Tralhas do Porão: High Tide

Tralhas do Porão: High Tide

Por Ronaldo Rodrigues

O High Tide foi um seminal grupo britânico de rock psicodélico/hard/prog do fim dos anos 60. Sua reputação foi local e restrita, mas deixou um bom número de ouvintes boquiabertos. A principal inovação do grupo foi o uso intensivo do violino, não apenas como instrumento solista, mas em uma posição de embate (positivo) com a guitarra. A presença do violino ainda era muito recente em bandas de rock – na mesma época do High Tide estavam se formando (ou eram recém-formados) grupos como Curved Air, The Flock, Family e It’s a Beatiful Day.

A cabeça da banda era o guitarrista Tony Hill, um garoto comum daqueles tempos que se apaixonou pelo rock n’ roll, particularmente pelos Shadows. Depois de um tempo aprendeu a tocar violão e guitarra e teve trabalhos convencionais (um deles em um estaleiro). Nessa época dos estaleiros, colegas músicos de lá que já tocavam o convidaram para uma temporada tocando em bases militares dos EUA na França. Lá foi a primeira experiência de Tony Hill no palco. Hill formou sua própria banda, de blues/garage-rock, chamada The Answers, na qual ele começou a prova o sabor das próprias composições. O The Answers, com poucas perspectivas de sucesso, durou apenas 3 anos e lançou um par de compactos pela Columbia UK.

Nas andanças com o The Answers, Hill conheceu o pessoal do The Misunderstood (veja mais detalhes em outra matéria dessa seção, aqui) e ficou transitando entre os EUA e a Inglaterra entre 1966 e 1967. Com eles, gravou e lançou um dos singles que geraram a notoriedade atingida pela banda, ancestral do setentista Juicy Lucy. Mas a empreitada com o Misunderstood durou pouco menos de 1 ano; o vocalista e principal compositor do grupo (o americano Rick Brown) foi convocado para a guerra do Vietnã. Ele se refugiou na Índia e o Misunderstood foi forçado a encerrar temporariamente as atividades.

Hill continuou batalhando para formar um novo grupo e trabalhando em novas composições. Para um guitarrista talentoso e com a experiência já adquirida, encontrar adeptos não foi exatamente difícil. Nesse ponto, as histórias são um pouco conflitantes nas versões de quem Hill convidou primeiro, mas o fato é que em 1969 estavam reunidos Tony Hill com Roger Hadden (bateria), Simon House (teclados e violino) e Peter Pavli (baixo). Simon tocava inicialmente baixo com Hill, mas apresentou seus dotes como violinista e foi assim que ele ficou no grupo, já batizado como High Tide. O grupo teve relativa sorte em conseguir um contrato com o pequeno selo Liberty (o próprio Roger Hadden havia trabalhado para eles antes) e ser gerenciado por Wayne Bardell, bastante profissional e favorável aos interesses dos grupos que gerenciavam. Bardell depois integrou uma produtora com outros quatros produtores de grupos da época, a Clearwater Productions, que cuidava do High Tide, do Skin Alley, do Cochise e do Hawkwind.

O High Tide se apresentou por todos os pequenos e notórios clubes de som de Londres em 1969 – Roundhouse, Marquee, Middle Earth, e no circuito universitário. O som que faziam era basicamente baseado  nas composições e letras de Hill, contando com um grande senso de improvisação em longos solos e contribuição coletiva de todos nos arranjos. Eles não eram exatamente performáticos, mas duas coisas impressionavam a plateia além da qualidade da música – a grande parede de amplificadores que os precediam e o volume com que tocavam. A plateia ficava estatelada! Depois de rodar um bocado o repertório no palco, a banda estava pronta para gravar tudo que tinha em estúdio e lançar o primeiro álbum.

Sea Shanties é nada menos que inovador. Nos primeiros acordes do álbum, na faixa “Futilist’s Lament” o ouvinte já é sacudida por uma distorção pesadíssima de guitarra, que encontra poucos paralelos no rock do período. Entram junto órgão nessa massa pesada com wah-wah e violino acompanhando! Quem fazia isso dessa forma? “Death Warmed Up” acelera o andamento em uma jam louca entre violino e guitarra por mais de 9 minutos. “Pushed, but not forgotten” e “Walking down their outlook” poderiam estar no repertório do Curved Air (caso esse já tivesse estreado em disco e a banda forçasse mais as guitarras). Em “Missing Out” temos o violino de Simon House trabalhando muito bem como se fosse uma segunda guitarra, em quase 10 minutos de solos e mais solos; o mesmo ocorre na rifferia de “Nowhere”, uma das mais concisas do discos. Os vocais estão longe de ser um destaque, mas não comprometem. A bateria e o baixo são bastante sólidos, mas o conjunto tem uma resultantes de forças incrível. O disco foi gravado tentando reproduzir a mesma vibe do palco – todos os amplificadores juntos na mesma sala! não à toa, o disco soa muito cru e pesado, uma coisa bastante única no panorama da época. Segundo o baixista Peter Pavil, a maioria das críticas que o disco recebeu foram do interessado ao elogio, mas uma das principais publicações, a Melody Maker, detonou o álbum com um categórico – maré alta, vazante baixa. Mas o fato é que as plateias do High Tide aumentaram sensivelmente após o modesto lançamento pela Liberty.

Após o lançamento o grupo continuou trabalhando e, seguindo as tendências, foram morar no campo fora da região metropolitana de Londres. Lá ensaiavam e psicodelizavam o tempo todo, abusando bastante do LSD. Hill continuava compondo o material para o próximo álbum e ele veio, com uma dose superior de ousadia, também lançado pela Liberty em 1970.

Blankman Cries Again soa mais bem acabado, e menos bruto que o anterior, ainda que em essência a fórmula sonora do High Tide esteja mantida. A distorção das guitarras aparece mais contida, os teclados mais variados, a bateria e o baixo mostram-se em grande sintonia. É um trabalho menos pesado, e aparentemente mais alinhado ao conjunto de bandas daqueles anos iniciais do rock progressivo, nos quais era muito comum um flerte com o também embrionário rock pesado. A faixa de abertura, de longa duração, traz uma marcante linha vocal e mostra a guitarra se deleitando sobre uma base repetitiva muitas vezes e arrematada pelo violino. A faixa seguinte, “The Joke”, tem toda a pinta prog, com um belíssimo duelo de guitarra e violino e intervenções pouco convencionais de bateria e baixo; em seu miolo se parece um pouco com o trabalho do Caravan turbinado por guitarras distorcidas e dos 5 aos 7 minutos é puro sumo de High Tide, até desaguar em uma bela passagem acústica folk. O álbum tem o lado 2 ocupado pelos 14 minutos de “Saneonimous”, que é uma espécie de compilação de tudo que a banda tem a oferecer em todo seu repertório, com um ar mais prog e menos pesado.

Depois do lançamento, contudo, estava claro que o High Tide não tinha vocação para sair do underground. Mas o que realmente decretou o fim (um longo hiato, na realidade) do grupo foi o colapso de saúde mental do baterista Roger Hadden, depois de meses e meses de abuso de LSD. Os músicos debandaram e cada um foi para um canto, se reunindo ocasionalmente. Simon House foi tocar com o Hawkwind e colaborou com David Bowie.

2 comentários sobre “Tralhas do Porão: High Tide

  1. “Sea Shanties” é um bom disco, musicalmente falando, embora eu não goste muito dos vocais do Tony Hill. A proposta da banda, com o violino como instrumento mais destacado, é bem interessante e é de se perguntar aonde o High Tide teria chegado se tivesse continuado mais um tempo. Nunca ouvi o segundo disco, entretanto – tinha visto críticas negativas a ele e não me animei a procurar. Mas agora o texto despertou minha atenção. Interessante que o Simon House acabou aparecendo na Consultoria em dois artigos seguidos, pois mencionei-o no meu texto sobre o “Stage” do David Bowie no artigo sobre os discos ao vivo de 1978!

  2. Legal, cara! eu até que gosto da voz dele, até mais no segundo disco. Acho que ele era um bom compositor de melodias que serviam bem pra voz dele. O segundo disco é menos pesado que o primeiro, mas é bem legal. Já quanto ao Simon, coincidência mesmo!
    Abraço!

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