John Hartford, o menino do rio

John Hartford, o menino do rio
Por Marco Gaspari

Assim como tivemos um progressive jazz e um progressive rock, a música country americana do final dos anos 60 e começo dos 70 também viveu seus anos progressivos graças a artistas e bandas que eletrificaram seus instrumentos e misturaram ao country de raiz elementos retirados de outros estilos, principalmente o rock and roll. O bluegrass, por exemplo, um estilo regional do Kentucky surgido na década de 40 e caracterizado pelo dedilhar melódico do banjo, canto rigorosamente harmônico e uso do bandolim como instrumento líder (o rockabilly foi muito influenciado pelo bluegrass), ao ganhar guitarras elétricas, bateria e piano, se transformou no progressive bluegrass, ou newgrass, e apontou novos e revolucionários caminhos para o country a partir de 1970. Um dos artistas fundamentais para essa revolução foi John Hartford.
E já que estamos falando de um artista country, vamos esquecer a Swinging London e a West Coast americana e nos concentrar em Nashville, no Tennessee. Vamos deixar de lado o UFO Club e os Fillmore e ingressar no mundo do Grand Ole Opry, onde a realeza da mais popular música ianque fazia sua corte. John Harford nasceu em Nova Iorque em 1937, mas cresceu em St. Louis, onde descobriu suas duas grandes paixões: a técnica do banjo de três dedos que Earl Scruggs desenvolveu para o bluegrass e o Rio Mississippi.
Em 1965, já formado em artes comerciais, mas disposto a abandonar tudo pela música, Harford muda-se para Nashville onde, em pouco tempo, tocando na periferia do showbiss e eventualmente gravando algum single para pequenos selos, ganhou de presente do mestre Chet Atkins um “t” para acrescentar ao seu nome (virou Hartford) e um contrato para ingressar no cast da RCA.
Seu LP de estréia é lançado em 1967 e não dá em nada. No ano seguinte ele lança Earthwords & Music, seu segundo álbum, e este só não foi para o mesmo limbo porque Glen Campbell ouviu no rádio a música “Gentle On My Mind” (que Hartford compôs depois de assistir ao filme Dr. Jivago) e resolveu gravá-la. Foi como ganhar na loteria. A música na versão de Campbell alcançou um sucesso tão grande que no ano seguinte ganhou 4 Grammys – dois para Hartford, como compositor e também como música original, e dois para Campbell. Ela se tornou a música com mais versões de outros artistas da época e está entre umas das composições de maior sucesso de todos os tempos, ganhando interpretações que vão de Elvis a Aretha Franklin, passando até mesmo pela voz de Frank Sinatra. Mesmo depois de mais dois álbuns pela RCA, foi “Gentle On My Mind” que tornou Hartford um homem rico e independente, faturando mais de 100 mil dólares anuais por anos a fio.
Em 1970, Hartford muda de gravadora. Sem preocupações financeiras e com carta branca da Warner Brothers para ousar o quanto quisesse, ele forma a banda Aereo-Plain e lança dois discos fundamentais para a evolução do bluegrass tradicional para o newgrass. No Aero-Plain estão alguns dos músicos mais bem dotados do gênero: Norman Blake no violão, Tut Taylor no dobro e o legendário Vassar Clements no violino. John também não deixa de lado seu amor pelo Mississippi e o declara da forma mais romântica possível, conseguindo sua tão sonhada autorização para pilotar os enormes steamboats que cruzam o rio desde os tempos do velho oeste. Ele passaria muitos verões de sua vida pilotando o Julia Belle Swain nos finais de tarde e animando os passageiros e a tripulação à noite, em shows memoráveis à bordo do navio.
Aereo-Plain, o primeiro disco lançado pela Warner, já foi honrado com o apelido de “Revolver do bluegrass” (o “Sgt. Peppers” do gênero seria Will The Circle Be Unbroken, cometido um ano depois pela fantástica Nitty Gritty Dirt Band) e viu a luz do dia no glorioso ano de 1971. Gravado ao vivo em estúdio sem nenhum tipo de arranjo pré-planejado, suas faixas foram quase que todas paridas num único take, conforme os planos do produtor David Bromberg, um músico mais ligado à tradição folk. Neste LP, Hartford detona todos os princípios que Nashville levou décadas para sedimentar, usando de muito sarcasmo para falar de drogas e sexo e uma boa dose de mordacidade ao tratar da subcultura que cerca o country tradicional, sua ascensão e queda. Mas ao mesmo tempo em que Aereo-Plain põe em cheque alguns dos mais sagrados mandamentos do catecismo country, a música que vibra nos sulcos do LP é capaz de fazer qualquer caipira vender sua mula só para ter esse disco girando no prato da vitrola. Como era de se esperar, a obra foi muito apreciada pelos hippies e se consagrou entre os habitués da contracultura americana.
Para o próximo lançamento, Morning Bugle, de 1972, Hartford mantém Norman Blake na banda e acrescenta Dave Holland no baixo, curiosamente um músico de jazz, da turminha de Keith Jarrett. O produtor agora é John Simon (que trabalhou com The Band), mas ele repete a fórmula de gravação ao vivo em estúdio, sem nenhum overdub. O disco é praticamente uma continuação do anterior, mas aqui o humor negro de John se manifesta numa gama maior de temas. Talvez o fato do disco ter sido gravado em um estúdio próximo a Woodstock explique a quantidade de referências às drogas contidas nas letras e uma certa nostalgia psicodélica que paira na atmosfera das canções. Mais um disco maravilhoso, onde Hartford exorciza suas influências tradicionais e se coloca na condição de influência para muita coisa que foi feita no estilo daí para a frente.
Lá pela metade dos anos 70, John começa a se apresentar sozinho diante de seu público. Seus instrumentos são o banjo, o violino e o violão que ele vai alternando conforme a música. Neste momento ele é praticamente um cantor folk e seu único acompanhamento é o próprio corpo, tirando sons orgânicos que vão desde vocalizações malucas até uma dancinha safada executada sobre uma placa de madeira amplificada, uma espécie de sapateado caipira que funciona muito bem como percussão para suas composições. Em 76 ele leva essa sua nova técnica para o estúdio e lança pelo selo Flying Fish o álbum Mark Twang, que ele diz ser um disco em memória de um amigo, mas que soa mais como uma profunda homenagem ao Rio Mississippi. Hartford dedica ao disco todo o seu arsenal de diabruras sonoras, deliciando o ouvinte com um misto de sensibilidade romântica, humor e melodias mágicas. Como recompensa ele conquista seu segundo Grammy, na categoria de melhor disco étnico ou tradicional.
John só iria ganhar um novo Grammy em 2001 (mesmo ano de sua morte) pela sua performance na trilha sonora do filme “O Brother, Where Art Thou?”, que aqui no Brasil ganhou o título de “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”. Melhor disco do ano, essa trilha vendeu mais de três milhões de cópias só em seu lançamento e muito superastro country contemporâneo pôde descobrir nela tudo o que perdeu ao abandonar suas raízes. Hartford em vida gravou mais de 30 discos e seu nome batizou um festival anual de bluegrass e também uma curva de seu amado rio. E para todos aqueles que leram este texto até aqui e que ainda procuram justificativas para um músico sertanejo ocupar espaço numa comunidade dedicada ao rock, a única coisa que posso dizer é que é de John Hartford o violino e o banjo nas faixas do disco Sweetheart of the Rodeo, do grupo The Byrds. Serve?

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