Datas Especiais: 50 Anos de Goat’s Head Soup

Datas Especiais: 50 Anos de Goat’s Head Soup

Por Marcello Zapelini

Em julho de 1972, The Rolling Stones encerravam uma turnê pelos Estados Unidos que se tornaria famosa não apenas pela música, mas também pelos excessos. A banda estava no auge, e era hora de capitalizar esse sucesso; assim, em novembro daquele ano, o grupo, instigado por Mick Jagger, se instalou em Kingston, na Jamaica, para iniciar a gravação de um novo LP. Eventualmente, o grupo iria para Los Angeles em janeiro de 1973 e para Londres (em maio) para completar a gravação, que seria a última a ser produzida por Jimmy Miller – que vinha se mostrando essencial para tirar do grupo o que ele tinha de melhor desde as sessões de Beggar’s Banquet em 1968. E além de Jagger, Richards, Watts, Wyman e Taylor, a banda contou com o apoio dos tecladistas Nicky Hopkins, Ian Stewart e Billy Preston, bem como Bobby Keyes, Jim Horn, Chuck Findley e Jim Price para os metais, e Pascal, Jimmy Miller e Reebop Kwaku Baah (do Traffic) na percussão.

Capa alternativa

Em 31 de agosto de 1973, as lojas estavam cheias de um disco com a capa amarela, com um Mick Jagger dando uma de Katherine Hepburn na capa, e Keith Richards na contracapa, todos com véus diáfanos cobrindo seus rostos. Abrindo a capa, Charlie Watts, Mick Taylor e Bill Wyman também apareciam cobertos com véus. A capa não era essas coisas – mas a ideia original, em que os Stones se transformariam em centauros, seria pior ainda… O LP vinha num envelope com fotos dos músicos que participaram da gravação (mas nem todos), e ainda trazia uma foto de uma sopa de cabeça de bode (literalmente) – aliás, uma lata (vazia) de sopa foi distribuída como item promocional, hoje raríssimo. As rádios receberam o single com “Angie” para promover, o que desagradou a Atlantic Records, que queria um rock no estilo “Brown Sugar”. A recepção da crítica seria morna; o álbum foi considerado muito mais fraco do que os anteriores (também, era covardia; Exile on Main Street e Sticky Fingers, os dois LPs anteriores, são presença garantida nas listas de melhores de todos os tempos). Os Stones, depois de tantos anos no topo, pareciam estar escorregando morro abaixo. E aqui eu abro espaço para uma digressão pessoal: alguns anos atrás eu teria concordado que Goat’s Head Soup marcou o início da decadência da banda, mas hoje não mais. Depois explico por quê.

O álbum começa com a guitarra de Keith Richards tocando o riff de “Dancing with Mr. D”, seguido pelo resto da banda e com Mick Taylor no slide (ouça a versão instrumental na edição Super Deluxe para ver o quanto ele era bom nessa área). A letra sombria (Mr. D seria Mr. Death – ou Mr. Devil) é cantada por Jagger com uma voz diferente da que estamos habituados, e a música segue ganha energia no refrão. Entretanto, na comparação com as faixas de abertura anteriores (pensem em “Brown Sugar” e “Gimme Shelter”, por exemplo), ela sai perdendo – o que provavelmente contribuiu para o relativo insucesso de crítica do álbum. Bill Wyman está fora (a versão final traz Taylor no baixo), e apenas Nicky Hopkins acompanha os Stones nos teclados. Na sequência, “100 Years Ago”, iniciada por Billy Preston no clavinete; mais uma vez Bill Wyman está fora, substituído por Keith, e Taylor toca todas as guitarras – com direito a um solo explosivo no final. Nicky Hopkins e Jimmy Miller contribuem com o piano e o pandeiro, e a música se destaca pela ótima marcação de Charlie Watts na bateria, bem como pelo solo de Taylor. Tocada ao vivo apenas duas vezes em 1973, a música desapareceu dos setlists, o que é uma pena, pois abre espaço para um bom solo de guitarra.

Sopa de cabeça de bode

Keith Richards assume o vocal principal na bela “Coming Down Again”, mostrando o quanto sua voz pequena e nasal funciona numa balada. Mick Jagger se junta na harmonia vocal, criando um belo efeito, e mais uma vez Mick Taylor toca baixo – as guitarras são todas de Keith, e Bill Wyman teria tocado sintetizador (mas ganha um prêmio quem o identificar). Nicky Hopkins se destaca no piano, e Jim Horn e Bobby Keyes respondem pelos metais – o solo de Bobby no sax é extremamente lírico. Richards uma vez declarou que a música é um pouco fúnebre, e que se não fosse o vício em heroína, não a teria composto – mas se recusou a dizer se a letra trata da droga ou de sua complicada relação com Anita Pallenberg, nessa época marcada pela infidelidade de ambos.

“Doo Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker)” vem a seguir, um rock mais pesado do que os demais, com um belo arranjo de metais, com Bobby Keyes, Jim Horn, Jim Price e Chuck Findley. Billy Preston responde pelos teclados e Rebop e Pascal, pela percussão. A letra fala de crianças mortas, uma por um erro da polícia e a outra por overdose, e Richards no baixo, com Mick Taylor tocando as guitarras rítmica e solo. Os backing vocals são um destaque da música e trazem Jagger, Richards, Taylor e Preston juntos. Essa música foi tocada nas turnês de 1973 e 1975, e voltaria aos setlists nos anos 90 – mas nunca foi muito comum, com pouco mais de 100 execuções ao longo dos anos. “Angie” encerra o lado A e é a música mais conhecida do disco. A bela e triste balada romântica, conforme Jagger, não foi escrita para Angela Bowie, deixando a dúvida: a única Angela na vida dos Stones era a filha de Keith Richards, nascida em 1972. Os Stones completos estão na música, com acompanhamento de Nicky Hopkins (que faz o solo de piano) e de cordas arranjadas por Nicky Harrison. Bill Wyman finalmente deu as caras, e sua linha de baixo é muito boa. “Angie”, ao longo dos anos, foi tocada ao vivo em diferentes turnês – mas em várias delas é visível a dificuldade de Jagger de cantar como na original.

Encarte original

O lado B abre com “Silver Train”, que já tinha sido gravada por Johnny Winter, e fora tentada pela primeira vez em 1970 – a versão de Winter teria inspirado os Stones a completá-la. Ian “Stu” Stewart está ao piano e Mick Taylor brilha no slide, com Jagger se juntando a Richards na guitarra-base, além de tocar harmônica. É uma boa música, mas, como “Dancing with Mr. D”, não devia estar na abertura. E não há registro de quem tocou o baixo – o estilo não é de Wyman, e nem Taylor nem Richards se lembram qual deles o substituiu. “Hide Your Love” é uma composição de Jagger, que toca piano; Keith Richards pode ter sido o baixista, mas se não o foi, nem participou da música, pois Mick Taylor simplesmente não deixa espaço, fazendo dois dos seus melhores solos na banda (encorajado por Jagger com um “C’mon my man!” aos 2’01). Rebop e Jimmy Miller acompanham na percussão e Bobby Keyes toca sax barítono – ainda que pouco audível por causa da mixagem.

Na sequência, a bela “Winter”; primeira música gravada para o disco, ela foi trabalhada sobretudo por Jagger e Taylor – que acabou não sendo creditado, o que é uma pena, porque os seus solos são simplesmente perfeitos em seu lirismo e melodia (durando mais de 50 segundos, um feito em termos de Rolling Stones). Richards, aliás, nem participou da gravação, que traz Jagger na guitarra rítmica, Taylor, Wyman e Watts, com Nicky Hopkins no piano e as cordas arranjadas por Nicky Harrison. O problema está na música seguinte. Nada salva “Can You Hear the Music”, uma incursão pela world music que põe em destaque a flauta de Jim Horn e as percussões de Pascal, Rebop e Jimmy Miller. Nicky Hopkins completa os Stones aqui, e seu piano até é bacaninha, mas a música não ajuda. Para compensar, o álbum tem um encerramento perfeito. “Star Star” – ou “Starfucker” – é o rock safado e sem vergonha que todos esperavam em um disco dos Stones, descaradamente calcado em Chuck Berry e com uma letra que cita John Wayne, Steve McQueen e Ali McGraw para falar da groupie que é a melhor transa do mundo. Bill Wyman entra aos 0’34 e transforma a música, que ainda conta com o velho Stu no piano. Depois de um show de Taylor ao longo do disco, Richards toca o solo com seu estilo inconfundível, meio desleixado, meio sujo. A música termina, e com ela o disco – mas raramente ouço este álbum sem repeti-la.

Stones ao vivo em 1973

Além das dez músicas que compõem Goat’s Head Soup, três outras gravadas nas mesmas sessões seriam lançadas nos anos seguintes: “Through the Lonely Nights” sairia como lado B do single com “It’s Only Rock’n’Roll (But I Like it)” no ano seguinte, e “Waiting on a Friend” e “Tops” sairiam em 1981 no “Tattoo You”. Outra música, “Short & Curlies”, seria completada e lançada em “It’s Only…”. “Goats Head Soup” foi promovido por uma turnê europeia que passou por oito países e rendeu 41 shows, com “Angie”, “Dancing with Mr. D”, “Doo Doo Doo Doo Doo” e “Star Star” sendo tocadas na maioria dos shows, e “Silver Train” e “100 Years Ago” em apenas uns poucos.

Capa do box

O álbum teve boa vendagem e liderou as paradas nos EUA e na Inglaterra, bem como na Espanha, Austrália, Noruega, Holanda e Canadá – e voltaria a liderar na Inglaterra quando foi relançado em edição Deluxe (e Super Deluxe) em 2020. Recebido inicialmente com decepção pela crítica, o disco seria reeditado em 2009, quando o catálogo pós-71 foi remasterizado, e edições Deluxe (CD duplo) e Super Deluxe (três CDs e um DVD ou Blu-Ray). Esta última é a preferível, não apenas pela ótima qualidade sonora, mas pelos extras: um CD de outtakes (ainda que “Scarlet”, com Jimmy Page na guitarra, seja do ano seguinte), em que a banda finalmente lançou “Criss Cross Man”, removida da tracklist na última hora para dar lugar a “Hide Your Love”, e outra música inédita, “All the Rage”, bem como versões instrumentais, demos, e mixagens alternativas, e um terceiro CD que traz o músicas de dois shows em Bruxelas em 1973, transmitidos pela rádio para a França (a banda não podia entrar no país porque Richards estava sendo processado por posse de drogas), seguramente uma das melhores gravações ao vivo da longa carreira da banda, antes disponível somente em vinil ou em piratas (“Brussels Affair”). Por fim, o DVD/Blu-Ray traz os clips da época, bem como o áudio das músicas originais e das três inéditas do CD2. O pacote é acompanhado por um belo livro encadernado em capa dura e pelas reproduções de quatro posters de shows da época.

Agora retomo a minha digressão para concluir. Goat’s Head Soup cresceu muito em meu conceito por duas razões: os dois Mick. Jagger nunca mais soou tão variado: da fragilidade de “Angie” à falta de vergonha na cara em “Star Star”, passando pela tristeza de “Winter” e os múltiplos overdubs com vozes diferentes em “Can You Hear the Music”, ele atingiu seu auge como cantor neste disco. Já Taylor… Indubitavelmente o instrumentista mais talentoso que foi membro oficial da banda, o Mick mais jovem tem neste disco o seu melhor desempenho enquanto um Stone, com solos excepcionais e bases perfeitas. Pode conferir a discografia da banda: nenhum outro disco tem guitarras tão boas quanto este (Sticky Fingers e Some Girls chegam perto, mas não superam a sopa de cabeça de bode). “Call me lazy bones, ain’t got no time to waste away” – don’t you think it’s about time to listen to Goat’s Head Soup again?

Track list

  1. Dancing With Mr. D.
  2. 100 Years Ago
  3. Coming Down Again
  4. Doo Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker)
  5. Angie
  6. Silver Train
  7. Hide Your Love
  8. Winter
  9. Can You Hear The Music
  10. Star Star

4 comentários sobre “Datas Especiais: 50 Anos de Goat’s Head Soup

  1. Belíssimo texto para um belíssimo disco. Sticky Fingers é o meu favorito da era Taylor, seguido deste aqui . Apesar de venerarem Exile, acho a banda (ou melhor, Jagger, Taylor e Watts) mais centrados e calcados em fazer boas músicas do que nas experimentações do disco de 1972. It’s only r’n’r tb é outro disco, mas ja mostra como o Taylor estava cada vez mais deslocado daquilo que Jagger e Richards pretendiam para a banda. Uma pena, mas que acabou gerando uma outra fase para os caras. Baita lembrança Marcello

  2. “Sticky Fingers” também é meu álbum favorito dos Stones com Mick Taylor, mas “Goats” cresceu demais no meu conceito nos últimos anos, não só colocando a carreira da banda em retrospecto, mas pelos seus próprios méritos. E de fato Mick Taylor estava ficando deslocado na banda, que sempre se destacou por uma sonoridade mais coletiva, sem tanto destaque para os indivíduos. Não desmereço Ronnie Wood, que considero um guitarrista melhor do que seu trabalho nos Stones faz a gente pensar, mas a saída de Taylor deixou um buraco no som da banda que nunca foi preenchido. É pena que ele nunca mais conseguiu realizar seu potencial depois de ter deixado a banda. Obrigado pelo comentário e pelo elogio!

  3. Creio que o Wood caiu como uma luva para que Jagger/Keef pudessem se manter como o centro das atenções. Watts sempre foi um cara discreto, e Wood, como baixista de origem, não teria por que tomar as atenções musicais como Taylor estava fazendo. Gosto do Tattoo You e também do Some Girls, mas com certeza, os Stones nunca mais conseguiram MUSICALMENTE criar algo tão impactante quanto foi no período onde Jones, e depois Taylor, brilhavam

  4. Ronnie Wood se mostrou parceiro para Keith Richards – não só em termos musicais, já que os dois curtiam um bocado juntos – e acho que isso contou muito para sua manutenção na banda, já que Mick Jagger nunca o colocou em nível muito elevado, musicalmente falando. A banda ainda lançou uns discos legais, como os que você menciona, e confesso estar muito curioso para ver como o novo álbum, “Hackney Diamonds”, vai se sair. Como provavelmente será o último disco de inéditas dos Stones, tento controlar minhas expectativas, mas está difícil…

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