Discografias Comentadas: Camel [Parte I]

Discografias Comentadas: Camel [Parte I]

Por Marcello Zapelini

Formado em Guildford, em Surrey (GB), em 1971, o Camel pode ser considerado um progressivo de segunda geração, cujo primeiro álbum só sairia em 1973, quando as principais bandas do gênero já tinham lançado seus principais discos. Entretanto, os quatro primeiros álbuns do grupo podem ser considerados discoteca básica para os fãs de prog rock, e A Live Record é um ao vivo quase perfeito. Como quase todo grupo de progressivo, o Camel teve diversas formações e sobrevive com um membro fundador, o guitarrista Andrew Latimer, e ao longo da história abrigou músicos razoavelmente conhecidos, como o baterista Paul Burgess (ex-Jethro Tull e 10cc), Richard Sinclair (ex-Caravan e Hatfield And The North), Mel Collins (ex-King Crimson e mais um monte de bandas), David Paton (ex-Pilot e Alan Parsons Project), Kit Watkins (ex-Happy The Man) e Ton Scherpenzeel (ex-Kayak).

Uma característica da banda bastante interessante está em suas músicas instrumentais. Ao longo da carreira, o Camel sempre privilegiou esse lado da sua arte, construindo belas composições que impressionam pela forma em que os diferentes instrumentos se entrelaçam e formam um “tapete” sonoro único. Os vocais, à exceção dos períodos em que Richard Sinclair e Chris Rainbow (outro colaborador de Alan Parsons) estiveram na banda, não chegam a se destacar muito, mas não comprometem. E há que se destacar a qualidade fora do comum de músicos como Latimer e Pete Bardens, que não precisam de longos solos para se mostrarem como instrumentistas muito superiores à média – isso sem desprezar outros ótimos músicos que passaram pelo grupo ao longo dos anos. Latimer, inclusive, é um flautista de mão cheia e sempre que utiliza esse instrumento faz algo de bom gosto.

Claro, nem tudo são pedras preciosas. Após A Live Record, a banda foi se tornando cada vez mais voltada para o jazz fusion e depois para pop, mas ainda assim conseguiu discos interessantes como Nude e Stationary Traveler. Após ter sido demitido da Decca, o Camel passou um longo tempo sem lançar discos, ainda que não tenha oficialmente se dissolvido, e desde 2002 não lança um álbum de estúdio com músicas inéditas. A banda chegou a anunciar uma turnê de despedida em 2003, e Latimer teve que se tratar de uma doença cardíaca, mas retornou ao estúdio para regravar The Snow Goose em 2013. Na sequência, o Camel continuou se apresentando ao vivo com Latimer, Colin Bass no baixo, Denis Clement na bateria e Peter Jones nos teclados. Em março de 2023, Latimer precisou cancelar a turnê de 50 anos do grupo para se submeter a uma cirurgia, e ainda não há novidades sobre shows ou futuras gravações. Assim, enquanto a gente espera por novidades, vamos revisitar o passado e avaliar a discografia do Camel!


Camel [1973]

Onde tudo começou – e começou muito bem, aliás! O álbum de estreia foi lançado em fevereiro de 1973 e já traz alguns dos elementos que se tornariam próprios do som do Camel: as instrumentais (“Six Ate” e “Arubaluba”), a flauta (que surge já na introdução da segunda música, “Mystic Queen”, cantada por Ferguson, que pouco repetiria essa função nos discos posteriores), os teclados variados que fornecem as bases melódicas das músicas e se aventuram em voos solo… A primeira música, “Slow Yourself Down”, é uma rara parceria entre Latimer e Andy Ward, e as outras seis são divididas entre Bardens (que assina “Mystic Queen”, “Curiosity” e “Arubaluba”) e Latimer (autor de “Six Ate”, “Separation” e “Never Let Go” – com vocal de Bardens). O LP vendeu pouco, e o compacto promocional (com “Never Let Go” no lado A) também não promoveu bem a banda, que foi dispensada da MCA Records logo depois. A produção de Dave Williams faz com que o álbum soe um pouco abafado, mas não é de todo ruim. Camel recebeu dois bônus no CD, a versão para compacto de “Never Let Go” e a faixa “Homage to the Gods of Light” (retirada do primeiro disco-solo de Pete Bardens, lançado em 1970), gravada ao vivo em outubro de 1974 no Marquee. Posteriormente, na box set Air Born, Camel aparece com mais um bônus, a inédita “Sarah” e “Homage…” na versão de Greasy Truckers Live at Dingwall’s Dance Hall (o show do Marquee é lançado completo em outros dois CDs), e numa versão remixada com melhor qualdiade sonora. No todo, um ótimo álbum de estreia, com destaque para as instrumentais e “Never Let Go”, e um dos melhores discos da banda.

Lineup: Andrew Latimer (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados e vocal)/Andy Ward (bateria)/Doug Ferguson (baixo e vocal)


Mirage [1974]

Mirage é um forte candidato a melhor disco do grupo. Com produção esmerada de David Hitchcock, Mirage traz cinco músicas, começando com o ritmo vertiginoso de “Freefall” (cantada por seu autor Pete Bardens), seguindo com o show de Latimer na flauta na belíssima instrumental “Supertwister” (outra composição certeira do tecladista), para desembocar na mini-épica “The White Rider” (de Latimer, cujas duas primeiras partes são instrumentais e se chamam “Nimrodel” e “The Procession”; na terceira parte ele assume o vocal), inspirada em O Senhor dos Anéis de Tolkien. Virando o LP, o ouvinte era brindado com outra instrumental, “Earthrise” (parceria entre Latimer e Bardens), e mais uma composição longa, “Lady Fantasy”, assinada pelos quatro músicos (e com vocais divididos entre Latimer e Bardens); essa é a música mais executada ao vivo pela banda, quase sempre como o encerramento. Difícil destacar algo quando o nível é altíssimo do começo ao fim, mas o trecho instrumental de “The White Rider”, com os solos de Bardens no sintetizador e um riff inesquecível de Latimer, e a fantástica “Lady Fantasy” são o que mais me chama atenção. A capa, baseada no maço dos cigarros Camel, teve que ser mudada nos EUA, pois a companhia ameaçou processá-los. Entretanto, na Europa a empresa não apenas endossou como ainda distribuía maços com cinco cigarros nos shows e forneceu uma série de banners que eram usados na decoração do palco – um acordo entre os fabricantes e os empresários que a banda jurou não ter sido sequer informada. Mirage recebeu três bônus em CD gravados no Marquee em 74, mais a versão original de “Lady Fantasy”, e em Air Born é expandido para dois CDs, incluindo as demos (muito boas, por sinal) de 1973, a versão original de “Lady Fantasy”, a inédita “Autumn” e quatro gravações ao vivo para a BBC, incluindo “Ligging at Louie’s”, uma música que o grupo não registrou em estúdio. Este é um disco obrigatório para quem quer conhecer o Camel, necessário para quem gosta de prog e recomendável para todo fã do rock inglês dos anos 70.

Lineup: Andrew Latimer (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados e vocal)/Andy Ward (bateria)/Doug Ferguson (baixo)


The Snow Goose [1975]

Para o terceiro LP, o grupo decidiu-se por criar um álbum conceitual baseado em um livro. Inicialmente sugeriu-se Siddartha e Steppen Wolf, de Herman Hesse, mas no final foi selecionado o pequeno romance de Paul Gallico, The Snow Goose, que trata da amizade entre um artista (Rhayader) recluso e uma garota (Fritha), que curam um ganso-das-neves machucado e se envolvem na operação de resgate de Dunquerque. O ganso acompanha os dois nas idas e vindas, e ganha a fama de trazer sorte aos soldados ingleses que aguardavam o resgate; ao final, um avião alemão se choca com o farol abandonado em que Rhayader morava, matando-o e destruindo todas as suas pinturas, à exceção de um retrato de Fritha com o ganso. Essa bela e triste história rendeu um álbum inteiramente instrumental (poucas músicas incluem wordless vocals de Latimer) que traz alguns dos momentos mais belos da história do rock progressivo em seus sulcos, com Latimer, Bardens, Ferguson e Ward no seu auge como instrumentistas e o acompanhamento da London Symphony Orchestra, regida por David Bedford, conhecido pelo seu trabalho com Mike Oldfield. Há muitos destaques: as lindas melodias de ”Rhayader”, “Fritha” e “The Snow Goose”, os sopros da orquestra que dão o tom em “Friendship” e uma melodia vocal de Latimer em “Migration” (“Preparation” é outra música com vocal), a abertura orquestral de “Flight of the Snow Goose”, o ritmo marcial de “Dunkirk”, a tristeza de “Fritha Alone”, com Bardens ao piano… O projeto original envolvia intercalar as músicas com trechos do livro declamados por Bardens e Latimer, mas Paul Gallico (que tinha vendido os direitos para uma dramatização a ser gravada em álbum sob a direção do comediante britânico Spike Milligan) proibiu e protestou, exigindo que na capa fosse escrito Music Inspired by The Snow Goose. Uma versão ao vivo completa, com o acompanhamento da orquestra, foi registrada no Royal Albert Hall em outubro de 1975 e lançada como o segundo LP de A Live Record em 1978. A reedição em CD trazia “Flight of the Snow Goose” e “Rhayader” tais como editadas para compacto e mais material ao vivo no Marquee; Air Born reprisa esses edits e acrescenta “Riverman” (escrita e gravada antes da gravação de The Snow Goose), bem como uma versão ao vivo quase completa para a BBC e mais dez minutos de outra gravação ao vivo, ambas de 1975. The Snow Goose, outra produção de David Hitchcock, foi lançado em maio de 1975 e chegou ao 22º lugar na Inglaterra, onde recebeu disco de prata. Pouco sucesso comercial para uma obra desse quilate, mas deixa para lá…

Lineup: Andrew Latimer (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados)/Andy Ward (bateria)/Doug Ferguson (baixo)

O Camel em 1975

Moonmadness [1976]

Os fãs do Moody Blues costumam se referir ao conjunto de discos que vai de Days of Future Passed a Seventh Sojourn como The Magnificent Seven. Os do Camel poderiam perfeitamente se referir aos quatro primeiros como The Fantastic Four. Moonmadness está à altura de Mirage e The Snow Goose, e qualquer um dos três pode ser indicado como melhor álbum da banda sem causar estranheza (e todos estão acima do excelente álbum de estreia). Lançado em abril de 1976, o disco, produzido pela banda em parceria com Rhett Davies, atingiu o 15º posto da parada britânica, e trazia sete músicas, quatro delas com vocais. Doug Ferguson assume os vocais em “Song Within a Song” (Latimer assumiria os vocais após a saída do baixista), Pete Bardens, em “Spirit of the Water” e Andrew Latimer, em “Air Born” e “Another Night”. Mas o grande destaque, para mim, são as ótimas instrumentais “Chord Change” e “Lunar Sea”. O track list se completa com mais uma instrumental, a curta “Aristillus”, assim denominada por causa de uma cratera lunar Curiosamente, a bela capa do original britânico foi substituída nos EUA pela ilustração de um camelo com traje de astronauta na Lua. A primeira reedição em CD trouxe a versão editada de “Another Night”, a demo original de “Spirit of the Water” e algumas gravações ao vivo no Hammersmith Odeon em 1976. Posteriormente, boa parte desse show formou um CD extra na DeLuxe Edition de 2009. Na box set Air Born, Moonmadness inclui outras demos das músicas do álbum, e o show completo do Hammersmith se divide em dois CDs.

Lineup: Andrew Latimer (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados e vocal)/Andy Ward (bateria)/Doug Ferguson (baixo e vocal)


Rain Dances [1977]

Após a saída de Doug Ferguson, a banda convidou o ótimo Richard Sinclair (ex-integrante do Caravan e do Hatfield And The North) para o baixo e vocais, e incluiu Mel Collins como membro “semioficial” nos saxes e flautas – ele não aparece na foto da contracapa, mas no encarte é tratado como se fosse um integrante oficial, não como convidado ou session man. O álbum abre no melhor estilo do Camel, com a bela instrumental “First Light”, em que os sintetizadores de Bardens, a guitarra de Latimer e o sax alto de Collins dão o tom da música, que devia ter sido mais longa. “Metrognome” coloca Sinclair em destaque, não apenas no vocal como também numa linha de baixo excelente e há um solo de guitarra fantástico ao final. A bela “Tell Me” também se beneficia de um belo vocal de Richard Sinclair, mas quem rouba a cena é Latimer, que se divide no baixo fretless e na flauta. Collins toca apenas clarinetes. A levemente fusion “Highways of the Sun” traz Latimer no vocal pela primeira vez no LP, que não decepciona (acho que ele sentiu a concorrência de Sinclair), e Bardens rouba a cena com seus sintetizadores. “Unevensong”, um dos destaques do álbum, poderia ter rendido um épico, mas a banda não decola; novamente Bardens se destaca no sintetizador e Latimer e Sinclair dividem o vocal. Daí até o final o que se tem é um conjunto de instrumentais, começando com “One of These Days I’ll Get an Early Night”, levemente jazzística, com Collins fornecendo o riff (e um belo solo), Bardens voando alto, e um bom solo de guitarra, tudo isso sobre o baixo impressionante de Sinclair. “Elke” traz Brian Eno contribuindo nos teclados, mas é dominada por Latimer, que toca violão (uma raridade), piano, sintetizador e flauta; uma das mais belas músicas da banda, ainda que um pouco fora do estilo deles. “Skylines” é outra melodia mais jazzística, com Latimer mais uma vez se destacando na guitarra. Por fim, a curtinha faixa-título traz apenas Collins, Latimer e Bardens, mais uma bela instrumental para fechar o disco, com o triste solo de sax soprano. Rain Dances teve uma edição com material ao vivo retirado de um show da BBC – que em Air Born ganha um CD próprio (além de aparecer em vídeo num Blu-Ray), e o LP original se completa com material ao vivo gravado (e quase não usado) para A Live Record.

Lineup: Andrew Latimer (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados e vocal)/Andy Ward (bateria)/Richard Sinclair (baixo e vocal)/Mel Collins (saxofone e flauta)

Richard Sinclair, Andy Ward, Peter Bardens, Andrew Latimer e Mel Collins. Camel em 1977

A Live Record [1978]

LP duplo ao vivo gravado em shows entre 1974 e 1977. Boa parte do material inclui Doug Ferguson, que já tinha deixado o grupo. Eventualmente, uma reedição de 2002 trouxe mais quarenta minutos de músicas gravadas nos mesmos shows que renderam o álbum original. Em A Live Record a banda queria resumir sua história em vez de simplesmente retratar um show da turnê de Rain Dances, o que se reflete na escolha do repertório: embora lançado após Rain Dances, A Live Record traz apenas “Skylines” desse disco, e Richard Sinclair e Mel Collins participam de apenas quatro músicas no primeiro LP. Duas gravações ao vivo no Marquee em 1974, “Liggin’ at Louis” e “Lady Fantasy” completam o primeiro disco, e o segundo, como mencionado antes, é dedicado à apresentação de The Snow Goose no Hammersmith Odeon em 1975, com a participação da London Symphony Orchestra. A arte da capa é bem simples, e mesmo na parte interna há somente umas poucas fotos dos músicos. A Live Record é um bom sumário dos primeiros cinco anos da carreira do Camel, e os shows que o compunham forneceram bônus para vários relançamentos em CD dos primeiros álbuns. Em Air Born, todas as músicas que o formaram estão disponíveis, mas espalhadas pelos vários CDs ao vivo – por causa disso, meu velho CD duplo está mantido na minha coleção!

Lineup: Andrew Latimer: (guitarra, flauta e vocal)/Pete Bardens (teclados e vocal)/Andy Ward (bateria)/Richard Sinclair (baixo e vocais – 1977)/Doug Ferguson (baixo – 1974-76)/Mel Collins (saxofones e flauta – 1977)

4 comentários sobre “Discografias Comentadas: Camel [Parte I]

  1. É a melhor fase do Camel. Daqui em diante é muito baixos e altos (com mais baixos do que altos). Em especial, sou apaixonado pelo The Snow Goose, e claro, o ao vivo é incrível. Tenho a impressão de que o Camel sofre do mesmo que Nektar e Wishbone Ash, ou seja, lançou 4 discos de estúdio impecáveis, um ao vivo fantástico, mudou a formação e nunca mais conseguiu ser o mesmo.

    Aguardando as demais partes, tendo a certeza que nenhuma delas se equiparará a esta aqui em termos musicais

    Baita resgate

  2. De fato, a melhor fase do grupo! Eles ainda têm alguns discos bons, mas nada que se compare aos quatro primeiros, e não precisa nem ser fã de prog para concluir isso

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