Maravilhas do Mundo Prog: King Crimson – Pictures of a City [1970]

Maravilhas do Mundo Prog: King Crimson – Pictures of a City [1970]

 

Por Mairon Machado

Continuando as Maravilhas Prog criadas pelo King Crimson, temos agora o momento crucial para a sobrevivência do grupo. A saída de McDonald e Giles pouco depois da turnê de divulgação de In the Court of the Crimson King (contendo a Maravilhosa “Epitaph”) colocou a casa da banda em um tremor de quase 9.9 graus na escala Richter, danificando muito as estruturas internas, levando posteriormente Lake a aceitar o convite de Keith Emerson e fundar o Emerson Lake & Palmer.

Porém, o guitarrista e líder da banda Robert Fripp tinha a companhia inseparável do amigo Peter Sinfield, e com ela, apostava que podia seguir em frente. O primeiro passo foi avaliar os danos e tentar construir rapidamente uma base que sustentasse suas ideias. Sinfield decidiu aprimorar seus conhecimentos sobre sintetizadores e aprendeu a tocar mellotron, instrumento que Fripp também se especializou no período.

O guitarrista convenceu os irmãos Peter e Michael Giles a retornarem para o King Crimson (já que ambos haviam feito parte do projeto Giles, Giles & Fripp, pouco antes da formação do Rei Escarlate, e Peter foi o baterista e In the Court of Crimson King), mas agora como músicos contratados. Para substituir Lake nos vocais, o jovem Reginald Dwight fez parte de alguns ensaios, mas acabou não sendo aprovado pelo exigente perfeccionismo de Fripp. Anos depois, Reginald vendeu (e continua vendendo) milhões de álbuns sob o pseudônimo de Elton John. A solução encontrada foi também ofertar a Lake um contrato para a gravação apenas dos vocais (já que o baixo ficou com Peter Giles), tendo como pagamento o sistema de PA do grupo (!).

Faltava um substituto para Ian McDonald. Os instrumentos de sopro haviam sido o principal destaque no álbum de estreia, caracterizando o som Crimsoniano (junto do mellotron) e sua ausência era impensável para o projeto dar certo. Resultado, Fripp seduz o saxofonista Mel Collins a fazer parte da banda. Mel havia feito participações em shows e também em algumas gravações do The Animals, e estava consolidando-se como integrante do grupo Circus. Tocar no King Crimson foi um passo natural, revelando um músico fantástico.

Com uma visão de mudar um pouco a direção sonora, deixando-a mais acústica, o pianista Keith Tippett é integrado ao grupo (apesar de não ser apresentado como um membro oficial). Também pensando no futuro, Fripp chamou um ex-colega de infância para testar seus vocais. Gordon Haskell é o nome da pessoa em questão, e ele frequentou os estúdios de gravação entre os meses de janeiro e abril de 1970, período no qual foi registrado o segundo álbum do King Crimson

Peter Giles, Keith Tippet, Greg Lake e Michael Giles (acima); Robert Fripp (sentado)
Peter Giles, Keith Tippet, Greg Lake e Michael Giles (acima); Robert Fripp (sentado)

No dia 15 de março, o King Crimson apresentou-se (pela única vez) no programa Top of the Pops da BBC, interpretando a inédita “Cat Food”, e com a formação tendo Fripp, Lake, Tippet e os irmãos Giles. Lançado dois meses depois, em 15 de maio de 1970,  In the Wake of Poseidon manteve o mesmo estilo de som que encantou o mundo com In the Court of Crimson King. Lá estão o mellotron, os instrumentos de sopro, a voz aveludada de Lake e passagens sonoras arrepiantes. Até a sequência musical parece ser a mesma, o que levou a imprensa a cair de pau na banda, dizendo que o grupo era pouco criativo e sem inspiração, chegando ao ponto da revista Rolling Stone acusar a banda de ser uma plagiadora dela mesma.

O fato é que as semelhanças com o primeiro disco existem, mas o segundo não perde em nada sua qualidade por conta disso. Pelo contrário. Os problemas internos parecem não ter afetado a composição final das faixas, e o que ouvimos é um álbum talvez superior ao seu antecessor. Ainda mais com sua abertura, a maravilhosa “Pictures of a City” (contendo no subtítulo a frase ‘including 42nd and Treadmill”), para muitos, a irmã-gêmea de “21st Century Schizoid Man”, porém muito mais madura (e por que não, gostosa). No início, “Pictures of a City” chegou a ser batizada de “A Man, A City”. É assim que podemos encontrá-la na caixa Epitaph, citada no artigo anterior.

Capa interna (autografada) de In the Wake of Poseidon
Capa interna (autografada) de In the Wake of Poseidon

Nossa maravilha surge após a vinheta “Peace – A Beginning”, a qual é apenas um breve poema entoado por Lake entre sons de pássaros, e já detona as caixas de som com o rufar e viradas da bateria, enquanto saxofone, baixo e guitarra executam as mesmas notas, para apresentar o jazzístico tema central da canção, em um andamento cadenciado de Giles. Uma virada de Giles traz a voz de Lake, entoando palavras soltas e rasgando a voz no final de cada frase, com o peso comendo ao fundo principalmente na guitarra de Fripp. O tema central é repetido, trazendo a sequência da letra, com a mesma pegada da primeira estrofe, e dela, entramos na viajante sessão instrumental, através de rasgadas notas da guitarra.

É Fripp quem abre a sequência de solos com um tema estupidamente cavalar e quebrado, acompanhado por viradas excelentes da bateria, uma escala fabulosa do jazz e a marcação do saxofone. A velocidade das notas da guitarra é estonteante, mostrando todo o virtuosismo de Fripp, e claro, as bases jazzísticas ao fundo são de fazer qualquer cidadão vibrar com tamanha perfeição. Ainda somos apresentados a uma série de notas que vão diminuindo suas frequências, para Fripp repetir seu solo, com o baixo e a bateria imitando o ritmo de suas notas em uma marcação soberba.

Após toda a velocidade do solo de Fripp, baixo e bateria acalmam os ânimos, e Fripp desliza seus dedos pelo botão de volume, fazendo um solo muito leve, com tímidas notas, utilizando-se bastante de escalas de grandes músicos do jazz, como Django Reinhardt e Wes Montgomery. A medida que a bateria aumenta seus rufos, as notas da guitarra vão se misturando esquizofrenicamente, explodindo na última estrofe vocal, para Lake rasgar sua voz, e a guitarra, carregadíssima de distorção, encerrar essa maravilhosa mistura de jazz com o rock em uma barulheira infernal, com destaque para Giles, que simplesmente detona a bateria.

220px-Cat_Food_&_GroonDepois da pancada de “Pictures of a City”, somos apresentados a voz grave de Gordon Haskell na balada “Cadence and Cascade”, uma espécie de irmã (porém não-gêmea) de “I Talk to the Wind”, e encerra-se com a faixa-título, outra Maravilha, com os mesmos dotes e talentos de “Epitaph”.

No lado B, a vinheta “Peace – A Theme” dá espaço para “Cat Food”, o único single desse álbum, lançado em 13 de março de 1970, trazendo no lado B a estranha “Groom” (que ficou de fora do vinil), seguindo com as  três partes de viagens insanas de “The Devil’s Triangle” (“Merday Morn”, “Hand of Sceiron” e “Garden of Worm”), inspiradas no movimento “Mars: Bringer of War”, da suíte “The Planets”, composta por Gustav Holst, para encerrar o LP com “Peace – An End”, assim como as demais, outra rápida vinheta para Lake despedir-se dos fãs Crimsonianos e fazer fama no Emerson Lake & Palmer.

Vale a pena ressaltar a arte de In the Wake of Poseidon. A obra, pintada por Tammon de Jongh em 1967, recebeu o nome de The 12 Archetypes, e também ficou conhecida como The 12 Faces of Humankind. Essas doze faces representam composições dos quatro elementos naturais (Ar, Água, Terra e Fogo) interagindo entre eles através de personagens, seis femininos e seis masculinos. Assim, temos as faces representadas como:

i) O Idiota (Fogo e Água): Homem sorrindo com uma barba rala;

ii) A Atriz (Água e Fogo): Menina egípcia com lágrimas nos olhos;

iii) O Observador (Ar e Terra): Cientista careca com óculos redondos sobre da testa;

iv) A Mulher Adulta (Terra e Ar): Mulher com rosto enrugado e protegendo-se do frio;

v) O Guerreiro (Fogo e Terra): Homem com capacete de aço e chifres, além de vasta barba preta;

vi) A Escrava (Terra e Fogo): Mulher negra com grandes brincos de Ouro;

vii) A Criança (Água e Ar): Menina com sorriso doce e cabelos presos em laços no formato de borboleta;

viii) O Patriarca (Ar e Água): Idoso de rosto comprido e longos cabelos brancos;

ix) O Lógico (Ar e Fogo): Cientista de rosto comprido, com a mão esquerda cercada por estrelas;

x) O Coringa (Fogo e Ar): Espécie de Harlequim sorridente com chapéu de ouro no formato do chapéu de Napoleão.

xi) A Encantadora (Água e Terra): Menina triste com olhos lacrimejantes e cabelos esvoaçantes;

xii) A Mãe Natureza (Terra e Água): Silhueta de um rosto coberto por uma camada de gramas e cercado por flores e borboletas.

As doze faces: No lado esquerdo, sentido horario: O Lógico, O Patriarca, A Mulher Adulta, A Escrava, A Mãe-Natureza e O Observador; No lado direito, sentido horário: A Criança, A Encantadora, A Atriz, O Coringa, O Guerreiro e O Idiota.

Essa é uma das capas mais belas da carreira do King Crimson, ao lado da sua sucessora, representando o álbum Lizard. Lançado em 1971, ele veio ao mundo após mais uma série de turbulentas colisões internas, e novamente, com todas as dificuldades, Robert Fripp e sua mente brilhante proporcionaram mais uma Maravilha Prog, a terceira em sequência, e que carrega justamente o nome do álbum em que foi lançada. Contaremos sua história no próximo mês, aqui no Maravilhas do Mundo Prog.

7 comentários sobre “Maravilhas do Mundo Prog: King Crimson – Pictures of a City [1970]

  1. Essa crítica de que o segundo disco é uma versão piorada do primeiro, para mim, não se sustenta, afinal, não tem nada no “In the Wake…” que se compare à parte instrumental de “Moonchild” do primeiro disco, e “The Devil’s Triangle” também não tem contrapartida no primeiro álbum. Entretanto, concordo com quem acha “In the Wake…” um disco relativamente fraco na discografia do Crimson, mas, considerando-se o que eles vivenciaram durante a gravação, acho que se saíram muito bem! A próxima maravilha do Crimson será “Lizard”, mas “Cirkus” bem que merecia um destaquezinho…

    1. “Cirkus” é uma bela faixa, porém Jon Anderson alavanca (E MUITO) os pontos para “Lizard”. Vlw marcelo

  2. “Pictures” é uma música que eu nunca tinha dado muita atenção, até ouvir a versão do box Epitaph citada no texto. Não sei exatamente o motivo, mas a versão ao vivo dela me atraiu muito mais que a de estúdio (que, inclusive, é posterior). Quando Fripp reformulou o KC com Jakko “sobrenome impossível de escrever correto sem copiar” Jakszyk nos vocais e a formação com sete (ou oito) integrantes, ela voltou a integrar os set lists, inclusive tendo Mel Collins nos sopros. Existem algumas versões ao vivo com esta formação muito boas, as quais acho ainda melhores que aquelas pré-“oficial de estúdio”. Resumindo, um clássico da banda, que, ao vivo, soa ainda mais jazzística e agradável.

    Uma coisa que sempre achei curioso neste disco foi Fripp ter copiado praticamente “na cara dura” o arranjo de “Mars” , de Holst, e colocado outro nome só para “parecer como algo inédito”. Nas versões do box Epitaph, ela aparece como “Mars”, e é praticamente a mesma do “In The Wake of Poseidon”… nunca soube (também nunca me aprofundei para saber) porque Fripp não assumiu que era uma versão (como o ELP fez, anos depois, nos tempos com Powell na bateria – versão esta que conheci antes da do KC, por isto sabia que a de Fripp não era “original”), e preferiu chamar de “Devil’s Triangle” a “sua” música, mas, cada louco com suas manias, certo?

    Ainda sobre “In The Wake”, esta formação com Jakko toca, vez por outra, uma “Peace: a suite”, que faz a união das três vinhetas “Peace” em uma única peça, num arranjo muito bonito, e que valoriza bastante a obra em si, ao contrário da forma como o disco as apresenta, separadas entre si. A quem não conhece, vale conferir!

    1. Legal micael, não conhecia essa “Peace a suite”, até porque o que vem do KC pós 1975 eu praticamente não conheço ou torço o nariz. Vou atrás dessa peça. Valeu o comentário

  3. O King Crimson praticamente “abandonou” as músicas deste disco em seus shows depois da formação que lançou “Islands” se consolidar. Acho que apenas “Cat Food” ganhou espaço vez por outra na formação com Wetton e Bruford, e talvez uma ou outra tenha sido tocada na fase “Lizard”/”island”.. Quando Belew entrou pro grupo, acredito que nunca mais essas músicas (tão belas) foram interpretadas antes da formação com Jakko nos vocais, que, por ter feito parte da Schizoid Band junto aos irmãos Giles e a Mel Collins, acabou “trazendo de volta” pro repertório do grupo um monte de músicas “antigas”, incluindo a quase totalidade deste álbum (acho que só a faixa título e “Devil’s Triangle” que não foram recuperadas pelas formações com sete ou oito integrantes que o Rei Escarlate teve desde então). Sempre achei curioso Tony Levin e Pat Mastelotto terem ficado quase trinta anos (com algumas pausas entre eles) na formação do grupo, fazendo turnês constantes, e, quando a formação com Jakko se consolidou, terem de aprender um repertório praticamente inteiramente novo para tocar nos palcos, ainda que fizessem parte da mesma banda há tanto tempo (algo que, para músicos do gabarito deles, tiraram de letra, obviamente). Mas acho curioso uma banda “voltar tanto” às origens como o KC fez desde que se juntou a Jakko, a ponto de músicos com tanto tempo “de casa” nunca terem tocado antes certas composições que viraram “habituais” do repertório ao vivo desde então, como as do disco “In The Wake”…

    1. Repito meu comentário anterior com um adendo: E o que foi feito das músicas da trilogia colorida? Abandonadas ou ainda no set list?

      1. Algumas ainda aparecem (“Neurotica” e “Indiscipline” – onde o Jakko “canta” a letra ao invés de “recitar” como o Belew, mudando bastante o arranjo – são as mais frequentes), mas tanto as músicas dos anos 80 quanto as dos anos 90 perderam bastante espaço no repertório para o KC “clássico” da década de 70… Até “Lizard” já chegou a ser tocada quase na íntegra, faltando apenas a parte com Jon Anderson (“Prince Rupert Awake”, salvo engano)… as demais, todas já foram tocadas ao vivo, por vezes em sequência, inclusive!

        Caso desperte interesse, o site da DGM Live tem uma sessão “tour dates”, onde dá para fazer, gratuitamente, o download de pelo menos uma música de quase todos os shows que o KC vinha executando até 2021. VOU.PASSAR.O.LINK: https://www.dgmlive.com/tours?liveshow=on

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