Parece que foi ontem (Parte 2)

Parece que foi ontem (Parte 2)
Por Marco Gaspari


Faz de conta que você está lendo isto em agosto de 1973
Acaba de sair em Portugal, pela editora Paisagem, dentro da coleção Vozes Livres, o livro O Mundo da Música Pop (Das buch der neuen pop musik), do jornalista alemão Rolf-Ulrich Kaiser, com tradução e prefácio de Joaquim Fernandes.
Kaiser talvez seja o nome mais influente da chamada Kosmiche Musik alemã – que os ingleses hoje em dia preferem tirar um sarro e chamar de Krautrock (rock chucrute). Ele praticamente testemunhou o nascimento desse movimento, tendo sido seu principal porta-voz e mentor desde então.
Sob os auspícios de Kaiser, alguns dos mais importantes selos alemães da atualidade foram lançados, como Pilz e Ohr . Foi ele também quem promoveu, no ano passado, o encontro do guru do ácido Timothy Leary (atualmente foragido dos EUA) com o grupo Ash Ra Tempel nos Alpes suíços. Seven Up, o nome do LP gravado dessas sessões, inaugurou não apenas uma etiqueta subsidiária da Ohr chamada Cosmic Couriers, como também toda uma ousada filosofia de trabalho voltada para a criação de climas sonoros que facilitem atingir os altos estágios de consciência proporcionados pelas viagens de mescalina e LSD. Mais que isso, Kaiser tem batalhado na linha de frente do rock alemão contra a sólida influência dos ingleses e dos americanos na música pop.
Bom, espero que eu tenha deixado clara até aqui a enorme importância desse jornalista, um dos principais pensadores do rock na atualidade. E ter seu livro sobre o fenômeno pop em língua portuguesa é mais do que motivo para se comemorar.
No entanto, os editores portugueses cometeram um deslize imperdoável, praticamente uma afronta: eles deixaram de fora dessa tradução justamente o capítulo onde Kaiser registra, em forma de reportagem, o nascimento do rock alemão, com depoimentos de grupos pioneiros como o Xhol Karavan, o Guru Guru Groove, o Floh de Cologne e uma oportuna discografia das principais bandas do movimento.
Por que fizeram isso? Não faço a mínima idéia. Talvez um país com tão pouca representatividade no rock europeu e mundial ache que seus vizinhos também não são tão importantes assim. Talvez os editores quisessem economizar no número de páginas para baratear o preço do livro. Talvez esses mesmos editores nunca tenham ouvido  discos de rock alemão e considerem que nenhum ouvido português vá se interessar por eles. Sei lá.
O que eu sei é que graças à outras traduções, como a espanhola, lançada pela editora Barral em 1972, vou poder dizer um pouco do que trata esse capítulo negligenciado pelos portugueses.
Kaiser diz que podemos creditar o nascimento do atual rock alemão às “Jornadas Internacionais de Essen” (a oitava maior cidade da Alemanha), uma espécie de festival cultural ocorrido em 1968, e que na sala Gruga apresentou ao público shows de bandas famosas nos EUA e na Europa e das bandas alemãs que estavam surgindo na época. Três dias antes do festival, e sob o título de “Alemanha desperta – música pop das regiões alemãs”, três grupos também fizeram uma de suas primeiras apresentações diante de uma plateia: Amon Duul, Tangerine Dream e Guru Guru Groove.
Depois de falar um pouco sobre o descaso dos promotores com os desconhecidos grupos alemães e as dificuldades encontradas por eles para apresentarem sua música, o autor começa a responder à seguinte pergunta: “O que há de alemão na música pop atual?” (lembre-se que suas considerações foram escritas entre 1968 e 1970).
Primeira resposta: o aspecto político. Aqui ele foca na banda Floh de Cologne, um grupo musical e de variedades inspirado principalmente em duas atrações americanas desse mesmo festival de Essen, The Fugs e The Mothers of Invention. O grupo alemão, no entanto, deixa claro que dos Mothers eles admiram o espetáculo, mas que é dos Fugs que eles tiraram o componente político de sua música.
Floh de Cologne

Segunda resposta: a música. Kaiser passa a exemplificar o caso do Limbus 4, um conjunto formado por três músicos que improvisa sobre os seguintes intrumentos: piano, contrabaixo, cello, violino, viola, flauta transversal, flauta oriental, flauta plástica, valiha faray, tsikadraha, tablas e guitarra elétrica. O autor presenciou uma  apresentação da banda em Neumunster, uma cidade no norte da Alemanha, diante de um bom público. Bastaram, porém, algumas músicas para ele perceber que bem poucos entendiam a proposta dos músicos e, ao final da apresentação, apenas 50 ou 60 pessoas permaneciam na sala.

Terceira resposta: o novo som. O exemplo escolhido por Kaiser neste tópico é o músico Bernhard Höke, um artista plástico de formação e inventor de instrumentos que tocou por algum tempo no começo do grupo Tangerine Dream. Para Höke, a música do futuro é a nova música das garrafas, das tablas e das flautas, sem nenhuma notação prévia e feita na base do improviso. A música que ele toca nunca foi executada da mesma forma antes e jamais será repetida no futuro. Diz que atua quase nu para poder tirar sons de seu corpo, o principal instrumento de sua música.
Limbus 4
Kaiser conclui o capítulo negligenciado pelos editores portugueses dizendo que tudo o que escreveu é apenas o começo, mas que enquanto a nova música pop alemã não for comercializada pelas gravadoras, enquanto os músicos preferirem comunicar-se ao invés de obter benefícios, esta música pode ser considerada um meio para despertar a criatividade e nada mais do que isso. Para conquistar a devida atenção, reconhecimento e fazer sucesso, no entanto, é preciso que os alemães aprendam novamente a ouvir.

7 comentários sobre “Parece que foi ontem (Parte 2)

  1. E no fim o krautrock virou simbolo de drogas na alemanha, e nao o paraiso sonoro que ele é

    muito legal o texto gaspa, mas a pergunta que nao quer calar é:

    "o que que é esse bendito tsikadraha???"

  2. Mairon, a tsikadraha é um instrumento proveniente (posso estar enganado)da região de Madagascar, um parente do nosso reco-reco.
    Mas o mais curioso nesse texto do Kaiser era a importância que ele dava na época para esse artista de nome Bernhard Hoke, que ele reputava como o futuro da música. Bom, quando você fuça a internet, encontra poucas informação sobre esse camarada, e geralmente ele é associado às artes plásticas. Quanto à sua associação com o Tangerine Dream, ela também é bastante suspeita. Parece que, em 1968, quando a banda ainda se chamava “The Tangerines, psichedelic-light-dreams” (com uma formação que ainda não era aquela que gravou o primeiro disco do TD) e se apresentava em clubes de Berlim como o “The Zodiak Free Arts Lab”, “The Forun Theatre” e na cafeteria da “the Tecnical University”, esse Bernhard Hoke algumas vezes dividia as apresentações. Tudo leva a crer ( e isso é apenas uma opinião minha, sem base nenhuma) que ele fosse algum porra louca metido a ancestral dos artistas performáticos surgidos nos anos 80.
    Apesar disso, ganhou destaque nesse que é um dos mais importantes livros de um dos principais jornalistas musicais e agitador mor do rock alemão na época.

  3. Ta marco, mas eu acho que essa associação acho que é muito pouco perto do que foi com o TD (olha só, será que DT e TD tem a ver, entre tantas outras coisas que os bichonas copiaram do progressivo???) Sinceramente, essa fase entre 67 e 72 do rock alemão é algo que nem quem viveu lembra, q rolava "muitas cositas" entre eles, e a paranoia é demais. Afinal, um japa tocar entre alemães, quem iria imaginar isso???

  4. "…essa fase entre 67 e 72 do rock alemão é algo que nem quem viveu lembra…"
    Isso é mais mito do que verdade, Mairon. No outro artigo sobre o Rolf-Ulrich Kaiser que escrevi aqui para a Consultoria, eu bato nessa tecla. Existem muitos livros publicados sobre essa época do rock alemão, escritos por jornalistas musicais que vivenciaram toda a cena e a registraram em revistas alemães do período. São jornalistas importantes e reputados lá na Alemanha. O problema é que esses livros nunca foram traduzidos e publicados fora da Alemanha. Esse livro do Kaiser é uma exceção e muito provavelmente porque 80% dele é dedicado a artistas de rock americanos e ingleses que ele entrevistou nos anos 60. Mesmo aquilo que encontramos disponível sobre krautrock são artigos escritos por jornalistas ingleses para revistas inglesas e eles começaram a mapear esse movimento apenas a partir dos anos 90, lógico que com uma visão altamente pasteurizada. O que nos resta de conveniente sobre o período são os artigos escritos nos anos 70 para o zine underground americano Eurock, as enciclopédias sobre krautrock lançadas pela editora Borderline e os documentários sobre a cena disponíveis no Youtube.

  5. Sim Marco, deus o livre de eu tentar discutir isso contigo, mas penso que o pessoal alemão da época estava tão "na casinha" quanto os membros dos grupos que alavancaram o "krautrock". é pegar o livro de Christine F e ter uma noção de como a Alemanha estava conturbada no início dos anos 70, piorando até a união dos dois países.

    Eu não sei diferenciar, por exemplo, um grupo da alemanha ocidental e da Inglaterra da primeira ouvida. Agora pega um grupo da alemanha oriental e ouve de primeira. É outra coisa, outra paranoia, outra viagem bem maior que o que os alemães ocidentais faziam. Consequencia da isolação mundial que o país viveu? Talvez, mas eu atribuo isso as drogas. E se fores pegar a maioria dos grupos que apareceram para o mundo nessa época, eles são ocidentais, mas os bons mesmos influenciavam-se ou no Fugs e no Mothers, como bem citaste, ou nos sombrios grupos da alemanha oriental, iugoslávia, polônia, etc etc.

    Exemplo bem simples: Niemen. Quer algo mais satânico, krautrock, progressivo e hardiano do que Niemen? Da onde ele saiu????????

  6. O que eu acho legal sobre esses artistas da então cortina de ferro é que eles, pelos menos os mais importantes, eram verdadeiros heróis da resistência, usando a tão decantada “atitude rock’n’roll” não como um marketing de si mesmos, mas como consciência política: sua música e sua atitude, sim, eram totalmente anti establishment, e eles sofreram muito por isso, até porque o establishment nem era o governo eleito pelo povo do próprio país, mas sim o invasor comunista. Pode pesquisar e verá que, com a queda do socialismo, eles viraram heróis nacionais e até estátuas em praça pública (o Niemen é uma). Outra coisa interessante é que, apesar da influência confessa dos grupos ingleses (Beatles, Rolling Stones etc…), eles se identificavam muito mais com os ideais da juventude americana, mais politizada e combativa. Daí a verdadeira adoração que tinham pelo Zappa, por exemplo. Na Alemanha ocidental esses artistas americanos também tinham mais afinidade no gosto da juventude politizada local. E vamos lembrar que na Inglaterra, por exemplo, não houve os conflitos de 1968 (pelo menos não com a mesma intensidade). Eles foram fortes na Alemanha, na França e na Itália e foi via esses países que seus ideais chegaram à juventude da Checoslováquia, Polônia e outros países comunistas. Já falei sobre isso nos comentários do outro artigo sobre o Kaiser e não vou me repetir aqui. Quanto à sonoridade das bandas da Alemanha Oriental, realmente, ela é bem diferente da ocidental, talvez porque (e eu digo talvez porque não tenho certeza) eles recebessem mais influências via os países comunistas do que da própria Berlim do outro lado do muro.
    Outra coisa, Mairon: não tem essa de não querer discutir essas coisas comigo só porque eu posso dar a impressão de entender mais disso do que você. As informações que eu tenho acesso são as mesmas que você tem e as minhas reflexões são apenas as minhas reflexões. Elas não são melhores que as de ninguém. Muito pelo contrário, eu só tenho a ganhar ouvindo o seu ponto de vista e o de qualquer outra pessoa que se anime a comentar por aqui.

  7. Caralysson! Tem esse livro em espanhol na Biblioteca da minha ex-Universidade! haha Eu até fiz empréstimo e fotocopiei uns capítulos, mas não lembro de nada sobre bandas alemãs! Aliás, não posso deixar de comentar: tinha de ser português pra fazer a besteira de excluir esse capítulo! Não tem uma editora underground por aqui que queira publicar a tradução desse livro? O Gaspari traduz, hehe.

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