Smith/Kotzen – Black Light / White Noise [2025]
![Smith/Kotzen – Black Light / White Noise [2025]](https://arquivos.consultoriadorock.com/content/2025/06/smithkotzen.jpg)
Por Marcelo Freire
Uma síntese madura entre virtuosismo e memória afetiva do hard rock
Em Rei Lear, de William Shakespeare, o cego Gloucester diz ao seu filho a seguinte frase: “A maturidade é tudo (“Ripeness is all”)”. Quando Adrian Smith, do alto de seus 68 anos, juntou-se a Richie Kotzen de 55 anos, e lançaram o álbum autointitulado da dupla Smith/Kotzen em 2021, muitos pensaram se tratar de um projeto que contaria com lançamentos ocasionais; assim, quando um EP intitulado Better Days … And Nights foi lançado em 2022 — e atingiu o mesmo patamar de qualidade e reconhecimento — soubemos que os dois músicos tinham muita lenha guardada para queimar — ou, como desejou Gloucester dar a entender a seu filho, descobriram na inevitabilidade desse encontro que deveriam ser, antes mesmo de roqueiros, maduros. O segundo álbum colaborativo (ou já podemos chamá-los de banda?) de Smith e Kotzen, Black Light / White Noise (2025), mostra uma dupla mais coesa, desinibida e ciente do próprio legado. Longe de soar como uma colagem de riffs ou um projeto nostálgico gratuito, o disco é um diálogo fluido entre duas escolas do hard rock com raízes distintas, mas convergentes: a seriedade épica da NWOBHM trazida por Smith e o calor rasgado do rock norte-americano com tintas de soul e blues de Kotzen. Ou seja, é justamente nesses pontos que a maturidade de ambos se faz brilhante: sem abandoar o que fizeram, eles criaram um amálgama voltado para o futuro que tem como base o passado.

Assim, quando dois músicos do calibre de Adrian Smith e Richie Kotzen se unem, a expectativa é de algo maior do que a soma das partes — e Black Light / White Noise não decepciona nesse quesito. O disco não só reafirma a química entre os dois, como também funciona como uma espécie de carta de amor às raízes do hard rock dos anos 80 e 90, costurada com a experiência de quem viveu cada uma das eras que ajudou a construir. As credenciais de ambos não dão margem a passos em falso: Adrian Smith, velho conhecido dos fãs do Iron Maiden, sempre foi o mais melódico e bluesy da tríade de guitarristas da Donzela. Sua sensibilidade aparece aqui em nuances, contrastando — e às vezes se fundindo — com a visceralidade de Richie Kotzen, que traz uma bagagem que vai de Mr. Big e Poison ao seu trabalho solo, passando por flertes com o soul, o fusion e o Rhythm & Blues. Como se não bastasse, ainda é um dos membros de uma das melhores surpresas da atualidade, o power trio The Winery Dogs. A soma dos dois não é um Frankenstein de estilos, mas uma fusão orgânica, guiada por composições coesas e maduras.
Virtuosismo a serviço da canção
Mais do que mostrar habilidade, o álbum ensina que a verdadeira maturidade artística não está na velocidade das notas, mas na sua intenção; ou seja, Black Light / White Noise não é apenas uma vitrine de talento técnico, mas um estudo de como o virtuosismo pode desaparecer dentro da música — não por falta de capacidade, mas por respeito à canção. Basta ouvir a belíssima “Heavy Weather”, a 8ª faixa do disco, para perceber que menos é mais e como os dois cantam bem juntos, sem que a potência vocal de Kotzen ofusque os bons vocais de Smith (sobre os vocais do álbum, falarei com mais vagar adiante).
O disco abre com “Muddy Water”, um petardo blues-rock que poderia muito bem estar em algum lado B do Electric do The Cult (1987) ou do Slide It In (1984) do Whitesnake. A guitarra vem suja, saturada como deve ser, e a bateria pulsa em meio tempo, sem pressa — um convite a prestar atenção. A letra evoca imagens de superação pessoal: “Wade through muddy water just to clear my name”. A ideia de redenção por meio da dor ecoa algo que Kotzen já havia explorado no seu álbum Into the Black (2006), mas aqui ganha o peso da maturidade (você vai ler bastante essa palavra hoje, esta resenha é uma reflexão sobre o tempo…) e da dupla perspectiva. Em “White Noise”, o duo resolve mirar no presente, com um pé fincado no passado. A canção tem groove e crítica social, algo raro nos dias de hoje. “All this white noise in my head / All this silence leaves me dead” — a letra é direta, sem metáforas rebuscadas, como nos bons tempos do hard rock oitentista que preferia a honestidade rasgada à elucubração poética. O riff principal é puro Adrian Smith: pentatônico, sujo e econômico, mas é a ponte instrumental, quase um duelo de guitarras, que entrega o DNA da dupla. Se fechar os olhos, dá para imaginar Ritchie Blackmore e David Coverdale trocando frases ali…

A faixa-título, “Black Light”, traz outra faceta da dupla: é mais sombria, quase psicodélica. A atmosfera aqui é mais densa e a letra mergulha numa espécie de paranoia existencial: “You say I’m free but I’m shackled still / Beneath the black light, truth’s revealed”. Essa dicotomia entre luz e escuridão (presente na imagem da capa do álbum e no videoclipe da canção) — a ilusão de liberdade — lembra alguns momentos líricos de Brave New World (2000), quando Smith retornou ao Maiden com uma pegada mais introspectiva. A construção musical é complexa, com mudanças sutis de tempo e texturas de guitarra que parecem saídas de um disco do King’s X — se você ainda não se dedicou a essa banda estadunidense de hard rock e heavy metal (alguns dizem que são metal progressivo, definição da qual não discordo), reconhecida por suas letras espirituais e sua música sofisticada, recomendo os dois primeiros trabalhos deles, Out of the Silent Planet (1988) e Gretchen Goes to Nebraska (1989).
“Blindsided” talvez seja a mais “Kotzeniana” do álbum. Aqui, o soul aparece, escondido sob camadas de reverb e um groove sincopado que remete aos melhores momentos de sua carreira solo (Cannibals, de 2015, por exemplo). A letra fala de traição, porém sem vitimismo: “Didn’t see you coming, but I ain’t blind no more”. É uma daquelas faixas em que o vocal rouco de Kotzen brilha, flertando com o R&B, mas sempre puxado de volta ao rock pela guitarra de Smith, que solta um solo com bends chorados dignos de Gary Moore. “Outlaw” é uma das surpresas do disco — talvez a faixa com mais pegada de arena. Com riff seco e ritmo galopante, ela ecoa algo do Piece of Mind (1983) ou mesmo do Killers (1981) em espírito, embora seu arranjo seja mais cru. A letra brinca com o arquétipo do fora da lei, apesar de ser sem glamour excessivo: “They called me a sinner, I called it a choice / I never followed their rules, never softened my voice”. Há um flerte com o romantismo dos anti-heróis do western, e isso remete diretamente à estética lírica de músicas como “Desert Island” (do álbum Smith/Kotzen, de 2021), na qual o isolamento e o desprezo pelas normas já eram temas abordados. O refrão é daqueles que poderia facilmente ser cantado em coro num festival ao entardecer, punhos erguidos e guitarras em riste.
O encerramento vem com “Beyond the Pale”, uma mini-epopeia hard rock que começa lenta, com arpejos limpos e letra contemplativa, e cresce até se tornar quase progressiva. É um encerramento à altura, lembrando os exemplos semelhantes de álbuns como No Prayer for the Dying (1990) do Iron Maiden ou Mother Head’s Family Reunion (1994) de Kotzen. A letra sugere uma aceitação da impermanência: “We walk beyond the pale / Where no maps ever tell / And maybe that’s just fine”. Há uma sensação de encerramento de ciclo, de maturidade, de aceitação — algo que músicos de 20 e poucos anos não teriam como transmitir com a mesma propriedade.

A linhagem vocal de Kotzen: entre Hughes e Cornell
É impossível falar sobre Black Light / White Noise sem destacar a performance vocal de Richie Kotzen, disparado o melhor vocalista da atualidade. Em faixas como “Blindsided” e “Outlaw”, ele canta com a intensidade de quem está à beira do colapso emocional, mas sempre controlando a dinâmica com técnica e musicalidade. Sua voz carrega uma herança clara de Glenn Hughes, sobretudo na forma como alterna entre o falsete soul e o drive hard rock — embora o timbre e a entrega emocional apontem fortemente para Chris Cornell. Há momentos em que Kotzen parece canalizar o espírito do Temple of the Dog, principalmente na maneira como prolonga certas notas com dor e lirismo simultâneos. Ao mesmo tempo, há ecos da fase solo de Hughes, especialmente do disco Feel (1995), onde o funk e o hard rock se fundem com naturalidade. Essa linhagem coloca Kotzen como uma ponte viva entre o classic rock e o grunge — uma raridade num mundo de vozes genéricas.

Diálogos com o passado: Kotzen e Smith em perspectiva
O álbum todo funciona como um diálogo contínuo entre as experiências passadas dos dois músicos. Smith parece trazer para o projeto uma fluência narrativa que foi moldada por anos de épicos do Maiden, embora aqui ele a reconfigure para narrativas mais pessoais e contidas. Já Kotzen recicla temas líricos recorrentes de sua discografia — perda, reconstrução, desilusão — contudo com o frescor de quem encontrou um verdadeiro parceiro criativo, o que também se percebe em seu trabalho com os parceiros de Winery Dogs Mike Portnoy (o homem não para!) e Billy Sheehan, igualmente oriundo do Mr. Big. Em faixas como “Black Light” e “White Noise”, vemos o tipo de ambiguidade lírica que Kotzen explorou em discos (apenas como adendo: o sujeito tem 23 discos solo de estúdio!) como 24 Hours (2011) e Salting Earth (2017). Mas aqui, com Smith ao lado, essas ideias ganham peso e dimensão. Adrian, por sua vez, parece mais livre do que jamais foi dentro da estrutura do Iron Maiden. Não há pressa, não há fórmulas — apenas a música fluindo.

Conclusão: uma aliança que amadureceu
Black Light / White Noise é, acima de tudo, um disco honesto. Ele não tenta reinventar a roda, mas mostra dois músicos veteranos em pleno domínio de suas ferramentas. É um álbum que sabe de onde veio e, por isso mesmo, sabe exatamente aonde quer chegar. Para quem viveu o rock nos anos 80 e 90, é como reencontrar velhos amigos — mudados, é claro, mas ainda com aquele brilho nos olhos. E para as gerações mais novas, fica o convite: assim é que se faz rock de verdade. O lançamento representa uma evolução natural da proposta que Smith e Kotzen iniciaram em 2021. Se o primeiro álbum era um experimento interessante, este é um manifesto sólido. Musicalmente, está mais próximo do blues e do groove do que do metal tradicional, mas em espírito, carrega o sentimento dos anos 80 e 90: intensidade, honestidade e melodias memoráveis.
Para quem acompanha a trajetória de ambos, o disco funciona como uma síntese refinada de tudo o que aprenderam ao longo das décadas. Pode investir nele sem receio, pois o disco é uma porta de entrada para um hard rock contemporâneo, todavia repleto de alma vintage — que não tenta reviver o passado, mas dialogar com os tempos idos. Como resumiu Kotzen ao Metallerium: “Agora há um DNA SMITH/KOTZEN e é definitivamente algo que precisamos levar para a estrada”. E esperamos, assim como Shakespeare, que levem. Ripeness is all.
NOTA: 8,5

Track list
- Muddy Water
- White Noise
- Black Light
- Darkside
- Life Unchained
- Blindsided
- Wraith
- Heavy Weather
- Outlaw
- Beyond The Pale
Um dos discos que mais tenho ouvido nos últimos meses – o Marcelo Freire se antecipou à resenha (nada shakespereana, aliás) que estava elaborando, hehehe… A voz de Ritchie Kotzen em alguns momentos me lembra a do grande Chris Cornell, e Adrian também está cantando bem. Ainda não consegui me decidir se gostei mais deste disco do que do primeiro, mas já fechei em torno da melhor música do novo álbum: para mim, nada bate “Blindsided”, cujo refrão é um dos melhores do ano até agora. Discaço!!
Vamos ter que combinar as jogadas a partir de agora então hahahehahaha
De qualquer modo, se terminar a sua resenha, aqui tem um leitor ávido para saber o que pensou do disco. E tô contigo: para mim, é difícil saber qual dos dois discos deles é o melhor.
“Blidsided” é de arrepiar!