Review Exclusivo: Jello Biafra and the Guantanamo School of Medicine (Porto Alegre, 27 de março de 2012)

Review Exclusivo: Jello Biafra and the Guantanamo School of Medicine (Porto Alegre, 27 de março de 2012)

Por Micael Machado


O Beco é possivelmente a pior casa de espetáculos da capital gaúcha. O lugar é pequeno demais (cabem ali no máximo umas 300 pessoas), o palco fica quase na altura do público (prejudicando em muito a visão da audiência), para se chegar ao segundo piso (onde ocorrem os shows) temos de subir uma escada estreita para caramba, e os banheiros são sujos e fedorentos. Além de tudo isso, fica em uma região de Porto Alegre cujo acesso é muito difícil, devido à pouca quantidade de linhas de ônibus e lotações que passam por lá.
Só que essa espelunca é o local favorito da Abstratti Produtora para colocar seus espetáculos, e essa empresa se especializou em trazer ao Rio Grande do Sul verdadeiros ícones da música mundial para se apresentar ali. Já passaram pelo Beco nomes como Glenn Hughes, Paul Di’Anno e Blaze Bayley, só para citar alguns dos importantes músicos que tiveram de enfrentar aquele palco. No último dia 27 de março, foi a vez do Sr. Eric Reed Boucher ter esta questionável “honra”.
Conhecido e reconhecido mundialmente como Jello Biafra, o ex-líder e vocalista dos Dead Kennedys (a melhor e mais politizada banda de hardcore da história) visitava Porto Alegre pela primeira vez, ao lado de seu novo projeto, a Guantanamo School of Medicine, formada pelos guitarristas Ralph Spight e Kimo Ball, o baixista e produtor Andrew Weiss (ex-Rollins Band e Black Flag, o qual substituiu Billy Gould, do Faith No More, responsável por comandar as quatro cordas nos dois discos do grupo) e o baterista Paul Pelle. Embora eu já tivesse visto o DK sem sua presença antes – diga-se de passagem, em um excelente show com Brandon Cruz ao microfone, em 2001, no Bar Opinião –, assistir a poucos passos de distância um sujeito da importância de Jello era uma experiência que eu não poderia perder.
Comecei a ouvir o DK aos quatorze anos de idade, quando um amigo conseguiu emprestado com alguém o lendário vinil branco (com encarte e tudo) de Fresh Fruit for Rotting Vegetables (1980), disco de estreia da banda e que até hoje integra o meu Top 10 de todos os tempos. Com o final do grupo, em  1986, Jello assumiu sua faceta “dono de gravadora” (a Alternative Tentacles, um dos mais importantes selos independentes do mundo), mas nem por isso deixou de tocar com vários projetos diferentes, como o Lard, o D.O.A. ou o Nomeansno, além de gravar discos solo com discursos criticando tudo o que considera errado no mundo, de acordo com sua interpretação.
Neste show específico, o pessoal da Abstratti se superou na desorganização. Marcado para iniciar às 22 horas, quando cheguei ao local (dez minutos antes do horário marcado, é bom frisar), a fila do lado de fora do Beco era imensa, e parecia não andar. Após a intervenção de alguém da produção, separando quem havia comprado os ingressos pela internet – os quais deveriam ser retirados na bilheteria do bar – e aqueles que já tinham o ingresso na mão, consegui finalmente entrar naquele verdadeiro potreiro por volta de dez e quinze da noite, e, para minha surpresa, o show já estava em andamento, mesmo que a fila lá fora ainda estivesse imensa! Tudo bem que havia um horário estipulado, mas um pouco de organização na fila e de respeito com quem pagou (e caro!) para ver o espetáculo era o mínimo esperado! Durante o show, o técnico de luzes insistiu em uma irritante iluminação em tons vermelhos, tanto que o próprio Jello perguntou a certa altura se não havia outra cor disponível nos refletores. Para visível incômodo dos músicos, de vez em quando as luzes piscavam freneticamente, e, apesar dos insistentes pedidos do vocalista de “no more flashing lights, please!”, o cara continuava insistindo nesse tipo de iluminação. Enfim, desrespeito com os fãs até já vi (e muito), mas com a própria banda, que era enfim o motivo de todos estarem ali, foi a primeira vez!

Jello e banda
Felizmente ainda peguei o show durante a primeira música, “Terror in Tinytown” (que foi precedida por uma barulhenta intro por parte dos instrumentistas), mas perdi a entrada de Jello no palco, vestido com um avental de médico manchado de vermelho, como se todo sujo de sangue. Logo ele o retirou, ficando com uma camiseta com os motivos da bandeira norte-americana. Se lá fora o frio era intenso, dentro daquele muquifo hiperlotado o calor era infernal, forçando o vocalista a tirar também a camisa e ficar com uma camiseta vermelha de mangas curtas. Deve-se elogiar Jello pela atitude de vir até o Sul do Brasil tocar em um pulgueiro como esse. O cara poderia estar tranquilo em casa curtindo uma aposentadoria compulsória por anos e anos de serviços prestados ao punk rock, como bem disse André Barcinski em seu excelente livro “Barulho”. Ou, então, rodando o mundo em busca de talentos para sua gravadora. Contudo, ainda se sujeita a viajar até um lugar longínquo como Porto Alegre para tocar em um local como o Beco, para umas poucas centenas de fãs enlouquecidos totalmente dispostos a lhe prestar reverência.
Além disso, a postura de Biafra no palco chega próximo da insanidade! Apesar dos quase sessenta anos nas costas, e de estar bem gordinho e meio careca, o cara não para um segundo sequer, e em algumas músicas parece estar tendo um ataque epiléptico de tanto que se mexe! Além disso, ainda mantém intacta sua característica voz de personagem de desenho animado, e constantemente se joga no público, sendo levado para lá e para cá pelos presentes, para desespero de um segurança mau encarado, que tinha grande esforço para conseguir trazê-lo de volta ao palco. Além disso, Jello tinha de se desviar daqueles que constantemente subiam ao quadrado reservado para a banda, seja para se jogar de volta à plateia, seja para lhe cumprimentar, abraçar e até tirar fotos, tudo isso com a pancadaria rolando! O tal segurança logo entrava em ação para jogar o pessoal de volta, e às vezes o próprio Jello era obrigado a empurrar alguns dos mais entusiasmados para longe. Mas, é bom ressaltar, em momento algum, o pessoal foi impedido de chegar no palco ou de se aproximar do vocalista!
O show foi focado nas músicas dos dois discos da Guantanamo School of Medicine, as quais não pareciam muito conhecidas do pessoal, que, em sua maioria, ficava mais paradão, só curtindo o show. As canções de seu novo grupo não são aqueles “épicos” de um minuto e meio dos tempos de Dead Kennedys, mas retomam a sonoridade da banda, sendo um hardcore direto e empolgante, o qual, por ser interpretado com duas guitarras, nos dá uma pequena ideia do que eram os DK nos tempos em que contavam com o guitarrista 6025, que deixou o grupo ainda antes do lançamento do primeiro disco. Em alguns dos temas do show, Jello “interpretava” as letras, como em “Three Strikes”, na qual ele finge estar em uma prisão, ou “Pets Eat Their Master”, onde simula estar fazendo um saboroso churrasco humano, ou ainda fingindo estar completamente bêbado durante o hino “Too Drunk To Fuck”.

Jello e seus discursos contra tudo e contra todos
Seus discursos anti-tudo são uma constante, seja reclamando das atitudes do governo Obama (que, segundo ele, prometeu acabar com a prisão de Guantanamo, mas não só a manteve funcionando como torturou lá mais prisioneiros do que outras administrações, suspeitos de terrorismo presos “sem juiz ou julgamento”, como citou, além de não respeitar os direitos civis dos americanos e sua liberdade), seja alertando para o perigo que o Brasil corre ao querer se transformar em um grande produtor de petróleo, pois “as grandes corporações não gostam de concorrência, e já acabaram com governos que se opuseram a elas um depois do outro”. Sobrou também para as ditaduras que governaram a América Latina nos anos 70, as quais, segundo Jello, estão próximas de se repetir no Estados Unidos. As visões políticas do cantor por vezes são muito desanimadoras, mas é recompensador saber que algum norte-americano tem seus olhos voltados para o que acontece no mundo, e não apenas no seu próprio umbigo. Pena serem tão poucos!

Se as canções de seu recente projeto não conseguiam incendiar o público, as músicas dos Kennedys faziam parecer que o Beco iria desabar. Foram apenas cinco: a citada “Too Drunk To Fuck“; “California Über Alles“, com letra atualizada em versos como “I am Governor Schwarzenegger”, “Nazi Punks Fuck Off“, que segundo Jello tem de ser constantemente tocada para que impeçamos que o fascismo e o nazismo ressurjam; “Holiday in Cambodia“, que encerrou a primeira parte do show; e “Bleed For Me“, tocada no bis junto à longa “I Won’t Give-up”; apenas isso foi o suficiente para deixar todos de alma lavada e completamente esgotados e suados. Após quase duas horas de apresentação, Jello e seu grupo abandonaram o palco em definitivo, deixando todos com a certeza de terem assistido um grande show e um grande intérprete, o qual tomara um dia volte à nossa cidade, mas para tocar em um lugar à altura de sua importância e qualidade. Que não seja tarde!

Visão geral do “palco”
Setlist*:
1. Terror in Tinytown
2. John Dillinger
3. Victory Stinks
4. Barack Star O’ Bummer
5. California Über Alles
6. Invasion Of The Mind Snatchers
7. Electronic Plantation
8. Too Drunk To Fuck
9. New Feudalism
10. Nazi Punks Fuck Off
11. Three Strikes
12. Pets Eat Their Master
13. The Cells That Will Not Die 
14. Holiday in Cambodia
Encore:
15. Bleed For Me
16. I Won’t Give-up
* A ordem correta não pôde ser averiguada, mas as músicas interpretadas são essas. Se você souber a ordem correta, sinta-se livre para nos informar.

2 comentários sobre “Review Exclusivo: Jello Biafra and the Guantanamo School of Medicine (Porto Alegre, 27 de março de 2012)

  1. O Biafra é um grande colecionador de discos de vinil. Ele tem coisas de rock brasileiro (já vi fotos) que eu nunca tinha ouvido nem falar. Impressionante mesmo. E pelas entrevistas que li onde ele fala de sua coleção, é um cara muito curioso. Grande figura.

  2. "O Beco é possivelmente a pior casa de espetáculos da capital gaúcha. O lugar é pequeno demais (cabem ali no máximo umas 300 pessoas), o palco fica quase na altura do público (prejudicando em muito a visão da audiência), para se chegar ao segundo piso (onde ocorrem os shows) temos de subir uma escada estreita para caramba, e os banheiros são sujos e fedorentos. Além de tudo isso, fica em uma região de Porto Alegre cujo acesso é muito difícil, devido à pouca quantidade de linhas de ônibus e lotações que passam por lá."

    HAHAHAHAAHAHAHAHAH… Melhor abertura de resenha de show até hoje publicada no blog! Provavelmente acabou com minhas chances de tentar credenciamento para a apresentação de Richie Kotzen em junho, mas foda-se, esse é o espírito! De resenha de show achando que tudo é perfeito o mundo já está cheio, hehe… Só discordo quanto à localização do Beco, pois ele fica em uma área bem central, que pode até não contar com muitas linhas de ônibus que deixem na porta, mas várias deixam a uma distância pequena.

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