Santana: Uma Trinca de Ouros Para a Eternidade

Santana: Uma Trinca de Ouros Para a Eternidade

Por Eudes Baima

No começo e no fim é o grito

 – o grito de amor e vida, de desespero e morte,

 de paixão e música – isto é Santana

(Ben Fong Torres, 1998)

Santana cravou, ao longo de sua carreira, um número relevante de clássicos. Na verdade, até Moonflower, de 1976, a discografia de Santana, a banda, e de Santana, o artista solo, beira a perfeição, com uma alta média de qualidade. Os anos de 1980 foram infelizes para o guitarrista (mas quem, entre os medalhões da década anterior, não chafurdou na lama nos anos de 1980?), e os de 1990 o consolidaram na condição de dinossauro, importante pelas façanhas passadas, mas pouco relevante naquele momento. Só no final desta última década, Santana recuperou seu peso comercial, voltando a vender discos aos milhões (mesmo já na crise do formato CD), mas produzindo peças que não entusiasmaram seus fãs dos primeiros tempos.

Apesar desta longa trajetória, e com discos irretocáveis, como já observado, sobretudo ao longo dos anos de 1970, bastariam a trilogia inicial da discografia para colocar Santana no panteão das grandes bandas da história do rock. Santana (1969), Abraxas (1970) e Santana (1971, mais conhecido como Santana III) seguem estabelecendo um padrão com o qual toda banda de rock, independentemente de estilo, precisa se medir.

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Santana em Woodstock, 1969

As pessoas vêm várias razões para nossa popularidade (…), mas a principal razão, a motivação primeira para as pessoas saírem de casa para nos ouvir ou para comprar nossos discos é o grito”, disse uma vez Carlos Santana numa entrevista à revista Rolling Stone. A mesma revista, contudo, explicava que por trás do grito dos sustenidos da guitarra de Santana estava uma mistura de congas, timbales e tambores em geral com a potência eletrificada do rock’n’roll, um som jamais ouvido antes. De fato, o som da banda remetia a diferentes audições do jazz latino que chegou aos EUA a partir dos anos 40, das endiabradas brass bands cubanas que cruzaram a fronteira do estado da Flórida e penetraram nas madrugadas das metrópoles norte-americanas, da música negra que invadiu as rádios durante os anos 60 e das vertentes mais experimentais do rock contemporâneo (alguém falou aí Jimi Hendrix?). A sonoridade de Santana, plasmada na guitarra de Carlos, no órgão Hammond B3 de Gregg Rollie e na seção rítmica massacrante, era uma síntese dessas influências.

Esta sonoridade, hoje inconfundível, não veio, é claro, pronta. Uma tal abrangência de influências, além da inesperada introdução do jogo de cintura latino no rock sem cintura, levava a banda, antes de chegar ao disco, a se notabilizar por longas sessões de improviso quase jazzístico, em temas complexos e anticomerciais. O grande trabalho do maestro Albert Gianquinto, que arranjou o primeiro e o segundo discos, foi o de manter as complexas viagens instrumentais, mas recortadas num formato pop, na média de no máximo 4 ou 5 minutos por faixa. Esta medida, que originalmente visava a tornar a banda “tocável” no rádio, acabou por formatar as características básicas do som da banda, em primeiro lugar a capacidade de ser complexo sem ser chato nem reiterativo, males que afligiam boa parte das bandas mais inovadoras do final dos anos de 1960. Ao vivo, entretanto, Santana nunca abandonou as longas e empolgantes jam sessions de sua fase pré-discográfica.

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A primeira cartada de Santana

PRIMEIRA CARTADA: SANTANA (1969)

Quando Santana embasbacou o mundo em agosto de 1969, com sua massacrante versão de “Soul Sacrifice”, no Festival de Woodstock, o álbum de estreia da banda já tinha vendido feito bolo em fim de feira no mercado americano, e “Evil Ways”, single extraído do disco, tinha se tornado viral na programação das emissoras de rádio. Woodstock, sobretudo o filme e o disco triplo, ambos de 1970, apenas internacionalizaram a popularidade de Santana.

“Evil Ways”, composta por Sonny Henry, foi aliás a música que detonou o processo criativo de Santana (1969), com sua mescla de balanço latino, eletricidade instrumental e uma melodia cativante, um single perfeito. Como explica Carlos Santana, o formato, com uma ligeira intensificada na componente rock da coisa, originou “Waiting”, faixa instrumental que inicia abusadamente o disco.

Mas a coisa entre em ebulição mesmo é com “Savor”, desembestada rumba elétrica puxada por uma percussão absurdamente pesada e rebolativa, sobre a qual Carlos e Gregg estraçalham em solos de órgão e guitarra de acordar o condomínio. Não por acaso, a faixa emenda com a não menos estraçalhante “Jingo” que, é verdade, é mais reflexiva, mas não perde a pegada rock’n’roll num back ground de tambores insanos. O medley das duas faixas no vídeo conhecido como “Tanglewood/Bill Graham Presents” dá uma ideia da intensidade desta sequência clássica. E para não deixar o ouvinte respirar, a banda emenda “Persuasion”, na qual a interação eletro-percussiva prossegue armando a cama para os voos solo de Carlos Santana e Gregg Rolllie.

Finalmente o pobre ouvinte tem um momento de relaxamento com a finíssima “Treat”, onde a percussão abolerada está à serviço de uma levada classic soul, com uma lindíssima evolução de Rollie ao piano elétrico. Santana arremata tudo com um de seus primeiros solos languidamente românticos que fizeram sua fama posterior. “You Just don’t Care” é um blues com guitarra e órgão, tão ao gosto da época. Energética, a faixa prepara a entrada do ápice do disco, com “Soul Sacrifice” que encerra esta primeira cartada de Santana.

“Soul Sacrifice” é talvez a faixa mais emblemática de toda a carreira de Santana, tendo sido, por anos, o ápice de seus concertos. Começa discreta com um riff de baixo, para depois deixar entrar a harmonia ao órgão. Pouco a pouco, a percussão vai ocupando seu lugar e, finalmente, o tema guitarrístico é tocado, para se repetir até o fim da faixa, mas somente depois de derivar em várias direções, no que um dia foi um improviso jazz rock. É como se Santana aplicasse a uma peça rock o método de “Ravel” no seu Bolero. A versão original, presente no disco de estreia, é arrasadora, mas a performance de Wodstock é que se tornará eterna por saeculum saeculorum.

O disco alcançou o quarto lugar no Billboard, e permaneceu na lista dos mais vendidos por 108 semanas. O single “Evil Ways” chegou ao quarto lugar, ficando entre os mais vendidos por 13 semanas.

Era só o primeiro disco, mas cabia perguntar: o que mais poderia vir pela frente?

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A segunda cartada de Santana

SEGUNDA CARTADA: ABRAXAS (1970)

O sucesso do primeiro álbum pegou os jovens músicos de Santana de calças curtas. Afinal, eles não passavam de garotos da baixa classe média de San Francisco, que nem tinham formado nas primeiras levas do rock psicodélico da Costa Oeste, e que se viam guindados à condição de superstars do rock. Além do mais, a roda viva das excursões, naquele estilão noitadas, gruppies e bagulhos de diferentes tipos e potências, não era o melhor cenário para compor e produzir um novo álbum. Mas quem não produziu nestas condições no fim dos anos de 1960 não produziu nada de importante.

Por incrível que pareça, Carlos Santana tinha ficado meio frustrado com a produção do disco de estreia e via o segundo álbum como um desafio no que diz respeito à sonoridade da gravação.

De fato, o disco soa mais refinado, tanto nos arranjos quanto na captação e mixagem dos instrumentos, com bastante espaço para a sutilezas sonoras. A intensidade é outra, menos concentrada, mais esparçada, mas está lá. A primeira faixa, “Singin’ Winds, Cryin’ Beasts”, já denuncia esta nova abordagem. Inicia com uma sequência lenta de notas ao piano, seguida da guitarra, mais gritada do que nunca, para cair num tema atmosférico, sublinhado aqui e ali pelas cordas de Carlos e pelo Fender Rhodes de Gregg, tudo sobre uma base percussiva hipnótica. Não é a faixa mais lembrada da banda, mas funciona como uma carta de intenções do disco.

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Versão original de Abraxas

Desgostoso com o Fleetwood Mac, Peter Green se aproximou de Santana e chegou a participar da produção de Abraxas (não creditado). Sua passagem pelos estúdios, porém, deixou uma marca indelével na forma de “Black Magic Woman”. Um hit discreto da banda de Green, a faixa se tornou o maior êxito de Santana. E pensar que Gregg passou um ano convencendo a banda a fazer o cover… No disco, “Black Magic Woman” aparece num medley com “Gypsy Queen”, de Gabor Zsabo, um dos heróis musicais de Carlos.

A presença de Peter Green inaugura uma das marcas de Santana, a grande abertura para participações de diferentes músicos nos trabalhos da banda, o que se estendeu a uma longa história de formações mutantes que acabaram por identificar o guitarrista Santana com a banda Santana.

“Oye Como Va”, do ícone da música caribenha, Tito Puente, se tornou uma das canções mais identificadas com Santana. A faixa marca ainda uma característica deste segundo álbum que é o maior espaço dado a canções calcadas na rumba, no mambo e no cha-cha-cha tradicionais. “Oye Como Va”, com efeito, é um número tradicional, versionada muitas vezes e simbólica da invasão caribenha na noite nova-iorquina nos anos de  1950. O cover de Santana é, contudo, talvez o mais lembrado.

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Santana, recebendo disco de ouro por seu álbum de estreia

“Incident at Neshabur” recoloca a proposta da faixa de abertura, trazendo, a despeito do peso da base, uma sonoridade refinada, realçada pela mixagem limpa e detalhista. “Se Acabo” retorna à influência caribenha, numa levada dançante em torno de um tema proposto por Jose Areas, percussionista clássico da banda. Contagiante!

A faixa anterior é o clímax que prepara o romantismo de “Samba pa Ti”, tema de Carlos Santana que de samba não tem nada, mas é um lindo bolero moderno e cheio de sutilezas e contra-cantos. Outra faixa incontornavelmente presente nas centenas de antologias da banda publicadas ao longos das décadas.

“Hope you’re Feeling Better” é talvez a faixa mais pesada desta fase da banda. Um rockão puxado para o blues, onde a percussão latina serve mais para sublinhar e intensificar a batida heavy. “El Nicoya” encerra o disco com um clima percussivo ritualístico que saúda o sucesso de Santana ao vencer o desafio que a banda tinha se colocado ao projetar este segundo disco. Saravá, meu pai!

Abraxas estreou em primeiro lugar no Billboard, posto que ocupou por seis das oitenta e oito semanas que permaneceu no chart. “Black Magic Woman” atingiu o quarto lugar e permaneceu treze semanas na lista, enquanto “Oye Como Va” atingiu o décimo terceiro posto.

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A última cartada

TERCEIRA CARTADA: SANTANA III

Para o meu gosto, Santana III é o melhor desta trinca campeã e, por consequência, da carreira de Santana. É também o canto de cisne desta primeira e imbatível formação da banda. Tanto porque Santana caminhava para se tornar uma superbanda, reunindo virtuoses em vários instrumentos, agregando para III o guitarrista Noel Schon e o percussionista latino Pepe Scovedo, quanto porque é o último com o organista, cantor e principal compositor da banda, ao lado de Carlos, Gregg Rolie. Gregg e o recém chegado Schon saíram para se juntar ao chatérrimo grupo Journey, fazendo, ao meu ver, um péssimo negócio, visto que, no que pese o sucesso momentâneo desta banda, os dois despontaram para se tornar meras notas de roda pé na história do rock.

Mas antes deste mal passo, ao lado de Carlos Santana, fizeram este disco espetacular. Santana III é um daqueles discos em que não há como destacar uma faixa melhor. O lado um é, de longe, uma das sequência mais empolgantes já gravadas. Abre com a endiabrada “Batuka”, uma batida cadenciada que desagua num tema pesado e num solo avassalador que se liga à discreta e esperta “No One to Depends On”, que se revela uma rumba eletrificada que vai tomando o ouvinte devagarinho até nos dominar os movimentos e nos jogar na dança. Cheia de breaks, a faixa é um prodígio de climas hipnóticos.

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Capa dupla original de III

Para não dar chance de reação ao ouvinte, a banda emenda a dramática “Taboo” onde Gregg canta uma melodia suave sobre uma base percussiva desconcertante e pontuada por suaves intervenções da guitarra de Carlos.

Para fechar este que é um dos melhores lados de um LP da história do rock, Santana detona uma rumba descontrolada, com percussões luxuriantes chamada “Toussaint L’Overture”, em homenagem ao herói da revolução haitiana que, em 1804, constituiu a primeira república negra das Américas. Trata-se de um transe vodu que nos sacode e nocauteia.

O lado dois não deixa por menos. A pesada levada “Everybody’s Everything”, o momento mais padrão rock do disco (mas nem por isso ordinário) definitivamente não nos prepara para a orgia dançante de “Guajira”, faixa emblemática da banda e que embalou dez entre dez festas de rock mais descoladas ao longos dos últimos quarenta anos.

Num outro e muito diferente mood, entra “Jungle Strut”, faixa que, do meu ponto de vista, inaugura a tendência jazz rock que Carlos Santana exploraria bastante nos anos de 1970, e é uma das melhores incursões do guitarrista no estilo.

“Everything Comes My Way”, ótima faixa pop, parece um pouco abaixo nesse cenário de tantos números inesquecíveis. Finalmente, para terminar, Santana lança mão de novo coquetel molotov do arsenal de Tito Puente, “Para Los Rumberos” que fecha esta coleção imbatível de canções num clima celebratório com o fim indisfarçável de sacodir nossos esqueletos.

O que dizer mais? Vamonos Guajira/vamos a bailar!

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Mike Shrieve, David Brown, Michael Carabello, Jose “Chepito” Areas, Gregg Rolie, Carlos Santana

9 comentários sobre “Santana: Uma Trinca de Ouros Para a Eternidade

  1. Curto muito a trinca que vem na sequência desses três discos (Borboletta, Caravanserai e Welcome), mas esses três aí representam toda a força e originalidade do grupo. Baita texto Eudes!!

  2. Excelente, Eudes, tanto que fiquei com vontade de colocá-los pra tocar em sequência e foi exatamente o que fiz. Só que o fiz em ordem cronológica contrária, pois, assim como você, também tenho certa preferência pelo terceiro disco e considero “Toussaint L’Overture” minha faixa favorita. Acho importante reforçar a citada “capacidade de ser complexo sem ser chato nem reiterativo, males que afligiam boa parte das bandas mais inovadoras do final dos anos de 1960”, pois isso é algo que me atrai no Santana e geralmente é algo que me faz ser bastante reticente em relação a outros grupos da mesma época, inclusive a turma geograficamente próxima. Um fator que não foi mencionado, mas também penso ser importante, é o trabalho que Michael Shrieve faz nesses discos. Fico hipoteticamente imaginando o que um cara desses poderia ter feito ao lado de um Hendrix caso este não tivesse morrido precocemente.

    Agora, vamos combinar… A respeito desse trecho: “fazendo, ao meu ver, um péssimo negócio, visto que, no que pese o sucesso momentâneo desta banda, os dois despontaram para se tornar meras notas de roda pé na história do rock”. Acho que, com todo o respeito, o senhor se deixou levar pelo desgosto com a sonoridade do Journey e largou a racionalidade de lado. Para a crítica, é claro que o Journey nunca vai ser visto com tão bons olhos, mas o sucesso do grupo e sua presença na cultura popular desmentem sua afirmação. Duvido muito que uma banda como o Santana, existente ao redor de uma figura principal (Carlos) levasse tanto tempo para implodir de vez. De qualquer forma, Gregg e Neal deixaram de ser coadjuvantes de luxo para se tornar senhores de seus próprios narizes (com êxito).

    1. Reconheço o abandono da razão neste trecho. O texto é de alguns anos atrás e, se fosse escrevê-lo hoje, certamente tiraria está parte.

  3. Anos atrás, quando entrei de cabeça no ambíguo universo do “classic rock”, as faixas de Santana passaram despercebidas por mim, muito por culpa por eu me atentar mais a outros nomes. Posteriormente, corrigi o erro e comecei a escutar Santana com a devida atenção: foi inevitável e não fiz a menor questão de resistir ao contágio e entusiasmo causados pela fervorosa massa sonora executada de forma tão singular pela banda. Pessoalmente, o álbum que fala mais forte aos meus ouvidos é o “Abraxas”.

    Parabéns pelo ótimo texto, Eudes!

  4. Em tempo: numa pegada muito diferente destes 3 discos, o sútil e atmosférico ⁦Caravanserai é também nota 10. Não transformei a trinca em quadra para manter o critério da identidade sonora.

  5. Olá Eudes, ótimo texto.
    Proponho uma questão: você não acha que esse “grito” tão emblemático da guitarra do Santana seria uma herança dos trompetes mariachis? rsrs

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