Maravilhas do Mundo Prog: Yes – The Gates of Delirium [1974]

Maravilhas do Mundo Prog: Yes – The Gates of Delirium [1974]

Por Mairon Machado

Quando Rick Wakeman (teclados) pediu as contas do Yes, rejeitando a vida vegetariana e as experimentações progressivas que Jon Anderson (vocais, flautas, violões, percussão, harpa) e Steve Howe (guitarra, Danelectro Sitar, vocais) estavam empregando ao grupo, Chris Squire (baixo, harmônica, violões, vocais) e Alan White (bateria, percussão) haviam se conformado com o caminho do grupo, ainda mais com o sucesso de vendas dos dois últimos álbuns, Close to the Edge (1972) e Tales from Topographic Oceans (1973).

A busca por um novo tecladista tornava-se prioridade. Com o status elevado, o grupo não poderia deixar o cavalo passar encilhado, e saiu atrás do novo tecladista. A ideia era trazer um nome de impacto, para lotar o aeroporto, e assim, surgiram os nomes de Eddie Jobson, Jean Roussel, Rod Argent e até mesmo Keith Emerson (isso só para citar os mais conhecidos). O escolhido a priori foi o nome do tecladista grego Vangelis.

Multiinstrumentista habilidoso e genial, Vangelis havia acabado de fechar as portas do excepcional Aphrodite’s Child, e começado uma carreira solo que prometia um futuro incerto, pois o mundo ainda não estava acostumado ao som que o tecladista estava propondo. Ele foi apresentado ao Yes através de Anderson, que havia se tornado amigo do músico, e foi convidado a fazer um ensaio com o grupo.

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Vangelis, em 1974

O que aconteceu neste ensaio é muito vago. Poucas vezes os membros do Yes tocaram no assunto, mas sabe-se que Howe ficou assustado com a capacidade musical do músico, que parecia ser a própria banda, e não o membro da banda. As principais informações estão presentes no livro de Dan Hedges, Yes: An Authorized Biography(1984). Com diversas entrevistas, temos as opiniões dos membros do grupo.

Todos estavam muito animados com o potencial dele (Vangelis), mas depois de três semanas, ele começou a mostrar um gênio bastante forte“, fala Squire. Já Howe diz: “Ele foi muito avassalador. Pudemos ver as possibilidades musicais dele desde o início, mas parecia que ele não estava comprometido, com intenção de ficar. Ensaiamos por meia hora, e achamos que tínhamos a pessoa certa. Quando tentamos outra canção, Vangelis parecia não entender o que dizíamos. Mas ele tinha todos os tipos de talentos escondidos. Ficava na bateria e tocava muito, com fúria, por mais de dez minutos, mas não estava mais acostumado a trabalhar com um grupo. Ficamos pensando como iríamos tocar uma música com ele, pois era uma entidade sonora, uma pessoa emanando sons, e nós o apelidamos Entidade Vangelis“. Alan White complementa: “Com ele jamais teria funcionado. Um álbum talvez, mas não de forma permanente“.

Vangelis acabou dispensado, mas saiu amigavelmente do grupo, tanto que depois convidou Anderson para participar do excelente álbum Heaven and Hell, de 1975, e formou com o próprio Anderson a dupla Jon & Vangelis, que fez relativo sucesso no início dos anos 80. Para seu lugar, o suíço Patrick Moraz era a nova opção.

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O único álbum do Refugee

Moraz era o músico perfeito para substituir Wakeman. Sua carreira era esplendorosa e de admirável reconhecimento. Muito jovem, começou uma carreira solo como pianista de concerto, e pouco depois, passou a acompanhar diversos artistas de jazz, dentre eles o cultuado saxofonista John Coltrane (em 1965), mostrando sua versatilidade. Em 1968, formou o grupo Mainhorse, ao lado de Jean Ristori, lançando no mesmo ano um único álbum, auto-intitulado. O grupo não vingou, e Moraz decidiu mudar-se para a Inglaterra, aonde formou o Refugge em 1973, ao lado de Lee Jackson e Brian Davison, ambos ex-Nice, com quem gravou um único álbum, Refugee (1974).

Seu trabalho no Refugee foi de tamanha excelência que acabou chamando a atenção dos músicos do Yes. Em agosto de 1974, surgia então a quinta formação do Yes, com Anderson, Howe, Squire, White e Moraz. Os fãs ficaram em dúvidas, pois a constante mudança na formação poderia afetar a sonoridade da banda, mas estavam enganados. As mentes de Howe e Anderson eram capazes de manter o nível do Yes lá em cima, e isso foi comprovado com Relayer, o sétimo álbum de estúdio do Yes, lançado em novembro de 1974.

Discordo totalmente dos que afirmam que Moraz trouxe influências jazzísticas ao grupo. Sempre o jazz esteve presente na primeira fase do Yes, e talvez, o que apareça é uma inclinação pelo free-jazz, mas nada tão sobressaliente, principalmente na Maravilhosa faixa que abre o LP, a essencial “The Gates of Dellirium”. Inspirada na obra War and Peace, do escritor russo Leo Tolstoy, ela narra o duelo entre o bem e o mal, através de uma performance inspiradíssima, principalmente de Howe e Moraz.

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Chris Squire, Jon Anderson, Alan White, Patrick Moraz e Steve Howe, em 1976

Harmônicos e sons de teclados são os responsáveis pela introdução de nossa Maravilha, com Howe já esbanjando virtuosismo logo de largada, seja no harmônico, seja nas rápidas escalas, utilização do pedal de volume ou até nos temas divididos com os teclados. A introdução nos prepara para a longa viagem pelos delírios da guerra, com Howe encerrando seu solo fazendo um tema repetido junto ao baixo e bateria, enquanto camadas de teclados surgem ao fundo. Anderson faz vocalizações em cima desse tema, e uma série de notas marcadas entre bateria, guitarra e baixo trazem a voz de Anderson, acompanhada apenas por um violão.

Batidas no bumbo ditam o ritmo das batidas nas cordas da guitarra, para Howe, Squire e Anderson cantarem todos ao mesmo tempo, com um andamento agressivo. A segunda estrofe vocal encerra-se com um breve tema, e então o pau pega de vez, com Anderson esbravejando contra o microfone, Howe fazendo intervenções raivosas e  a cozinha mandando ver. Uma ponte com acordes de guitarra e passagens de moog trazem o trio vocal para a terceira estrofe, cantada sobre o ritmo cavalgado, e mais uma vez, o breve tema de Howe leva para os vocais agressivos de Anderson, com Howe subindo e descendo escalas, e Squire cavalgando com seu baixo. A ponte de acordes e passagens de moog leva-nos para o primeiro solo de Howe, trabalhado em cima de um mesmo tema, alternando apenas os tons da escala que é utilizada, e com breves participações do moog, enquanto White e Squire comandam o balanço para a guitarra se divertir.

Um lindo arranjo vocal, acompanhado por notas de guitarra com volume, e pelo baixo, faz a divisão de “The Gates of Dellirium”, tornando-a apreensiva. O baixo marcante e as passagens de sintetizadores assombram, e o trio vocal canta tristemente, trazendo novamente o tema da guitarra, as marcações de baixo e bateria, começando uma das mais memoráveis sessões instrumentais da carreira do Yes. O crescendo dado pelos teclados, guitarra, baixo e bateria explode em uma incrível sessão vocal com a guitarra despejando distorção, e mais uma vez, o tema da guitarra encerra essa sessão para começarmos a endiabrada parte central da suíte.

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A linda capa de Relayer, em sua versão dupla

Representando a batalha entre o bem o mal, nesse momento, Moraz e Howe duelam como dois leões, um no moog e outro na guitarra. É impossível compreender o que Howe faz em sua guitarra. Subindo e descendo escalas, o guitarrista praticamente destrói suas cordas, enquanto Moraz repete o mesmo tema sobre um andar cavalgante de baixo e bateria. Os momentos aonde a guitarra se sobressaem são de temor e de impossibilidade de se ficar parado. É possível ouvir barulhos de plateia, como que pessoas então em delírio, enquanto temas marcados complicadíssimos são elaborados por guitarra e moog.

Uma escala muito veloz encerra a primeira parte dessa sessão instrumental, entre os barulhos de pessoas, e chega a hora de White e Squire darem seu espetáculo, com uma marcação fenomenal, enquanto barulhos percussivos, viajantes notas no sintetizador e acordes estranhos de guitarra saltam das caixas de som. Barulhos diversos tomam conta de sua cabeça, derrubando tudo o que vem pela frente, ao mesmo tempo que bateria, guitarra e baixo repetem o mesmo tema por diversas vezes. Descrever em palavras é dispensável, e aqui recomendo apenas ouvir as diabruras que o quinteto faz, já que Anderson é responsável por boa parte percussiva.

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A letra de “The Gates of Dellirium”

O moog salta com um tema acompanhado de perto pelo baixo, e a insanidade finalmente é assumida pelo Yes, com uma sequência perturbadora de barulhos encerrada com um majestoso solo de moog, aonde Squire e Howe fazem aquela que considero a mais perfeita sinfonia para um solo de moog que Moraz já teve em sua vida. Howe então passa a solar com o mesmo tema do moog, e caprichando nos efeitos, encerrando magistralmente a longa sessão instrumental, e abrindo espaço para um dos momentos mais marcantes do rock progressivo.

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O single de “Soon”

Batizada de “Soon”, o encerramento de “The Gates of Dellirium” é a comprovação (se é que ainda precisa) de que Anderson e Howe estão em um patamar muito superior aos demais compositores do rock progressivo. Destacando que o bem sempre irá se sobrepor ao mal, a delicadeza da cama de teclados, e a tímida percussão, acompanhado a ingênua e emocionante sequência de notas da guitarra, com o pedal de volume fazendo a guitarra chorar, certamente foram emanadas do Paraíso para esse gênio da guitarra. O tema feito por Howe leva ás lágrimas com muita facilidade, e quando a voz de Anderson surge, cantando sobre o mesmo tema e acompanhada por acordes quase inaudíveis de violão, lenços não param de consolar os olhos, tamanha a beleza apresentada pelo Yes. Baixo e teclados acompanham a dramaticidade com muita sutileza, e as notas de Howe massageiam as cordas vocais de Anderson, tornando-as ainda mais belas e sensíveis.

A participação de um mellotron complementa a beleza de “Soon”, e agora, Howe desliza seu slide pela slide guitar, soltando notas que atingem em cheio ao peito do ouvinte, em um espetáculo de mesma proporcionalidade a uma Aurora Boreal, retornando então para a voz de Anderson, que canta a última estrofe de “The Gates of Dellirium” como que despedindo-se, assim como o slide faz suas últimas notas acompanhado por vocalizações, mellotron e um lento andamento de bateria e baixo, concluindo essa maravilhosa suíte com uma encantadora sequência vocal, tendo a parceria do mellotron e do slide guitar, além de tímidos acordes de violão, deixando um rio de lágrimas após essa emocionante gravação.

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O lado A de Relayer, em sua versão original

O álbum encerrava o caminho que o grupo havia começado com Close to the Edge, formando uma trilogia perfeita do rock progressivo junto a este e Tales from Topographic Oceans. No seu lado B, as pérolas “Sound Chaser” e “To Be Over” são ambas capazes de fazer parte dessa sessão, a primeira trazendo as ditas influências de jazz rock, principalmente durante o espetacular solo de moog feito por Moraz, e na linda balada “To Be Over”, uma das canções mais lindas que a rede fonográfica registrou. “Soon” foi lançada em formato de single, com uma versão editada de “Sound Chaser” no lado B.

O lado direito da capa de Tales une-se ao lado esquerdo da capa de Relayer, apesar de Roger Dean afirmar que isto é apenas acaso

O grupo saiu para uma turnê repleta de sucessos, tendo como ponto máximo a apresentação no JFK Stadium da Philadelphia completamente lotado, tendo a abertura de Peter Frampton e com mais de 150 mil pessoas, o maior público para assistir a um único show de uma banda de rock progressivo até então. Porém, durante a turnê, Moraz acabou demonstrando incapacidade para repetir as passagens de Wakeman, e também não estava nem um pouco à vontade com a precisão de Anderson e Howe. O DVD Live at Q. P. R. mostra bem o nervosismo de Moraz no palco, errando bisonhamente passagens de “Close to the Edge” e “Ritual”, além da insatisfação de Anderson com a performance do tecladista.

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Estádio JFK lotado para assistir o Yes, em 1976

O músico saiu encerrada a turnê, e no auge da era punk, como Sex Pistols pregando a revolução na música britânica, Wakeman voltou para registrar Going for the One, com a Maravilhosa “Awaken” comprovando que o progressivo ainda sobrevivia, e que o Yes novamente era a maior banda do planeta. O grupo lotou o Wembley Arena por cinco noites seguidas, trazendo um palco giratório, em meio a plateia, e com Howe e Wakeman surpreendo cada vez mais com performances avassaladoras.

Mas, a partir de então, o Yes não conseguiu mais se firmar como uma excelência progressiva. O álbum seguinte, Tormato (1978) levou a divergências internas, fazendo com que Anderson saísse pela primeira vez do Yes, levando consigo Wakeman. Trevor Horn e Geoff Downes, a dupla Buggles, substituíram Anderson e Wakeman respectivamente, e assim o Yes lançou o rejeitado Drama (1980), discutido até hoje por fãs do grupo, agradando a muitos com uma sonoridade moderna, mas desgostando a tantos outros, que preferiam o Yes antigo. A turnê de Drama foi pior ainda, com os fãs vaiando Horn e Downess errando passagens de canções que não foram registradas por ele.

O Yes encerrava suas atividades em 1981, voltando à ativa em 1983 com Trevor Rabin nas guitarras, trazendo Tony Kaye novamente para os teclados, Jon Anderson, Chris Squire e Alan White. Vieram dois álbuns de sucesso, 90125 (1984) e Big Generator(1987), o reconhecimento mundial do grupo não mais como um expoente progressivo, mas como a excelência pop britânica. Union (1991), unindo oito membros que estavam ou haviam passado pelo Yes, e Talk (1994) concluíram a fase de Rabin como líder do Yes, e a partir de 1995, Howe retornou, trazendo o grupo novamente para o progressivo.

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Yes na década de 80, com Trevor Rabin

Vieram dois álbuns mezzo ao vivo, mezzo estúdio, com Rick Wakeman novamente nos teclados, Keys to Ascension (1996) e Keys to Ascension 2 (1997), sendo o segundo capaz de trazer mais uma canção para essa sessão, a Maravilhosa “Mind Drive”, que iremos conferir mês que vem, encerrando as Maravilhas do Mundo Prog do Yes, sendo que quero destacar, como uma leitura complementar, que amanhã completam-se 27 anos de quando vi o Yes pela primeira vez. Se tiver curiosidade de saber como foi aquele show, aqui está.

4 comentários sobre “Maravilhas do Mundo Prog: Yes – The Gates of Delirium [1974]

  1. Mairon, que belíssima resenha, captou bem a essência da música e da banda à época. Eu sou completamente apaixonado pelo “Relayer”! Por mim, essa formação tinha lenha para queimar, uma pena os shows terem desmoralizado o Moraz… Além disso, a referência ao Refugee foi massa, curto bastante esse disco.
    Além disso, eu NÃO SABIA DESSE LANCE DAS CAPAS! Sensacional, parabéns!

  2. “The Gates of Delirium” é, para mim, a obra-prima das obras-primas do Yes. A banda atingiu um grau incomparável de perfeição nesta música, com tudo funcionando como um relógio. Além disso, Alan White deixou bem claro que, embora ele não tivesse a técnica inacreditável de Bill Bruford, era um baterista à altura do Yes. A letra dessa música é impressionante, e acho que Jon Anderson atingiu seu auge como vocalista nessa música. “Relayer” volta e meia se torna meu favorito do Yes – uma briga complicada, com “The Yes Album”, “Close to the Edge”, “Tales From Topographic Oceans” e “Relayer” brigando cabeça a cabeça para ver quem fica em primeiro.

  3. O Rick Wakeman era/é um monstro e essa resenha mostra um pouco o motivo. Deve ser um sentimento de merda para um cara do nível do Moraz ficar com a marca de “não conseguiu tocar as músicas de outro músico”. Por isso que no fim das contas ele veio se esconder aqui no Brasil….rs

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