Tralhas do Porão: The Immediate All-Stars, o supergrupo que nunca existiu

Tralhas do Porão: The Immediate All-Stars, o supergrupo que nunca existiu

Por Micael Machado

Você certamente já ouviu falar (e deve ter escutado muito) de grupos como The Yardbirds, Cream, Led Zeppelin e Rolling Stones. Mas você já ouviu falar do The Immediate All-Stars, um “supergrupo” que reuniu músicos com passagens pelas bandas citadas, lançou algumas músicas na década de 1960, mas nunca fez nenhum show, ou sequer (no caso de uma das suas formações) se reuniu em uma sala de ensaios ou de gravações? Pois é da história desta curiosa formação que venho tratar neste texto. Sente-se confortavelmente em sua poltrona favorita, e vamos ao papo:

Tudo começa em meados de 1965, quando Jimmy Page, já então um reconhecido músico de estúdio na Inglaterra, foi contratado pelo empresário dos Stones, Andrew Loog Oldham, para atuar como produtor para o recém-formado selo Immediate Records, de propriedade de Oldham e do empresário Tony Calder. Dentre vários grupos que Page produziu para o selo, estavam os membros remanescentes da banda Cyril Davies And His Rhythm And Blues All Stars, um combo de blues que havia se “desintegrado” após a morte do guitarrista Cyril Davies em 1964, e que gravou algumas sessões para o selo Immediate naquele ano, ao que pude apurar, com o próprio Page como guitarrista substituindo o falecido Davies. Pouco tempo depois, Jimmy agendou outra sessão com estes músicos, desta vez tendo como guitarrista o genial Jeff Beck (amigo de longa data de Page, e indicado por ele para substituir Eric Clapton nos Yardbirds). Beck foi acompanhado nestas gravações por um trio formado pelo baterista Carlo Little, pelo baixista Cliff Barton e pelo pianista Nicky Hopkins (que depois viria a colaborar com grupos como Rolling Stones e The Who, dentre outros), todos eles ex-membros da All Stars original; porém, não posso afirmar serem estes os mesmos músicos da primeira sessão citada. Esta formação ficou conhecida como The Allstars Featuring Jeff Beck, e registrou cinco faixas instrumentais para o selo de Oldham e Calder, sendo que Page participa como guitarrista em pelo menos duas destas gravações (as “agitadas” “Down in the Boots”, onde o baixo de Barton aparece com bastante destaque, e “LA Breakdown”, com destaque total para o piano de Hopkins, sendo que Page tem uma participação bastante discreta no arranjo nas duas composições), com Hopkins assumindo o protagonismo em “Piano Shuffle” (que, como o nome deixa claro, é um agitado shuffle liderado pelo piano), e Beck sendo o solista em “Chuckles” (um blues mais “agitado” em que a rascante guitarra de Jeff divide atenção com o piano de Hopkins) e em “Steelin'” (um blues mais “tradicional” de 12 compassos, onde Hopkins novamente divide o destaque com Beck), a qual foi a primeira destas faixas a ser lançada, inicialmente como “lado B” de um compacto feito pela Immediate ainda em 1965 para tentar promover uma carreira musical para o fotógrafo de moda londrino David Anthony, e que foi creditada apenas a Anthony (que adotou o pseudônimo ‘Charles Dickens’ para estas sessões), sem citar os músicos envolvidos.

Guitar Boogie, compilação cuja versão alemã reuniu primeiro as faixas gravadas pela Allstar tanto com Beck quanto com Clapton

Meses depois, ainda em 1965, Page convidou Eric Clapton (amigo de longa data do então produtor da Immediate, sendo que os dois já haviam feito diversas jams pelos palcos londrinos desde 1962, além de Page ter produzido algumas gravações dos Yardbirds enquanto Clapton ainda era guitarrista do grupo) para uma jam session em seu estúdio caseiro de Londres. Os dois registraram cinco “improvisos” instrumentais baseados no blues, apenas com as duas guitarras, e sem nenhum interesse de lançamento comercial. Porém, Jimmy, empolgado com o resultado, acabou comentando sobre as gravações com Oldham, e, pouco depois, os representantes da gravadora “intimaram” Page a lhes entregar as fitas originais, alegando que, como empregado do selo, as gravações feitas pelo guitarrista pertenceriam, por direito, à Immediate. Temendo um processo judicial, Page entregou as fitas à gravadora, porém os alertou que elas não tinham qualidade suficiente para serem lançadas. Vendo o potencial comercial que aquela associação poderia trazer (Clapton estava então tocando com os Bluesbreakers de John Mayall, sendo esta mais ou menos a mesma época em que as pichações de “Clapton Is God” começaram a surgir em Londres), os representantes do selo pediram a Page que “completasse” as faixas, visando um futuro lançamento destas. O produtor então chamou seus amigos Ian Stewart (pianista dos Rolling Stones à época) e Bill Wyman (baixista dos mesmos Stones), além do baterista Chris Winters (que a maioria das fontes que encontrei afirmam ser, na verdade, Charlie Watts, baterista também dos Stones, que teria adotado o pseudônimo por questões contratuais), para gravar bases para as faixas que ele havia registrado pouco antes com Clapton (detalhe é que Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, acabou comparecendo também às sessões, embora tenha apenas tocado harmônica – ou “gaita de boca”, como o instrumento também é conhecido – nestas gravações).

As sete faixas instrumentais registradas por Page e Clapton passam por estilos diferentes de Blues, estilo ao qual Clapton era radicalmente devoto à época (sendo que a inclinação para uma sonoridade mais “comercial” foi o principal motivo para sua saída dos Yardbirds no começo daquele 1965). Enquanto “Choker” é um agitado rhythm and blues (onde os dois guitarristas dividem os solos, embora não haja um “duelo” entre eles) que, infelizmente, termina em um “fade-out” com gosto de “quero mais”, “Snake Drive” representa aquele tipo de blues mais “arrastado”, sendo a mais lenta de todas estas gravações. As faixas “Draggin’ My Tail” e “West Coast Idea” já são aquele tipo de blues mais “lento” (embora não tão “arrastado” quanto a anterior), sendo que Wyman parece tocar um contrabaixo acústico na segunda, enquanto Clapton e Page novamente dividem os solos na primeira (que, a meus ouvidos, é a única das sete a contar com a harmônica de Jagger).

“Freight Loader” também segue esta estrutura mais “lenta” do blues, e, curiosamente, não conta com o acompanhamento da banda de apoio, assim como “Tribute To Elmore” (que, acredito, seja dedicada a Elmore James, lendário bluesman norte-americano, e ídolo tanto de Page quanto de Clapton) e “Miles Road”, duas faixas onde Page “segura” a base naquele andamento mais “tradicional” do blues de doze compassos para Clapton “debulhar” na guitarra solo (especialmente na segunda, que parece “clamar” por um acompanhamento da seção rítmica, algo que, infelizmente, não acontece).

White Boy Blues, compilação que reúne as doze faixas gravadas pela Allstar

Todas as músicas citadas são bem curtas (apenas “Down in the Boots” e “Draggin’ My Tail” ultrapassam os três minutos, a segunda por apenas sete segundos, sendo que “Choker” não chega sequer aos dois minutos), e servem mais como “curiosidades” para os fãs dos três gênios da guitarra citados do que como “faixas obrigatórias” na carreira dos músicos. As doze faixas gravadas nas sessões com Beck e Clapton foram, ao que consegui apurar, lançadas inicialmente nos três volumes da coleção Blues Anytime: An Anthology of British Blues, que a Immediate Records colocou no mercado em 1968 (sendo que as cinco faixas com Beck aparecem no terceiro volume, disco cuja capa abre esta matéria, e as sete com Clapton estão espalhadas pelos três registros da coleção). O lançamento comercial destas gravações (algo com o qual Page alega até hoje não ter tido nenhum envolvimento, nem ter recebido nenhum centavo por isto) “azedou” a amizade entre o produtor e Clapton, que considerou o ato como uma “traição” do amigo (visto que as faixas onde os dois tocam juntos não haviam sido gravadas com esta intenção), e levou os dois a se afastarem por quase vinte anos, segundo conta a história (não sei quando nem como os dois “fizeram as pazes”, mas parece que eles vieram a se “entender” tempos depois).

Em 1971, a versão alemã da compilação Guitar Boogie reuniu as sete faixas registradas com Clapton a quatro das cinco faixas registradas com Beck (apenas “Piano Shuffle” ficou de fora, sendo que “Miles Road” não aparece nas versões internacionais da coletânea). As doze faixas aparecem espalhadas ao longo dos quatro lados da versão em vinil da compilação White Boy Blues, de 1984, junto a faixas de grupos como John Mayall & The Bluesbreakers, Cyril Davies And The All Stars, Santa Barbara Machine Head e Jeremy Spencer. As faixas com Beck aparecem aqui e ali em diversas coletâneas do guitarrista (embora a única em que eu tenha encontrado as cinco juntas seja a compilação British Blues Heroes, de 1990, que também apresenta músicas de outros artistas), enquanto as sete faixas de Clapton foram reunidas em parte da compilação dupla The Early Clapton Collection, de 1987 (que também apresenta faixas gravadas pelo guitarrista com os Yardbirds e com o John Mayall’s Bluesbreakers, e que foi onde as conheci, sendo este o registro responsável pela confecção deste texto, pois nunca antes eu havia ouvido sequer falar da existência da All-Stars, sendo que acho curioso que o grupo não é sequer citado nem na biografia de Clapton, nem no livro Luz e Sombra, que aborda a carreira de Page), sendo que a compilação Eric Clapton & Friends: The Early Years, lançada em CD e K7 em 1991, reúne cinco destas faixas (e ainda credita erroneamente “Snake Drive” e “Tribute To Elmore” a John Mayall & The Bluesbreakers).

Como escrevi, nenhuma destas faixas vai mudar a sua visão sobre a carreira ou o talento de nenhum dos envolvidos. São “apenas” blues instrumentais executados por alguns dos melhores músicos do estilo que perambulavam pelos estúdios de Londres naquele ano de 1965. Se sua “praia” sonora for esta, pode conferir sem medo, pois não há nenhum risco de se arrepender do que você irá escutar. Boa audição!

2 comentários sobre “Tralhas do Porão: The Immediate All-Stars, o supergrupo que nunca existiu

  1. Em certo ponto do texto, escrevo que Page e Clapton “registraram cinco “improvisos” instrumentais baseados no blues”, mas, na verdade, como corrijo adiante, foram sete as faixas gravadas pelos dois.
    Não consegui identificar quais as faixas gravadas por Page com a All-Stars na primeira sessão, ocorrida antes das gravações com Beck, nem se Beck efetivamente participa das duas faixas com Page registradas na segunda sessão citada no texto (embora todas as fontes indiquem que os dois guitarristas tocam em “Down in the Boots” e “LA Breakdown”, me parece haver apenas uma guitarra ali, que, pelo que apurei, seria de Page). Mas, de todo modo, existem compilações de Beck onde pelo menos quatro das cinco faixas citadas (com “Piano Shuffle” sendo a exceção) aparecem creditadas ao guitarrista, então…
    Aparentemente, a gravadora Immediate usou o nome All-Stars em outras gravações feitas posteriormente para o selo (inclusive, o Mairon me chamou a atenção para uma faixa que é “lado B” do single “The First Cut Is the Deepest”, de PP Arnold, lançado em 1976, e que saiu sob o nome The Immediate All Stars – a faixa, chamada “King Of Kings, ao que apurei, teria sido gravada em 1967, mas não sei quais os músicos envolvidos), porém, ao que pude apurar, apenas a “marca” foi usada, utilizando outros músicos que tinham contrato com o selo na época, e sem nenhuma ligação a Page, Beck, Clapton ou aos músicos dos Stones.
    Achei esta uma história bastante curiosa, porque a história de um grupo reunindo músicos dos Yardbirds e Stones (e gente que, futuramente, seria do Cream e do Led Zeppelin) – e até “Deus” (no caso de Clapton) – deveria ser mais “lendária” e “famosa’ do que é, e, antes de conhecer a compilação do Clapton que citei no texto, eu nunca havia escutado sequer menção a estas gravações! Acho o fato destas gravações terem ficado “escondidas” em algum canto da história, pelo menos, muito curioso!

  2. No final dos anos 80 o selo Charly relançou a coletânea Blues Anytime, que inclusive saiu em LP no Brasil pela Estúdio Eldorado. Eu comprei os discos na época, mas, como quase todos os meus LPs, acabaram indo parar na coleção de um amigo meu. Lembro que as músicas não chamavam muito a atenção, mas é muito legal ver esse trabalho pouco conhecido sendo recuperado aqui.

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