Clássicos E Achados: Ney Matogrosso & Fagner [1975]
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Por Mairon Machado

O fim dos Secos & Molhados foi algo traumático. João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad encerraram as atividades entre muitas especulações até hoje cheia de mágoas e discussões, no auge do sucesso, em agosto de 1974, e a partir de então cada um seguiu o seu caminho em carreira solo. João logo lançou seu álbum homônimo, em 1975, pela gravadora Philips, e Gerson gravou ao lado de Zezé Motta o espetacular Gerson Conrad & Zezé Motta, também de 1975, mas pela Som Livre. Ney, talvez a maior estrela para os fãs, seguiu contrato com a Continental, e lançou Água do Céu Pássaro, sua fabulosa estreia solo (junto com o compacto As Ilhas / 1964 II) também em 75, mas pouco tempo antes, o cantor já havia livrado-se das sombras do Secos & Molhados gravando uma rara bolachinha ao lado de Raimundo Fagner, e que hoje tornou-se um verdadeiro achado.
Antes de chegar a gravação e lançamento do compacto, vale a pena voltar no tempo. Em julho de 1975, há exatos 50 anos, Ney participou do encerramento da temporada de shows no Teatro Treze de Maio, no Rio de Janeiro, e conseguiu uma carona no Fusca do jornalista José Márcio Penido rumo à Belo Horizonte, no qual foi também Raimundo Fagner, rapaz que já tinha certa relevância por conta de Manera Fru Fru, Manera, álbum de 1973 com clássicos como “Mucuripe” (presente também no raro Disco de Bolso – 1972 – ao lado de Caetano Veloso, e que havia sido gravada por Elis Regina no excepcional Elis de 1972) “Último Pau de Arara”, entre outros.

Ney e Fagner se conheciam de alguns encontros anteriores, e durante as 8 horas de viagem, a amizade cresceu. A dupla foi cantando canções de Ângela Maria, Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, entre outros, até que Fagner decidiu mostrar algumas canções que estava compondo. Ambos estavam indo rumo ao 1° Camping Pop de Inverno em Minas Gerais, um festival de três dias (18, 19 e 20 de julho) no luxuoso Serra Verde Camping Club, festival este organizado pela Revista Pop, uma das revistas de maiores tiragem no país à época, junto do refrigerante MG e da Secretaria Municipal de Cultura, Informação, Turismo e Esportes de Belo Horizonte. Dentre as principais atrações do evento estavam O Terço, Os Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, Novos Baianos e Caetano Veloso. O festival tinha como valor 60 cruzeiros para as três noites, e segundo a divulgação da revista (que trazia um cupom de desconto) “por 10 cruzeiros por dia o cara tem direito a café da manhã, almoço e janta”. Ou seja, era um grande festival, com grandes bandas, comida, ar livre e também tinha a atração de ser a primeira vez ao vivo de Ney fora dos Secos & Molhados.
Cerca de 8 mil pessoas (alguns dados citam 5 mil) juntaram-se para curtir o evento que ficou conhecido como o Woodstock Mineiro, e a revista Pop de agosto de 1975 destacou que “A maior surpresa foi o encontro Fagner/Ney Matogrosso“. A dupla se apresentou no último dia do evento. Fagner cantou primeiro sozinho, para então chamar Ney, vestido como um caubói, de chapéu-panamá e calça Lee. Com suas vozes contrastantes, mostraram as duas canções que haviam ensaiado, que levaram a plateia ao delírio, prometendo então levar o trabalho adiante. Poucos sabiam quem era o tal Ney, e só ligariam o Ney do palco ao Ney de suas memórias quando ouviram o timbre da voz reconhecível até por uma marmota bêbada. Vale ressaltar as outras atrações do domingo 20: Saecula Saecuorum, Sérgio Mello, Ney/Fagner, Sá & Guarabyra e O Terço.

Após o festival, a dupla voltou de trem para o Rio de Janeiro, com Fagner se hospedando na casa de Ney por alguns dias, tempo suficiente para gravar o único compacto da dupla. No lançamento da bolachinha, uma matéria de revista usou a expressão “celebrou-se a união” para falar da junção das duas vozes. Ney achou graça, Fagner não. O fato é que essa união exclusiva é um verdadeiro achado, com duas faixas fantásticas, e que vale a pena (E MUITO) estar na coleção. Gravado no Studio Level (Rio de Janeiro) em apenas três dias (17, 18 e 19 de outubro de 1975), a dupla está acompanhada de Paulo Guimarães (flauta), Jorge Olmar (violão de 12 cordas), Jorge Luis de Carvalho (baixo), Elber Beboque (bateria), Paulo Chacal (percussão), Claudio Guimarães (guitarra) e um ainda desconhecido Roberto de Carvalho (sim, ele mesmo) no piano, sintetizador e violão de 12 cordas.
A canção “Postal De Amor”, de Fagner, Fausto Nilo e Ricardo Bezerra, surge com o piano dedilhando. Violões, teclados e flauta conduzem ao vocal de Fagner, em um tom emocionado. O violão ganha força, e num crescendo, junto com os teclados, surge o vocal de Ney. A bateria então dá o crescendo final, para baixo, uma camada de teclados e violões conduzirem o belo tema de flauta. Chegamos ao ponto orgástico da canção, onde Ney e Fagner travam um duelo vocal enquanto cantam a última estrofe da canção, com uma performance assombrosa de Ney. “Louca, louca, louca, louca … muito louca” ecoam pela sala enquanto uma guitarra lisérgica sola ao fundo, trazendo junto flautas e teclados. Que crescendo, que construção, que maravilha!

O lado B é dedicado à “Ponta Do Lápis”, de Clodoaldo e Rodger Rogério, com uma bela introdução no violão, baixo e a flauta se marcando presente novamente. A voz de Ney aparece acompanhada pelo violão e percussão, lembrando bastante o que já estamos acostumados a ouvir em faixas do Secos & Molhados, inclusive pela presença de frases cantadas em espanhol. O refrão é um retumbante vocal que entoa a frase “terra terra chão a chão, retumbante coração” e o ritmo lembra uma milonga portenha, onde a flauta e os violões são as principais atrações. A segunda parte da canção é dominada pelo vocal de Fagner, com Ney fazendo vocalizações ao fundo. Ambos cantam o trecho em especial, explodindo novamente no refrão, com mais uma mágica participação da flauta.
Até onde consegui pesquisar, a dupla nunca mais subiu ao palco juntos, e se quer estas faixas foram apresentadas ao vivo novamente. O compacto aqui apresentado se quer é citado na Biografia do Secos & Molhados Primavera Nos Dentes, Quiçá na Autobiografia de Ney Matogrosso, Vira-Lata de Raça: Memórias. A única citação oficial deste encontro surge em Ney Matogrosso A Biografia, livro de Julio Maria lançado em 2021 bela Companha das Letras, e traz algumas páginas sobre este encontro. Uma lástima, pois são canções belíssimas e que engrandecem e muito a discografia de ambos os artistas. Aqueles que estiveram acampados na fria Serra Verde de Belo Horizonte em 20 de julho de 1975, tiveram uma oportunidade exclusiva de ver o encontro raríssimo de dois gigantes, e que felizmente, o registro conseguiu ser realizado neste compacto especialíssimo!

Que belíssima postagem! Trazer a história que antecede essa pérola de nossa música foi sensacional, e realmente é de se lamentar que, com o passar dos anos, ele tenha quase caído no total esquecimento. Eu sempre tive a tese de que o Fagner quis se descolar da imagem homossexual do Ney, mas, ao que parece, nunca saberemos o que de fato aconteceu, tal qual com a até hoje controversa separação do Secos e Molhados.
De qualquer forma, acrescento que o compacto é mencionado na biografia de Raimundo Fagner, “Quem me levará sou eu”, escrita por Regina Echeverria.