Datas Especiais: 50 Anos de João Ricardo


Por Marcelo Freire
No ano mágico de 1975, quando os ecos do fenômeno Secos & Molhados ainda reverberavam intensamente, João Ricardo (mentor, principal compositor e idealizador estético do grupo) lançou um trabalho solo que, meio século depois, continua a soar como revelação: mais conhecido como “Disco Rosa”, o álbum homônimo saiu cercado de expectativas. André Midani e Roberto Menescal, executivos da Philips, apostaram alto: João havia sido contratado a peso de ouro e carregava o prestígio de quem guiara uma das maiores revoluções não só da música popular brasileira, mas da música em geral.

Apesar disso, o álbum, mesmo bem recebido por críticos atentos, não atingiu as vendas imaginadas. O mercado esperava um sucessor natural dos Secos & Molhados; o que recebeu foi uma obra radicalmente pessoal, plural, impossível de se encaixar em fórmulas fáceis e que, ao mesmo tempo em que emulava o som dos Secos & Molhados, procurava se distanciar dessa sonoridade com a afirmação de que quem era o dono daquele som era, na verdade, o próprio João Ricardo…
O fim dos Secos & Molhados, em 1974, fôra traumático. O grupo que combinara rock, MPB, poesia e teatralidade atingira sucesso meteórico e, como um cometa, se desfez rapidamente. João Ricardo emergiu desse colapso com um misto de peso e de libertação: era reconhecido como o cérebro por trás do som e da estética que cativara o Brasil, mas agora podia gravar sem precisar negociar cada passo com parceiros. A Philips via nele um “novo grande nome” da MPB e ofereceu carta branca. Essa dupla condição — liberdade criativa e pressão por resultados — permeia todo álbum, que soa, ainda hoje, como o retrato de um artista experimentando fronteiras.

A produção ficou a cargo de Marco Mazola, figura central do pop brasileiro da época, e do próprio João. A banda de apoio impressiona: Roberto de Carvalho (guitarra, antes de se tornar parceiro de Rita Lee), Willie Verdaguer (baixo, ex-Secos), Roberto de Barros (bateria), Emilio Carrera (piano e órgão) e J.A. Pestana (sopros). Essa constelação de músicos oferece um suporte elegante e arrojado, capaz de atravessar estilos com naturalidade, da delicadeza quase lusitana ao rock mais direto. À exceção de “Os Metálicos Senhores Satânicos” e “Doce doçura”, em que as letras são poemas de seu pai, o português João Apolinário, todas as demais músicas são de sua autoria (letra, música e arranjos).

O LP chegou às lojas com um visual que, em 1975, não podia passar despercebido. A capa inteiramente rosa, minimalista, sem fotos ou lettering extravagante, causou estranhamento e curiosidade. À época, o rosa não era cor neutra: carregava conotações de ousadia e provocação de gênero, ainda mais em plena ditadura. O gesto de João pode ser lido como afirmação de independência e liberdade. Sem a teatralidade glam dos Secos & Molhados, o “Disco Rosa”, como ficou conhecido (à exemplo do “álbum branco” dos Beatles) comunicava, de maneira sutil e gráfica, que o artista seguia desafiando convenções.
“Salve-se quem puder” abre o álbum com uma síntese do que virá: violões de feição folk, inflexões de fado, uma flauta maravilhosa e uma batida rock que empurra a melodia para a frente. A letra, com ares de exortação, reflete a atmosfera de incerteza da época — e da vida pós-Secos —, mas sem amargura: é um convite à coragem individual: “Ambos ilustramos um ilustre nome / De renome lá do sul, meu amor / Ambos colocamos uma rosa cor de rosa / Na lapela morta, meu amor // E o que importa é perder os sentidos / E o que importa é perder os ouvidos / E o que importa é ficar entre os vivos / E o que importa é o que importa // Ambos nos safamos de andarmos menos mal / Ou simplesmente mal, meu amor / Ambos crucificamos Deus e o diabo / De cabo a rabo, meu amor”. O recado de que ele segue em frente e que “se safou” dos Secos & Molhados (a “lapela morta”) é quase literal. No entanto, também é inevitável pensar nessa e em quase todas as músicas do álbum na voz de Ney Matogrosso, no baixo de Gérson Conrad e nos arranjos daquela turma toda estelar dos álbuns da banda (Marcelo Frias, Sérgio Rosadas, John Flavin, Zé Rodrix, Willy Verdaguer e Emilio Carrera). No entanto, após algumas audições, essa sensação passa e nos tornamos adeptos de sua sonoridade peculiar, própria de João Ricardo.

Em seguida, “Vira safado”, escolhida como potencial hit e totalmente Secos & Molhados (não é preciso sequer dizer a qual música ela remete…), é um dos pontos altos do disco. Sua levada dançante, próxima da Jovem Guarda, e o refrão pegajoso poderiam ter feito dela campeã de rádios, mas a canção teve rotação tímida. A regravação posterior pelos Secos & Molhados, em 1980, prova, porém, a força duradoura da composição. Nela, João equilibra irreverência e lirismo com rara elegância e traz aquele universo que encantara o Brasil dois anos antes: “Numa montanha russa / Onde os sacis se perderam / Houve uma bruxa malvada / Pra quem os gatos cederam / Pelos poucos patacos / De lobisomens amargos / Com grandes olhos rosados / E pirilampos safados // E agora bailam todos / Ao som de um vira safado / Sem dança, roda ou festança / Um vira lata amarrado / Pelos poucos patacos / De lobisomens amargos / Com grandes olhos rosados / E pirilampos safados // Vira safado vira / Safado vira safado / Vira safado vira / Safado vira safado”. Ou seja, tinha tudo para ter dado certo.

O clima muda em “Sorte Cigana”, 4ª faixa do disco, que traz ecos do rock progressivo então em voga. Mudanças de andamento, arranjos intrincados e um piano insinuante criam uma atmosfera que lembra os experimentos do Gentle Giant e do Pink Floyd da era Meddle, mas com sotaque brasileiro, tornando-a uma pérola esquecida de nosso progressivo. Em “Viva e deixe viver”, última faixa do álbum, essa veia progressiva reaparece em diálogos instrumentais complexos entre baixo, bateria, guitarra, violões, sax e teclados, com destaque para o contrabaixo preciso de Verdaguer. O disco encerra com um sabor de novos caminhos a serem percorridos por João Ricardo, que mostrava ter ainda muita lenha para queimar e que soube aproveitar a liberdade criativa que a gravadora lhe deu.
“Balada Para Um Coiote”, 6ª faixa do disco, mergulha na psicodelia com timbres de teclado etéreos, guitarras em delay e um clima onírico que poderia dialogar com o rock californiano do período. É faixa de viagem, daquelas que pedem fones de ouvido e imaginação aberta e é, sem dúvida, uma das melhores do disco, remetendo a “El-Rey” e a “Amor” do primeiro disco do Secos & Molhados (inclusive nas referências aos instrumentais dessas faixas e os mesmos timbres de guitarra e baixo, bem como a mesma linha de Verdaguer, ouça-a e imagine o que poderia ter sido a continuidade da banda…). Obviamente, João sabia de seu legado e queria estabelecer conexões com o que ela criara. O toque latino surge em “Os metálicos senhores satânicos”, um samba-rock/funk com suingue irresistível, quase uma antecipação de sonoridades que Tim Maia e a Banda Black Rio explorariam em seguida e faixa na qual, mais uma vez, Verdaguer mostra como era bom no baixo e ficou esquecido em nossa música. Mais uma dessas faixas incríveis a serem descobertas.

A delicadeza de “Janelas verdes”, a música mais bonita do disco, com flauta e contrabaixo em diálogo sutil, evoca tanto a Lisboa do bairro homônimo quanto a contemplação de um músico livre de amarras: “Quem foi que mentiu na cor de minhas janelas verdes? / Talvez fosse tua cor errante que se confunde / Não necessariamente viva / Mas irremediavelmente longa // Pelo tempo que você demora pra tentar / Se aperceber que é tão fácil assimilar / Que um bom par de orelhas vem mesmo a calhar / Ao escutar esta simples canção de ninar / Não necessariamente morta”. De modo bastante lírico, João faz referências às mentiras que passaram a ser a acusação de cada um dos lados da história dos Secos & Molhados, ao mesmo tempo em que convida o ouvinte a ter “um bom par de orelhas” para descobrir de quem, afinal de contas, era o som da banda… E que essa sonoridade que ele construiu “não está necessariamente morta”, como se dava a entender com o fim repentino do nosso maior fenômeno musical. Dessa forma, por mais que a química entre os três (Ney, Gérson e João) realmente fosse coisa de outro mundo, não há como negar: o dono do som que amamos do Secos & Molhados é do português de Arcozelo, uma vila com menos de 4 mil habitantes, e radicado no Brasil.
As festeiras “Rock e Role Comigo” e “Se Sabe, Sabe” (7ª e 5ª faixas, respectivamente) retornam ao rock’n’roll clássico, diretas, com guitarras ácidas e vocais cheios de energia, lembrando que João, apesar da formação sofisticada, nunca perdeu a pegada roqueira, na linha parecida com o que Rita Lee andava fazendo no mesmo ano com mais vigor. Ao longo do LP, as letras mantêm a sua marca autoral: jogos de palavras, imagens poéticas e uma melancolia bem-humorada. João Ricardo mostra-se capaz de transitar do lirismo quase metafísico (como nos quase interlúdios “Fofoquinha” e “Doce doçura”, 8ª e 10ª faixas, respectivamente) à crônica urbana com naturalidade, mantendo a verve que encantou fãs dos Secos & Molhados, mas sem se repetir.

O que impressiona em João Ricardo é a habilidade de fundir referências sem cair no pastiche. Há fado português nas inflexões melódicas, folk anglo-saxão nos violões, rock progressivo e psicodelia nos arranjos, samba-rock e ritmos latinos no balanço de algumas faixas. Essa pluralidade dialoga com o ano mágico de 1975 — temporada que viu clássicos como Quem é Quem de João Donato, Estudando o Samba de Tom Zé e o segundo disco dos Mutantes pós-Rita Lee, Tudo Foi Feito pelo Sol. João Ricardo não imita nenhum deles, mas compartilha o espírito de aventura de todos.
O trabalho de Mazola na produção é crucial: os arranjos soam limpos, mas cheios de sutilezas, revelando uma busca por sofisticação que não sacrifica a espontaneidade. O som é cristalino, com destaque para a base rítmica e para os sopros de Pestana, que dão cor jazzística a vários momentos. Apesar de todo esse arsenal criativo, João Ricardo teve desempenho comercial aquém das expectativas. A Philips imaginava um sucesso à altura do estrondo dos Secos, mas o público — talvez confuso com a separação do grupo e com o experimentalismo do disco, dividido entre querer um novo Secos & Molhados e aderir ao caminho pessoal de João Ricardo, que também confundia os ouvintes com timbres, letras, arranjos e sonoridades que remetiam ao Secos — não respondeu em massa. A crítica, embora reconhecesse a qualidade, caiu na armadilha de compará-lo aos trabalhos de Ney Matogrosso e Gérson Conrad, que também estrearam em 1975. O “Disco Rosa” acabou relegado a nichos de colecionadores e fãs devotados e rapidamente caiu no esquecimento. No entanto, quem se debruça sobre o álbum percebe sua atualidade. Em tempos de fronteiras cada vez mais fluidas entre gêneros, a liberdade estilística de João soa profética. Ele antecipa a hibridização que artistas contemporâneos só abraçariam décadas depois, transitando sem medo entre rock, MPB, música lusitana e latinidades. Em alguma medida, de maneira análoga, Raul Seixas estava experimentando vários estilos também em 1975.

Revisitar João Ricardo é reconhecer que o artista não era apenas o “cérebro” dos Secos & Molhados, o dono daquela sonoridade única, mas um compositor inquieto, capaz de reinventar-se. O “Disco Rosa” não é uma continuação da banda, mas sim um verdadeiro manifesto de independência, registro de um criador que preferiu o risco da originalidade ao conforto da repetição; basta ouvir, mais uma vez, a magnífica “Janelas verdes” para compreender o tamanho desse compositor. Cinquenta anos depois, o LP permanece fresco, vibrante, com canções que resistem ao tempo e soam desafiadoras. É uma obra que pede redescoberta — não só como documento histórico, mas como experiência musical de alto nível, que conversa tanto com o passado da música portuguesa quanto com o futuro do rock brasileiro. Ao ouvir este disco hoje, senti-me como quem abre uma garrafa lançada ao mar em 1975. Lembro-me de quando descobri o LP quase por acaso, vasculhando prateleiras de vinis usados na década de 90, e desde a primeira audição fiquei hipnotizado pela coragem das canções. Há nele algo de confissão, de reinvenção radical, que continua a me surpreender cada vez que a agulha toca o sulco. Passadas cinco décadas, percebo que não se trata apenas de um álbum esquecido: é um recado de liberdade, uma prova de que a música brasileira sempre teve artistas dispostos a arriscar tudo em nome da arte. Voltar a ele é um privilégio e um convite para que mais gente se deixe conquistar por esse “tesouro rosa” que João Ricardo nos deixou.
Track list
- Salve-Se Quem Puder
- Vira Safado
- Janelas Verdes
- Sorte Cigana
- Se Sabe, Sabe
- Balada Para Um Coiote
- Rock E Role Comigo
- Fofoquinha
- Os Metálicos Senhores Satânicos
- Doce Doçura
- Viva E Deixe Viver

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