A trilogia progressiva de Miguel Rios

A trilogia progressiva de Miguel Rios
Por Marco Gaspari

No mundo do rock ’n’ roll parece não haver lugar para ateus ou republicanos. Todos os principais nomes do rock ganharam status de deuses ou reis, cultuados e seguidos por uma imensa legião de devotos e súditos. Muitos deles foram até condecorados por reis e rainhas de real sangue azul e sua imensa lista de serviços prestados aos respectivos reinos, sua carreira dedicada à busca do Santo Graal do sucesso, os fez dignos de integrarem as cortes das paradoxais Camelots do nosso tempo.

Em 1993, aos 49 anos, Miguel Rios ganhou seu título de cavaleiro ao receber das mãos de um Rei, João Carlos I, a “Medalla de Oro al Mérito de las Bellas Artes”. E foi saudado com estas reais palavras: “A música tem muitos registros e alguns deles não têm, às vezes, o reconhecimento que deveriam ter como fato musical e como realidade social. Com Miguel Rios, o rock espanhol alcançou sua autêntica categoria como arte musical e sua mais plena expansão para uma nova realidade social, sem a qual é impossível entender nossa história mais recente.”

Nada mau para um plebeu nascido em 7 de junho de 1944 na cidade de Granada e que aos 17 anos já estreava como músico com um título de rei, no caso El Rey Del Twist, num EP lançado nos primeiros meses de 1962. Quase 50 anos depois, Miguel Rios continua mantendo seu título real, agora como Rey Del Rock De España, amparado por uma respeitável discografia de mais de 40 LPs (entre originais e coletâneas) e duas dezenas de EPs e singles.

Mas o que nos interessa aqui é uma pequena fatia dessa produção musical, justamente o filé mignon para os amantes do rock progressivo: seus três discos lançados entre 1974 e 1977, respectivamente Memorias de un Ser Humano, La Huerta Atómica e Al-Andalus

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Rios já havia estourado a boca do balão na virada dos 60 para os 70 ao lançar Himno a la Alegria (A Song of Joy, uma adaptação do quarto movimento da IX Sinfonia de Beethoven, dirigida por Waldo de los Rios). O disquinho vendeu sete milhões de exemplares no mundo todo e o projetou internacionalmente, liderando as paradas dos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália e Reino Unido, além de fazer seu nome no Japão, Suécia, Áustria, Holanda, Canadá e mais uma pá de países.

Nessa época ele era artista do selo Hispavox e sua parceria com Waldo de Los Rios entrou nos anos 70 a pleno vapor. Waldo tinha idéias muito rígidas de como deveria ser o som do cantor e isso começou a gerar conflitos na relação entre Miguel e a gravadora, pois enquanto esta cobrava hits e mais hits, o cantor andava cada vez mais influenciado pela nova sonoridade do rock que ouvia em suas férias ou turnês em países como os Estados Unidos e a Inglaterra.

Lá pelo final de 1973 a queda de braço começou a pender para Miguel Rios, que finalmente teve carta branca para gravar o LP que tinha na cabeça, praticamente um rito de passagem que o tiraria da cômoda e frustrante posição de um intérprete seguindo a diretriz de seus produtores para um artista autoral mais ousado e menos comprometido com as fórmulas pop de sucesso.

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Em 1974 saiu pela Hispavox o álbum Memorias de un Ser Humano, com um pé bem calçado nos arranjos mais complexos do progressivo, mas conservando ainda sua paixão pelo blues e o rock americanos. A primeira sensação que temos quando a agulha do toca disco pousa nos sulcos da primeira música é que compramos por engano um álbum de algum grupo inglês estilo Camel (roubei essa comparação de um texto que li sobre esse disco, mas diz respeito mais a uma determinada música do grupo e não sua obra), com boas interferências orquestrais sobre base acústica e bateria repicada.

A voz de Miguel Rios é uma companhia agradável, sólida e aveludada ao mesmo tempo. Com o passar das canções, nos surpreendemos com suas letras contundentes e arranjos sofisticados, alternando canções mais roqueiras com temas acústicos e orquestrais, e a intervenção de músicos inspiradíssimos. Memorias de un Ser Humano, a música que dá nome e encerra o álbum é a mais complexa e ambiciosa de todas, com arranjos grandiosos e um comovente trabalho de piano abrindo e fechando a música.
 
Memorias de un Ser Humano era um disco completamente diferente de tudo o que Miguel Rios gravara até então e isso com certeza explica seu retumbante fracasso de vendas. Suas histórias de gente comum, seus riffs de guitarra e roupagem sinfônica, sua veia roqueira com algum apelo soul music bateram de frente com a expectativa pop de seus fãs e com os planos da Hispavox. Miguel ainda provocaria a gravadora com o lançamento de um single em 1975 antes de ganhar sua carta de alforria. Órfão de gravadora, muito mais maduro, independente e ambicioso musicalmente, estava pronto para ousar ainda mais.

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La Huerta Atómica – Um Relato de Anticipacion” foi seu primeiro LP lançado pela Polydor em 1976. Suas influências haviam mudado de foco: deixaram de ser americanizadas e se abasteceram exclusivamente no progressivo inglês. Como álbum conceitual, com canções comprometidas com uma mesma história, traz óbvias influências de Tommy, do The Who. Mas sua temática era única até então, pois La Huerta Atómica é considerado (talvez) o primeiro LP do rock progressivo com preocupações ecológicas.

Musicalmente, os arranjos orquestrais do disco anterior deram lugar a uma profusão de teclados e efeitos pontuais (explosões atômicas reais, aviões supersônicos, ruídos bélicos) que sustentam a dramática história de um agricultor que vive ao lado de uma base militar e sobrevive a uma explosão nuclear. Vivendo sozinho e cercado dos fantasmas da civilização, tendo que encarar um mundo devastado e sem perspectivas, vê que a única coisa que sobrou é sua própria humanidade e sua horta atômica. De repente acorda e percebe que tudo isso não passou de um sonho. Decide abandonar o lugar e mudar-se dali, mas no caminho ouve o som de um alarme nuclear e o disco finaliza com uma fatídica explosão. 

A mensagem do disco é claramente pacifista e antinuclear e as letras das canções amarram a história de forma convincente. A voz de Miguel é muitas vezes comovente em sua dramaticidade e os arranjos sabem usar a grandiloquência sinfônica em benefício do resultado final, sem dar espaços a virtuosismos desnecessários. Enfim, um grande disco de rock progressivo, hoje muito cultuado entre os progheads, mas que na época redundou em mais um fracasso comercial, maior ainda que o do disco Memorias de un Ser Humano, pois é evidente que o público espanhol não estava nem um pouco preparado para consumir os legumes dessa horta.

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Apesar dessa sequência de frustrações comerciais, Miguel Rios não desistiu de seus experimentalismos. Com a morte do ditador Franco em 1975 e o lançamento do primeiro disco de prog gitano do grupo Triana nesse mesmo ano, Miguel se voltou para suas raízes andaluzes e retirou de lá a inspiração e o conceito por trás das músicas de seu próximo disco, Al-Andalus, lançado em 1977. Esse trabalho ambiciona uma interessante fusão de jazz rock com sonoridades árabes e uma pitada de psicodelia. As letras, poéticas muitas vezes, também se espelham na conturbada transição político-social que a Espanha atravessava naquele momento. E a banda que sustenta a voz de Miguel Rios em Al-Andalus acabou se constituindo na base do grupo Guadalquivir (nome de uma música desse disco) que mais tarde gravaria pérolas do progressivo gitano e também acompanharia o cantor em várias apresentações ao vivo. 

Para finalizar, gostaria de reforçar mais uma vez a coragem de Rios em abandonar uma bem sucedida carreira pop para abraçar as incertezas de uma arte mais ambiciosa e ousada. A partir dessa trilogia progressiva, Rios entrou nos anos 80 como um artista completo e a retomada de sua veia roqueira o transformou num dos ícones do rock de arena na Espanha, lotando estádios e produzindo álbuns de sucesso até hoje. Miguel Rios já foi rei, mas nunca foi um deus do rock. Talvez se inscreva melhor numa categoria não menos ambicionada: a de herói. 

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Algumas Músicas:

A Song of Joy (Hymno a la Alegria

Viviras Tanto (Memorias de un Ser Humano
Memorias de um Ser Humano (Memorias de un Ser Humano)
Bienvenida Katherine (La Huerta Atómica)

Instrucciones a la Poblacion Civil (La Huerta Atómica)
La Blanca Oscuridad (Al-Andalus)

11 comentários sobre “A trilogia progressiva de Miguel Rios

  1. Excelente dica, Marco! eu conheço o Miguel até então só de nome, mas muito me agrada o progressivo espanhol, do qual até o momento tenho como favorito o guitarrista Eduardo Bort. Aliás, aproveito pra agradecer aquele texto já de vários anos atrás na PZ sobre o rock espanhol!
    Abraço!
    Ronaldo

  2. Grande Ronaldo!!
    Naquele texto da pZ eu não incluí o Miguel Rios porque conhecia mais seu trabalho anterior e posterior à essa trilogia. E mesmo estes discos citados são bem diferentes entre si. Espero que goste.

  3. Excelente dica mesmo. Ansiosa para ouvir, especialmente, os dois primeiros álbuns citados. Comecei lendo o post com vontade de conhecer algo novo, e no final tal guitarrista se desemboca no Guadalquivir, que tem um álbum muito bom e que eu adoro. Bem legal ler este post.

  4. De prog espanhol só ouvi os dois discos do Azahar, legais, mas nada do otro mundo. Agora, li esse texto e fiquei MUITO interessado em conseguir os 4 discos citados! Só aguardando aqui a wikipedia e o rate your music saírem de greve pra poder correr atrás!

  5. Grato ao Adriano e ao Will. Deixa só eu dar umas dicas: não são 4 discos (o primeiro que eu cito é um compacto simples com uma música bem pop e descartável, importante na carreira do Miguel porque deve ter enchido o trololó dele de grana, mas que não acrescenta nada à discografia que nos interessa). Quanto aos outros 3 discos, se o gosto de vocês tender mais para o prog sinfônico, recomendo o Huerta e depois o Memórias. Se gostam de um som mais próximo das raízes gitanas espanholas, então Al-Andalus é mais recomendado. Fiz essa ressalva já que vocês ainda vão procurar os discos para baixar e de repente isso pode dar um certo trabalhinho, hehe…

  6. Marco, acabei de escutar todas as canções que disponibilizaste e estou surpreso com o que ouvi, provavelmente mais com as extraídas de "Memorias de un Ser Humano". Não nego que nutro uma certa rejeição ao rock cantado em espanhol, idioma que a mim soa um tanto "quadrado", assim como o italiano, mas gostei muito do trabalho de Miguel. Certamente foi uma belíssima indicação.

  7. Não o conhecia ainda e fiquei ainda mais curiosa pra ouvir o disco "La Huerta Atómica – Um Relato de Anticipacion” já que tem influências do Tommy do WHO. 😉

  8. Que bom que você se deu ao trabalho de ouvir, Diogo. Quanto ao idioma, eu venci com um pouco de boa vontade esse preconceito (na falta de palavra melhor). O idioma é um instrumento importante numa banda, pois ele talvez seja o que melhor diferencie e dê legitimidade ao seu trabalho. E, no caso do Miguel, é um puta cantor. Ouvir a língua de um povo, por mais estranha que ela seja, na voz de quem sabe cantá-la é sempre uma experiência agradável. Abração.

  9. Oi Anônimo, hehe…
    Tem influências do Tommy por ser uma, digamos assim, ópera-rock. Mas a temática e até mesmo a sonoridade do disco não lembra em nada o Who.
    Se você gosta de prog sinfônico, é um disco bem legal.

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