfera aqui é mais densa e a letra mergulha numa espécie de paranoia existencial: “You say I’m free but I’m shackled still / Beneath the black light, truth’s revealed”. Essa dicotomia entre luz e escuridão (presente na imagem da capa do álbum e no videoclipe da canção) — a ilusão de liberdade — lembra alguns momentos líricos de Brave New World (2000), quando Smith retornou ao Maiden com uma pegada mais introspectiva. A construção musical é complexa, com mudanças sutis de tempo e texturas de guitarra que parecem saídas de um disco do King’s X — se você ainda não se dedicou a essa banda estadunidense de hard rock e heavy metal (alguns dizem que são metal progressivo, definição da qual não discordo), reconhecida por suas letras espirituais e sua música sofisticada, recomendo os dois primeiros trabalhos deles, Out of the Silent Planet (1988) e Gretchen Goes to Nebraska (1989).

“Blindsided” talvez seja a mais “Kotzeniana” do álbum. Aqui, o soul aparece, escondido sob camadas de reverb e um groove sincopado que remete aos melhores momentos de sua carreira solo (Cannibals, de 2015, por exemplo). A letra fala de traição, porém sem vitimismo: “Didn’t see you coming, but I ain’t blind no more”. É uma daquelas faixas em que o vocal rouco de Kotzen brilha, flertando com o R&B, mas sempre puxado de volta ao rock pela guitarra de Smith, que solta um solo com bends chorados dignos de Gary Moore. “Outlaw” é uma das surpresas do disco — talvez a faixa com mais pegada de arena. Com riff seco e ritmo galopante, ela ecoa algo do Piece of Mind (1983) ou mesmo do Killers (1981) em espírito, embora seu arranjo seja mais cru. A letra brinca com o arquétipo do fora da lei, apesar de ser sem glamour excessivo: “They called me a sinner, I called it a choice / I never followed their rules, never softened my voice”. Há um flerte com o romantismo dos anti-heróis do western, e isso remete diretamente à estética lírica de músicas como “Desert Island” (do álbum Smith/Kotzen, de 2021), na qual o isolamento e o desprezo pelas normas já eram temas abordados. O refrão é daqueles que poderia facilmente ser cantado em coro num festival ao entardecer, punhos erguidos e guitarras em riste.

O encerramento vem com “Beyond the Pale”, uma mini-epopeia hard rock que começa lenta, com arpejos limpos e letra contemplativa, e cresce até se tornar quase progressiva. É um encerramento à altura, lembrando os exemplos semelhantes de álbuns como No Prayer for the Dying (1990) do Iron Maiden ou Mother Head’s Family Reunion (1994) de Kotzen. A letra sugere uma aceitação da impermanência: “We walk beyond the pale / Where no maps ever tell / And maybe that’s just fine”. Há uma sensação de encerramento de ciclo, de maturidade, de aceitação — algo que músicos de 20 e poucos anos não teriam como transmitir com a mesma propriedade.

Bela produção gráfica para o álbum: a capa do álbum foi inspirada em fotografias de John McMurtrie, que utilizou luzes UV para realçar as guitarras personalizadas.

A linhagem vocal de Kotzen: entre Hughes e Cornell

É impossível falar sobre Black Light / White Noise sem destacar a performance vocal de Richie Kotzen, disparado o melhor vocalista da atualidade. Em faixas como “Blindsided” e “Outlaw”, ele canta com a intensidade de quem está à beira do colapso emocional, mas sempre controlando a dinâmica com técnica e musicalidade. Sua voz carrega uma herança clara de Glenn Hughes, sobretudo na forma como alterna entre o falsete soul e o drive hard rock — embora o timbre e a entrega emocional apontem fortemente para Chris Cornell. Há momentos em que Kotzen parece canalizar o espírito do Temple of the Dog, principalmente na maneira como prolonga certas notas com dor e lirismo simultâneos. Ao mesmo tempo, há ecos da fase solo de Hughes, especialmente do disco Feel (1995), onde o funk e o hard rock se fundem com naturalidade. Essa linhagem coloca Kotzen como uma ponte viva entre o classic rock e o grunge — uma raridade num mundo de vozes genéricas.

Kotzen

Diálogos com o passado: Kotzen e Smith em perspectiva

O álbum todo funciona como um diálogo contínuo entre as experiências passadas dos dois músicos. Smith parece trazer para o projeto uma fluência narrativa que foi moldada por anos de épicos do Maiden, embora aqui ele a reconfigure para narrativas mais pessoais e contidas. Já Kotzen recicla temas líricos recorrentes de sua discografia — perda, reconstrução, desilusão — contudo com o frescor de quem encontrou um verdadeiro parceiro criativo, o que também se percebe em seu trabalho com os parceiros de Winery Dogs Mike Portnoy (o homem não para!) e Billy Sheehan, igualmente oriundo do Mr. Big. Em faixas como “Black Light” e “White Noise”, vemos o tipo de ambiguidade lírica que Kotzen explorou em discos (apenas como adendo: o sujeito tem 23 discos solo de estúdio!) como 24 Hours (2011) e Salting Earth (2017). Mas aqui, com Smith ao lado, essas ideias ganham peso e dimensão. Adrian, por sua vez, parece mais livre do que jamais foi dentro da estrutura do Iron Maiden. Não há pressa, não há fórmulas — apenas a música fluindo.

Smith

Conclusão: uma aliança que amadureceu

Black Light / White Noise é, acima de tudo, um disco honesto. Ele não tenta reinventar a roda, mas mostra dois músicos veteranos em pleno domínio de suas ferramentas. É um álbum que sabe de onde veio e, por isso mesmo, sabe exatamente aonde quer chegar. Para quem viveu o rock nos anos 80 e 90, é como reencontrar velhos amigos — mudados, é claro, mas ainda com aquele brilho nos olhos. E para as gerações mais novas, fica o convite: assim é que se faz rock de verdade. O lançamento representa uma evolução natural da proposta que Smith e Kotzen iniciaram em 2021. Se o primeiro álbum era um experimento interessante, este é um manifesto sólido. Musicalmente, está mais próximo do blues e do groove do que do metal tradicional, mas em espírito, carrega o sentimento dos anos 80 e 90: intensidade, honestidade e melodias memoráveis.

Para quem acompanha a trajetória de ambos, o disco funciona como uma síntese refinada de tudo o que aprenderam ao longo das décadas. Pode investir nele sem receio, pois o disco é uma porta de entrada para um hard rock contemporâneo, todavia repleto de alma vintage — que não tenta reviver o passado, mas dialogar com os tempos idos. Como resumiu Kotzen ao Metallerium: “Agora há um DNA SMITH/KOTZEN e é definitivamente algo que precisamos levar para a estrada”. E esperamos, assim como Shakespeare, que levem. Ripeness is all.

NOTA: 8,5

Contra-capa do LP

Track list

  1. Muddy Water
  2. White Noise
  3. Black Light
  4. Darkside
  5. Life Unchained
  6. Blindsided
  7. Wraith
  8. Heavy Weather
  9. Outlaw
  10. Beyond The Pale

2 comentários sobre “Smith/Kotzen – Black Light / White Noise [2025]

  1. Um dos discos que mais tenho ouvido nos últimos meses – o Marcelo Freire se antecipou à resenha (nada shakespereana, aliás) que estava elaborando, hehehe… A voz de Ritchie Kotzen em alguns momentos me lembra a do grande Chris Cornell, e Adrian também está cantando bem. Ainda não consegui me decidir se gostei mais deste disco do que do primeiro, mas já fechei em torno da melhor música do novo álbum: para mim, nada bate “Blindsided”, cujo refrão é um dos melhores do ano até agora. Discaço!!

    1. Vamos ter que combinar as jogadas a partir de agora então hahahehahaha
      De qualquer modo, se terminar a sua resenha, aqui tem um leitor ávido para saber o que pensou do disco. E tô contigo: para mim, é difícil saber qual dos dois discos deles é o melhor.
      “Blidsided” é de arrepiar!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.