Datas Especiais: 45 Anos de A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu
Por Mairon Machado
Quando conheci Zé Ramalho, lá nos idos de 1998, era por conta do extremo sucesso que o álbum 20 Anos Antologia Acústica estava fazendo. Lançado em 1997, o disco duplo colocava novamente o nome do bardo paraibano em voga no cenário nacional, após um longo período de ostracismo causado por uma acusação de plágio (ocorrida em 1982 por conta da faixa “Força Verde”, lançada no álbum homônimo) e um recomeço com canções em novelas globais do início dos anos 90.
Claro que já tinha ouvido faixas como “Mistérios da Meia-Noite”, “Admirável Gado Novo” e “Entre a Serpente e a Estrela”, já que as mesmas fizeram um estrondoso sucesso nas novelas Roque Santeiro, Rei do Gado e Pedra Sobre Pedra, respectivamente, mas nunca tinha parado para ouvir o cara. Foi por conta de um amigo meu, com o qual tinhamos uma pseudo-banda, que me apresentou o CD, e acabei conhecendo mais a obra do músico, e como consequência, inserindo em nosso repertório duas músicas do rapaz, “Kriptonia” e a versão para “Knockin’ On Heaven’s Door” (a tenebrosa “Batendo Na Porta Do Céu “), que estava no CD. Mas claro, admirei outras músicas do álbum, como “Frevo Mulher”, “Garoto De Aluguel” e “Beira-Mar”.
Eis que anos depois, já conhecedor (e admirador) de Paebirú, a fabulosa estreia de Zé ao lado de Lula Côrtes, encontrei em um sebo o álbum Zé Ramalho, de 1978, e acabei graças a internet, mergulhando na fase esóterica do músico, que compreende o período entre o citado Zé Ramalho, detentor de clássicos do porte de “Avôhai” e “Chão De Giz”, até o magistral Orquídea Negra (1983), com as belíssimas “Taxi Lunar” e “Kriptônia”, e que para mim tem seu zênite exatamente no segundo dos cinco discos lançados nesse período, A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu (a saber, os outros dois álbuns dessa fase são A Terceira Lâmina, de 1980, e o já citado Força Verde). Temos aqui um caldeirão em ebulição, onde os temperos nordestinos incrementam-se ao rock europeu, ao blues americano e até a música moura, com a psicodelia Paebirúana que Zé criou anos antes, em um disco único. Fora que os músicos acompanhantes do paraibano são de um calibre mais que raro.
O album começa com o violão e as vocalizações da faixa-título, espancando o ouvinte com a frase “Ói, com tanto dinheiro girando no mundo quem tem pede muito, quem não tem pede mais“. Um belo baião que traz fortes críticas políticas, e com destaque para a sanfona de Severo da Silva, e o bonito arranjo de metais, composto por Zé Bodega (saxofone), Edmundo Maciel (trombone), Evaldo e Márcio Montarroyos (trompete). Na sequência vem o clássico “Admirável Gado Novo”, outra canção com forte teor político, com um lindíssimo arranjo de cordas a cargo de Paulo Machado, mas que destaco, além da canção que virou um símbolo para toda uma geração na década de 90, através da novela O Rei do Gado, a fantástica linha de baixo de Chico Julien. “E ô ô vida de gado, povo marcado, povo feliz“, é uma das grandes frases de uma letra ainda muito atual.
A terceira faixa é um tributo a Geraldo Vandré. “Falo da vida do povo, nada de velho ou de novo…” abre a letra de “Falas do Povo”, uma linda balada que remete musicalmente a “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, com seus dois acordes de violões, e o violino de um endiabrado Jorge Mautner serpenteando uma canção lindíssima, com uma interpretação fabulosa de Zé Ramalho, ao nível da fabulosa letra, e com destaque também para o órgão hammond de Paulo Machado. O clássico “Beira-Mar” abre espaço para a tríade que segue com “Beira-Mar (Capítulo 2)” (de Força Verde) e “Beira-Mar (Capítulo Final)” (de Eu Sou Todos Nós, de 1998), com o seu violão-folk (a cargo de Geraldo Azevedo), mais uma letra emocionante assim como fantástico arranjo de cordas de Paulo Machado.
O lado A encerra-se com a arrepiante “Garoto De Aluguel (Taxi Boy)”. Para quem conhece apenas a versão de 20 Anos Acústico, isso é aqui é o suprassumo da qualidade musical de Zé Ramalho. Um arranjo orquestral fabuloso, comandado por Paulo Machado (que também está ao piano) trazendo a nata de alguns dos principais nomes das cordas no Brasil: Alceu De Almeida Reis, Iberê Gomes Grosso, Zamith, Márcio Eymard (violoncelo), Arlindo Penteado, Frederick Stephany, Nathercia, Macedo (violas); Alfredo Vidal, Alvaro Vetero, Guetta, Arthur Dove, Carlos Hack, Lana, Marcello Pompeu, Pissarenko, Virgílio Arraes Filho, Walter Hack (violinos). Quem nunca ouviu falar nesse time é por que ou nunca pegou um disco de músicos da MPB dos anos 70 e 80 para ler os créditos, ou reamente detesta música brasileira. Voltando para a canção em si, a combinação da tocante melodia dos violinos, junto das notas preciosas dos violoncelos, e de uma interpretação simplesmente desmoronate de Zé Ramalho, talvez a melhor de sua carreira, farão até seus vizinhos preconceituosos contra os nordestinos segurar as lágrimas, mas não conseguirem evitar a emoção que a dor desta faixa exala pelos sulcos do vinil em cada segundo. Que música! Que interpretação! Que lindeza!
Depois de secar os olhos, é a vez de virar o disco e mandar a agulha rolar no lado B, através de “Pelo Vinho E Pelo Pão”, e daí você certamente irá soltar aquele “puta merda” que ficou engasgado durante “Garoto de Aluguel”. Afinal, um lindo cavaquinho, a cargo simplesmente do mago Waldir Silva, um dos maiores nomes do instrumento no Brasil, traz esse choro-canção, no qual Zé divide a voz junto de sua amada esposa Amelinha. As cordas, aqui novamente arranjadas por Paulo Machado, e o violão de Dino 7 Cordas, outro fera no seu instrumento, dão mais dramaticidade para outra faixa apavorantemente linda. Voltamos ao baião com “Mote das Amplidões”, onde os sintetizadores (Paulo Machado novamente) e a voz com efeitos de Zé Ramalho certamente nos colocam nas faixas de Paebirú.
Uma homenagem à João Pessoa, capital da Paraíba, aparece na sensacional “Jardim das Acácias”, começando com o ritmo do violão, trazendo o solo da guitarra e o magistral arranjo de cordas, para levar ao duelo vocal/guitarra e a ótima letra, cerceada pelos solos individuais da inconfundível guitarra de Pepeu Gomes. Zé então surge tocando todos os instrumentos da instrumental “Agônico”, uma faixa com um complexo dedilhado de violões, lembrando um duelo nordestino, porém com um ritmo mais próximo ao chamamé missioneiro. Outra faixa muito surpreendente.
A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu encerra-se com “Frevo Mulher”, a declaração de amor de Zé para Amelinha, composta por ele em 1979, no Hotel Plaza do Rio de Janeiro, enquanto observava a então revelação Amelinha ser cobiçada por inúmeros compositores que queriam a voz da jovem cantora em suas canções. Mas foi com essa faixa que Zé conquistou não apenas a voz, mas o coração de Amelinha, tanto que os dois se casaram e tiveram dois filhos. Sobre a canção em si, é outra que para quem só conhece a versão de 20 Anos Antologia Acústica irá se surpreender. Afinal, a faixa realmente é um frevo, simples assim, onde os metais fazem todo o cenário musical para Zé desfilar sua poesia-tributo à Amelinha. O ritmo avassalador da percussão, marcada pelos pratos de Jorge Batista e a tuba de Zênio de Alencar, além de um naipe de metais formado por Hélio Marinho e Zé Bodega (saxofones), Edmundo Maciel, Manoel Araújo e Sylvio Barbosa (trombones) e Evaldo, Formiga, Hamilton e Márcio Montarroyos (trompetes), faz você sair dançando pela casa, e soltando mais um “puta que pariu!” pela grandiosidade da obra que está encerrada.
A capa do álbum traz Zé Ramalho empunhando um violão e interpretando o “dono do Céu”, enquanto uma mulher vampiresca (Xuxa Lopes) o espreita, e seu rival José Mojica Marins o ameaça. A fotografia foi tirada num casarão abandonado em Santa Teresa, no Rio de Janeiro e foi dirigida por Ivan Cardoso. No resto do encarte, aparecem também Satã (produtor e guarda-costas de José Mojica), Mônica Schmidt e Hélio Oiticica. Destaca-se também o encarte com belas ilustrações de Seth por Álvaro Marins e símbolos de Raul Córdula.
Zé Ramalho infelizmente abandonou o esoterismo, fazendo três álbuns no mínimo questionáveis na segunda metade dos anos 80, onde chegou inclusive a flertar com eletrônicos no tinhoso Décimas de Um Cantador, e só conseguiu se reerguer em 1996, por conta de Grande Encontro (ao lado de Elba Ramalho e Geraldo Azevedo), que apresentaram as canções do músico para toda uma nova geração de fãs, assim como 20 Anos Antologia Acústica. Porém, esse período de sua segunda fase musical está aí à disposição para ser (re)descoberto tanto por novos quanto por velhos fãs do paraibano, que completou onteme 75 anos. Certeza que, se A Peleja do Diabo Com O Dono Do Céu tivesse sido lançado por um músico britânico, estaria encabeçando as listas de Melhores discos de todos os tempos mundo a fora. Mas não foi, pois afinal, somente um grande nome brasileiro poderia fazer algo tão grandioso e poderoso como esse álbum.
Track list
1. A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu
2. Admirável Gado Novo
3. Falas Do Povo
4. Beira-Mar
5. Garoto De Aluguel (Taxi Boy)
6. Pelo Vinho E Pelo Pão
7. Mote Das Amplidões
8. Jardim Das Acácias
9. Agônico
10. Frevo Mulher
Tracklist
1. A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu
2. Admirável Gado Novo
3. Falas Do Povo
4. Beira-Mar
5. Garoto De Aluguel (Taxi Boy)
6. Pelo Vinho E Pelo Pão
7. Mote Das Amplidões
8. Jardim Das Acácias
9. Agônico
10. Frevo Mulher
Costumo dizer que depois que o grandioso Nelson Gonçalves (RIP) nos deixou, o Zé Ramalho continua com o status de o único “verdadeiro rei da música brasileira” ainda vivo hoje (e não ponho o Roberto Carlos nessa história, já que ele nunca foi “Rei” de nada, por mais eu goste de sua obra). Agora falando do álbum em questão, considero este um dos melhores de sua carreira e um ponto de partida certo para se começar a ouvir a obra do paraibano (esqueçam o primeiro de 1978, aquele que tem “Avohai”).
Quem ouve este disco de 1979 dele tem a sensação de estar ouvindo uma pequena coletânea de seus grandes sucessos: aqui tem “Admirável Gado Novo”, “Frevo Mulher”, “Beira Mar”, “Garoto de Aluguel”, “Jardim das Acácias”, “Pelo Vinho e Pelo Pão” (gravada primeiramente por Fagner um ano antes e aqui regravada pelo próprio autor em parceria com sua então esposa Amelinha), além da faixa-título que abre o álbum com um ritmo tipicamente nordestino acompanhado por uma letra crítica e muito bem elaborada. Em resumo: este é, seguramente, um dos maiores álbuns da MPB em todos os tempos. Simplesmente isso! Grande homenagem do patrão Mairon!
Obrigado pelo comentário meu caro Igor. Abraços
Valeu, caro patrão… Abraços pra ti também!
Como esquecer o disco de 1978, meu caro? Lá estão “Vila do Sossego” e “Chão de giz”, que, junto a “Beira-mar”, formam a trinca que me faz acreditar que Zé Ramalho entra no rol dos gigantes da música brasileira.
Meu caro amigo Chico (que não é o Buarque), é o seguinte: não acho que o primeiro disco do Zé Ramalho seja um item essencial para o ouvinte mais novo conhecer e se aprofundar na sua obra porque não tenho tanto apreço pelo mesmo. Talvez porque eu não gosto de algumas das canções em suas gravações originais registradas, como as duas que o senhor citou e a que eu citei acima antes. Mas este disco tem algumas canções que eu até gosto dentro do repertório do artista como “Meninas de Albarã”, “Adeus Segunda Feira Cinzenta” que traz a citação do refrão de “Espelho Cristalino” do Alceu Valença (não creditado no encarte), e “A Dança das Borboletas” da qual prefiro a versão que o Zé gravou com o Sepultura (que entrou no filme Lisbela e o Prisioneiro, de 2003).
Enfim, meu caro… Acho melhor começar com este segundo LP de 1979 aqui analisado, porque foi onde o paraibano se consagrou definitivamente como um dos maiores nomes e como um dos 4 “Reis” da MPB ao lado do já citado Nelson Gonçalves, o seu xará Chico Buarque e Roberto Carlos (quando ele ainda prestava nessa época). Isso sim!
Entendo o seu ponto. De fato, “A peleja…” é um disco superior ao que tem “Avohai”. O meu favorito, no entanto, é “A terceira lâmina”.
Também gosto muito da Terceira Lâmina, que veio dois anos depois do álbum em questão analisado, e que foi outro grande sucesso na trajetória do Zé Ramalho, trazendo mais um punhado de hits clássicos, só para citar alguns, não importa com que versão for: a faixa-título, “Canção Agalopada”, “Galope Rasante”, e “Ave de Prata”. Que bom saber que o senhor tem este álbum como o seu favorito na discografia do artista, mas o meu favorito mesmo é o sucessor Força Verde, de 1982. Esse sim, foi o ápice da carreira dele em todos os sentidos. Um disco tão grandioso quanto A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu e A Terceira Lãmina, tudo junto!
E sobre Orquidea Negra? É um belo disco em minha opinião, mas meio que uma “ovelha negra” dentre esses cinco primeiros. Concordam?
Orquídea Negra é um bom disco, não traz tantos hits clássicos como os anteriores (a única exceção disso é “Kryptônia”), mas acho que foi neste disco onde o nível do artista começou a baixar aos poucos devido aos problemas pessoais e também ao envolvimento pesado com as drogas que ele vivia nessa época…