Camisa de Vênus: 40 Anos Causando Incômodo

Camisa de Vênus: 40 Anos Causando Incômodo

 

Por Davi Pascale

Em 1983, um grupo de rock baiano incomodava a cena brasileira. Suas críticas, seu deboche e sua irreverência… Tudo parecia verdadeiro demais. Até a sonoridade era verdadeira demais. Aqueles que não gostavam de seu trabalho, os acusavam de serem maus músicos. Podia até ser verdade, mas verdade ainda maior era de que existia uma magia ali.

Para entender a importância do grupo é necessário entendermos um pouquinho do que rolava em nosso país naquele momento. O Brasil passava por uma fase delicada. Vivíamos os resquícios de um período de ditadura militar. A censura imperava nas rádios e na televisão. Na música, não era diferente. Antes do disco ir para as lojas, as músicas precisavam passar por uma aprovação. Fato que emputeceu os músicos da Blitz, a ponto de enviarem seu disco intencionalmente riscado às lojas. Era o modo de passar a mensagem de maneira clara: “a censura ainda não acabou e não estamos felizes”. Isso para não citar aqueles demais problemas já conhecidos de todos: população sem direito ao voto, inflação, entre outras coisas mais.

 

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O disco de estreia da Blitz marcou o início da geração 80, mas deixava claro: a censura continua!!!

 

Por essas e outras não dá para tirar o valor de uma banda como o Camisa que conquistou toda uma geração, indo na contramão. A briga começou já pelo nome da banda. A gravadora Som Livre (pertencente ao grupo da Rede Globo) ofereceu um contrato para os rapazes, por conta da boa vendagem do compacto Meu Primo Zé, com a condição de que alterassem o nome de seu conjunto. O cantor Marcelo Nova não perdeu a oportunidade de tirar uma onda com a cara do diretor e respondeu que toparia mudar para Capa de Pica. É claro que ele perdeu o contrato e o disco foi distribuído com relapso. Tudo que ele estava tentando fazer ali era derrubar a hipocrisia, manter a veracidade de sua obra e não se tornar um fantoche da gravadora. Um ano depois do episodio, os caras assinaram um contrato com a RGE que colocou o álbum de volta ao mercado.

Aos poucos, os problemas foram sendo vencidos, mas a passos curtos. Quando o Camisa lançou o LP Viva, em 1986, não tiveram músicas riscadas, mas tiveram disco apreendido. O LP que havia sido enviado para as lojas sem a aprovação dos censores foi recolhido e quando retornou ao mercado, a capa trazia a seguinte mensagem: “As faixas Eu Não Matei Joana D´Arc, Hoje, My Way, Bete Morreu, Silvia, Solução Final, Metástase e o Adventista, não foram submetidas a Divisão de Censura de Diversões Publicas. Não estão autorizadas as suas execuções públicas ou radiofônicas”. Ou seja, o grupo podia vender seu disco, mas não podia divulga-lo em rádio ou TV. Era um modo de tentar calar os músicos. A jogada não deu certo. As vendas cresceram (todo mundo queria saber o que tinha de tão especial naquele LP para ele ser recolhido de todas as lojas) e a popularidade do grupo cresceu.

 

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Disco foi recolhido das lojas e as vendas dispararam.

 

O disco de estreia, auto-intitulado, lançado em 1983, não trazia palavrões pesados, mas nem por isso deixou de incomodar as pessoas. A primeira paulada já vinha na faixa de abertura, “Passamos Por Isso”. Marceleza mandava sua mensagem à Som Livre. Versos como “Vê se conserva suas raízes – Eles disseram. Camisa de Venus é alienação” e “Quiseram mudar nosso nome. Deixar tudo arrumadinho. Nos deram até a liberdade de tocar Brasileirinho”, além de narrarem a situação, serviam como uma critica ao modo operante das gravadoras. Alias, critica ao sistema é o que não falta aqui.

Durante a audição do LP encontramos criticas à lavagem cerebral que a mídia faz ao povo e a todo o sistema de pão e circo oferecido pelo governo. Versos de Dogmas Tecnofacistas (“Novos dogmas são planejados/ Velhos anseios são adaptados/ O tecnofacista mostra o caminho/ Siga a matilha ou vai morrer sozinho”, “Já temos tudo que não leva a nada/ Temos a inteligência pré-fabricada) é um bom exemplo. Isso para não citar o hoje clássico “O Adventista” onde ele provoca a tudo e todos com versos como “Eu acredito no bem e no mal/ Eu acredito no imposto predial” ou ainda “Eu acredito em quem anda com fé. Eu acredito em Xuxa e em Pelé”. E em seguida emenda, “Não vai haver amor nesse mundo nunca mais”. O nome da canção dá a dica. Adventista é o termo utilizado para aqueles que esperam o retorno de Cristo à Terra. É como se ele dissesse que acreditar naquilo tudo seria o mesmo que acreditar em Papai Noel. E o grande problema é que na letra ele também questiona a religião e o cristianismo.

Havia ainda mais polemicas. O lado A fechava com uma versão de “Negue”. O Camisa de Venus era vendido como uma banda punk e a faixa era um samba-canção de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos que ficou conhecida nas vozes de artistas como Nelson Gonçalves e Maria Bethania. Marcelo explicou que quis gravar a musica pela dramaticidade da letra. A atitude não deixa de ser corajosa, tendo em vista que os punks não são muito receptivos à outros gêneros.

 

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Banda fez enorme sucesso na década de 80, mesmo utilizando linguagem não convencional.

 

Como se não bastasse, havia ainda a canção “Bete Morreu” que contava a historia de uma garota atraente que era estuprada e assassinada covardemente. Não demorou para que começassem a criticar a banda e a faixa foi censurada, sendo proibida de ser tocada nas rádios. O mais impressionante de tudo é que ainda hoje (40 anos depois) nos deparamos com comentários do tipo “estavam fazendo apologia ao estupro”. Eu sei… Parece brincadeira, mas não é. Isso sem contar que a ultima reedição do álbum Viva em CD teve todas as frases de Marcelo Nova, como aquele discurso em prol das mulheres antes de Silvia, devidamente retiradas da reedição. E sem a aprovação dos músicos. Eu mesmo comentei disso com o Marcelo Nova quando entrei em seu camarim e ele me disse: “Aaahh… Estou sabeeendo, me senti desrespeitado. Quando recebi o CD em casa, quis atirar na parede. Por isso, não quero mais saber de trabalhar com grandes gravadoras”.

A sonoridade sofria influencia direta da cena punk e era bastante honesta, deixando evidente a limitação de seus músicos. Esse tipo de postura, nesse tipo de musica, acaba sendo positivo. No entanto, sinto falta de mais distorções nas guitarras. Acredito que deixaria o álbum ainda mais feroz.

O Camisa tentou uma nova formação sem o vocalista Marcelo Nova, mas não funcionou e com todo o respeito aos músicos, não teria como funcionar, não teria como dar certo uma versão do Camisa de Venus sem Marcelo. Seu estilo de letra, sua postura de palco e seu carisma são definitivamente a marca registrada da banda. Há alguns anos, Marceleza e Roberio Santana juntaram forças e lançaram dois (bons) álbuns de inéditas, fizeram novas turnês e mostraram que a chama continua acesa, que aquilo que é bom e honesto não tem data de validade. Em uma época de tanta caretice e tanta cagação de regras, é bom ver um grupo como esse provocando e colocando a galera para pensar. E que venham novas reuniões, novas canções e novos questionamentos. A cena roqueira agradece…

 

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“Não tenho banda, tenho conjunto. Banda todo mundo tem” (Nova, Marcelo)

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