Os Últimos Brilhos do Diamante Louco

Os Últimos Brilhos do Diamante Louco

Por Fernando Bueno

Muita gente que conhece “Wish You Were Here” ou “Another Brick in the Wall” não sabe que o Pink Floyd começou sem a figura de David Gilmour e que Roger Waters não era a cabeça criativa da banda no início de sua trajetória. Alguns podem ter ouvido o nome de Syd Barrett, mas talvez não entendam direito a sua relação com a banda. Ainda hoje isso acontece com algumas pessoas que eu converso. Assim, aproveitando que finalmente consegui uma cópia do The Madcap Laughs, disco solo de 1970, resolvi falar um pouco mais da produção do diamante louco.

Para não precisar me aprofundar muito na sua história com o Pink Floyd, tentarei resumir. Syd Barrett fundou o Pink Floyd, juntos de seus companheiros Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright, e compôs praticamente sozinho todo o álbum de estreia, The Piper At the Gates of Dawn (1967). O álbum tinha os dois pés no rock psicodélico e abusava de efeitos até então incomuns de gravação como ecos, reverberação e muita experimentação e improviso. Outra coisa que eles abusavam muito eram os entorpecentes, principalmente o LSD. Isso fez com que o estado de saúde mental de Syd se debilitasse rapidamente.

Com problemas de convivência com o companheiro, os outros integrantes chamaram um amigo em comum para ajudá-los nas apresentações ao vivo, pois não eram raros os momentos em que Barrett não conseguia performar de forma razoável. O nome desse amigo é conhecido: David Gilmour. Com o passar do tempo as coisas foram piorando e em determinado momento simplesmente deixaram de chamar Barrett para os compromissos ao vivo e ele acabou sendo afastado da banda. A ideia de que ele fosse um membro que não precisasse fazer os shows e participasse só das composições, parecido com a situação de Brian Wilson nos Beach Boys, foi levada em consideração, mas não deu certo. Antes disso, foi gravado um segundo álbum, A Saucerful of Secrets (1968), dessa vez com apenas uma composição de Syd Barrett, “Jugband Blues” na qual é possível vislumbrar o estado do relacionamento entre os membros.

“It’s awfully considerate of you
to think of me here
And I’m most obliged to you
for making it clear
That I’m not here”

“É imensamente atencioso de sua parte pensar em mim aqui
E eu fico muito grato por você
deixar claro
Que não estou aqui”

Esse trecho mostra que ele sabia que seus dias com a banda estavam chegando ao fim. Esse foi o modo que Syd Barrett se despediu da banda. E o fato dela ser a última música do disco nos passa a impressão de que a própria banda tentou estender o processo até o último minuto. Também mostrou que ele tinha mais compreensão do que estava acontecendo do que as pessoas imaginavam.

Porém, todo o processo não foi fácil para seus companheiros. De alguma forma eles ficaram com peso na consciência de que talvez estivessem traindo seu amigo. Dessa forma, mesmo o tirando da banda não o abandonaram de vez. Syd tinha muitas músicas iniciadas, em processo de composição ou até mesmo finalizadas e seria uma pena não registrar isso de alguma forma.

Version 1.0.0

Ele ficou longe da música por aproximadamente um ano. Depois disso, vendo que ele tinha interesse em um recomeço, a EMI o passou para seu novo selo especializado em progressivo, a Harvest. Tentaram algumas sessões de gravação, mas as coisas não funcionavam direito. Nessa época ele estava trabalhando com o produtor Malcolm Jones. O baterista do Humble Pie, Jerry Shirley acompanhava as gravações e David Gilmour fazia a função de baixista. Jones, eventualmente desistiu do trabalho e Roger Waters e David Gilmour assumiram a função de produtores do álbum. A maior dificuldade foi que Barrett tocava as suas músicas “ao vivo” no estúdio e não era raro ele se atrapalhar com o andamento, compassos e até mesmo manter o tom de sua voz. Se não fosse a conhecida presença de todos dentro de um estúdio, essas gravações poderiam muito bem ser consideradas como produções caseiras. Em algumas faixas usaram a solução de aumentar ou diminuir a velocidade de uma gravação para ajustar o melhor possível dentro de um compasso da música. O processo de gravação durou de maio de 1968 até agosto de 1969 e nesse contexto que em janeiro de 1970 saí The Madcap Laughs.

Entretanto, mesmo com esses percalços algumas pérolas surgiram nesse primeiro lançamento solo. “Terrapin”, “No Good Trying”, “Here I Go”, “Octopus” e “Long Gone”. São esses os pilares desse primeiros disco solo. Participam do álbum alguns músicos importantes da cena britânica além de Gilmour e Waters, que também produziram o material, e o baterista Jerry Shirley, que já foi citado acima. Mike Ratledge e Robert Wyatt, fundadores do Soft Machine e John Wilson, baterista que tocou com várias bandas como o Them, o Taste e o Skid Row. Todos participaram de uma faixa aqui e outra acolá. Quem esperava um disco na linha do que ele fez com o Pink Floyd se decepcionou. As músicas são muito mais simples e diretas do que sua ex-banda fazia, mas a psicodelia característica das composições do músico ainda está lá. Em determinado momento das gravações Waters e Gilmour se distanciaram um pouco para gravar o que viria a ser o Ummagumma (1969), quarto disco do Pink Floyd.

Em “Dark Globe”, Syd canta com uma emoção tocando a possibilidade das pessoas o esquecerem. Quando se lê a letra da música isso parece não estar conectado com sua vida de músico, mas é sintomático. Já em “Here I Go”, numa aparente música sobre uma garota Syd é bem explicito em dizer que ela pode fazê-lo esquecer “aquela velha banda”. “Terrapin” chegou a fazer parte do repertório ao vivo de David Gilmour em sua carreira solo anos e anos depois.

A capa do álbum mostra Syd Barrett agachado dentro de seu apartamento em que o piso tem faixas laranjas e marrons. Foi Syd mesmo que pintou essas faixas no piso pouco antes das fotos usada. O apartamento é completamente vazio, o que muitos comparam com a cabeça de Syd vazia de pensamentos, mas também pode refletir a vulnerabilidade de uma pessoa sem pretensões. O olhar de Syd é fixo e sem emoções, em uma contradição com as risadas do título do álbum. Na contracapa, ao fundo, Iggy, sua companheira da época, aparece nua, combinando com o apartamento.

Em Barrett, também lançado em 1970, dessa vez em novembro, a rotina foi muito parecida com a de seu disco anterior. Porém as músicas aqui parecem ser mais bem acabadas e produzidas, apesar de que no geral são inferiores às melhores faixas do primeiro disco. Gilmour tocou guitarras e o baixo e chamou Richard Wright para ajudar. Detaques para “Baby Lemonade”, “Gigolo Aunt”, “Wined and Dined” e “Dominoes”.

Em “Baby Lemonade” ele diz que o interlocutor é gentil como gelo, provavelmente trazendo à tona o tratamento que as pessoas tinham com ele nesse período, o tratavam friamente. Porém muitas letras são tão abstratas que são de difícil interpretação, mostrando que as viagens de LSD são muito mais malucas do que a gente imagina. Da capa, dessa vez sem sua foto, também podemos tirar algumas interpretações. Os insetos desenhados como se em uma sequência de desenvolvimento biológico traz o conceito de evolução ou mutação. O processo de vida naquele momento de Barrett pode ser enxergado dessa forma.

Já li críticas dizendo que os envolvidos com o lançamento desses discos de uma certa maneira estavam explorando a imagem de Syd Barrett. Há ideias muito boas em suas músicas, mas os produtores talvez tenham enfatizado mais sua loucura do que sua genialidade, e não fizeram muito esforço para ajudá-lo a fazer boas performances. Há takes em que ele perde o ritmo e teriam sido acrescentados principalmente nos relançamentos para enfatizar o péssimo estado de sua saúde mental. Particularmente acho desnecessário vários desses bônus, até pq até mesmo algumas faixas oficiais dos discos já eram bastante caóticas. Mas muita gente gosta desse tipo de material e talvez isso não tenha passado pela cabeça dessas pessoas.

Anos depois saiu um álbum com faixas de sobras que acabaram não entrando nesses dois discos e que foram gravadas desde o início das gravações ainda em 1968 até o fim das gravações de Barrett. Opel saiu em 1988 e não acrescenta muita coisa além de mais um afago aos fãs. Após Barrett, Syd foi se afastando cada vez mais, se isolando do mundo e a imprensa musical o tratava como uma espécie de hermitão. Porém sua família sempre negou isso dizendo que ele era muito feliz e que encontrou na pintura uma modo de se expressar artisticamente. Também falavam que ele brincava com as crianças da rua e apenas preferia passar tempo consigo mesmo do que se envolver em eventos sociais. Syd viveu a música intensamente (até demais) enquanto participou de tudo e, depois, simplesmente tirou isso do radar e foi viver outro tipo de vida.

Não posso deixar de citar o já conhecido e muito lembrado ocorrido relacionado com Syd Barrett, que é a chegada dele ao estúdio enquanto o Pink Floyd gravava Wish You Were Here em meados de 1975. Syd estava longe da banda há anos, ninguém se via durante todo esse tempos e justamente nesse álbum em que ele era o principal protagonista. Tantos álbuns do Pink Floyd que foram gravados e ele vai ao estúdio exatamente nesse. Essa história é bastante batida, mas é incrível por conta de toda a situação. Uma das história mais saborosas do rock.

Fica aqui a recomendação para quem não conhece a carreira de Syd Barrett após o Pink Floyd ou para quem ouviu há muito tempo, não deu bola e nunca mais voltou. Vários artistas de peso citam esses dois discos como uma fonte de inspiração. Artistas de diversas vertentes, de David Bowie à Flaming Lips. Uma boa forma de conhecê-lo é a coletânea The Best of Syd Barrett: Wouldn’t You Miss Me?, lançada em 2001. Quem sabe agora não seja uma oportunidade.

 

3 comentários sobre “Os Últimos Brilhos do Diamante Louco

  1. Muito legal o texto, com muito detalhamento e essa apreciação crítica dos outtakes das reedições é bem válida. “The Madcap Laughs”, ainda que não alcance o brilhantismo do primeiro álbum do Pink Floyd, traz boas composições, indicando que Syd ainda não tinha perdido a capacidade de escrever boas músicas. “Barrett”, na minha opinião, mas “Baby Lemonade”, “Effervescing Elephant” e “Gigolo Aunt” são bem legais. Quanto a “Opel”, a faixa-título é muito boa, pena que é praticamente uma demo; as outras músicas trazem alguns flashes de qualidade, mas não conseguem chegar a lugar algum, infelizmente. Além da coletânea que você mencionou, a box “Crazy Diamond” traz os três discos com bonus tracks das reedições em CD, e “An Introduction to Syd Barrett” traz “Bob Dylan’s Blues”, um remix inédito de “Matilda Mother” e trazia um código para download de “Rhamadam”, uma jam de mais de 20 minutos que só tinha saído num CD japonês. E claro, tem os 20 minutos de “Radio One Sessions” com Syd na BBC. Mas tudo isso é para os completistas que querem ter tudo do Crazy Diamond, claro!

    1. Faltou um pedaço: “Barrett”, na minha opinião, é bem inferior ao antecessor, mas “Baby Lemonade”…
      Desculpe a nossa falha!

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