Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte I]

Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte I]

Por Marcello Zapelini

Robert Allen Zimmerman nasceu de pais judeus e foi educado nessa fé. A primeira vez que renegou suas origens judaicas foi quando mudou de nome, adotando como sobrenome o prenome do poeta irlandês Dylan Thomas. Bob Dylan começou a gravar nos anos 60, surpreendendo o mundo da música popular com letras profundamente reflexivas, não apenas de protesto político, mas também pessoais e altamente simbólicas. Num quadro como esse, não chega a causar espanto que não faltem referências religiosas em suas músicas, embora não fossem constantes na sua obra – até 1979. Nesse ano, Dylan surpreendeu seus fãs e críticos ao anunciar que se converteu ao cristianismo e, mais do que isso, ao gravar discos inspirados na sua nova fé e ao fazer dessas novas músicas a base das suas turnês entre 1979 e 1980. A “fase cristã” de Bob Dylan rendeu três álbuns, Slow Train Coming, Saved e Shot of Love – e seria revisitada no 13º volume da sua coleção Bootleg Series, intitulado Trouble No More e, mais recentemente, no 16º, Springtime in New York, já que os dois primeiros CDs trazem músicas registradas entre 1980 e 1981.

Dylan já tinha sido severamente criticado antes (como esquecer o desprezo quase universal a Self Portrait?), bem como sofrera vaias durante a turnê de 1966 e o show eletrificado no festival de Newport. Mas desde Desire vinha recebendo críticas mais negativas do que positivas pelo seu trabalho. A segunda metade da década de 70 estava sendo complicada para o bardo de Minnesota: após a boa recepção de público e crítica por Blood on the Tracks e Desire, o disco ao vivo Hard Rain foi bastante hostilizado em 1976 (até porque a primeira etapa da turnê Rolling Thunder Revue tinha sido muito elogiada, e o LP foi registrado na segunda); Street-Legal, embora tenha sido comercialmente bem-sucedido, também não gozou de grande apoio da crítica em 1978. Para completar, Bob Dylan at Budokan, também de 1978, também recebeu críticas virulentas, especialmente por causa dos arranjos empregados nos clássicos.

E quanto ao artista? Bob Spitz afirma que, durante a Rolling Thunder Revue, o guitarrista T-Bone Burnett, cristão fundamentalista, teria influenciado o cantor. Posteriormente, o filme Renaldo e Clara, lançado em 1977, fracassou, e Bob viu o fim do casamento com sua musa Sarah Lowndes (“Sad-Eyed Lady of the Lowlands”, percebem?), depois de um longo período de problemas conjugais, em que ela o acusou de agressão e de trazer uma mulher estranha para a mansão do casal. De acordo com o biógrafo Howard Sounes, Dylan alternava períodos de depressão e de falsa alegria, além de ter que pagar uma quantia elevada para a ex-mulher, calculada não somente sobre as propriedades físicas, mas também sobre os direitos autorais das músicas compostas e gravadas entre 1965 e 1977.

Para completar, a custódia dos filhos do casal rendeu outro processo difícil e penoso. Entretanto, numa entrevista a Robert Hillburn, do jornal Los Angeles Times, em 1980 (disponível no livro Bob Dylan: The Essential Interviews, editado por Jonathan Cott), Bob afirmou que ele se sentia bem, e que sua conversão não foi um ato de desespero. A turnê de 1978 foi difícil, alternando bons e maus shows; At Budokan, gravado no começo da turnê, quando a banda não tinha ainda se integrado bem, foi pesadamente criticado, e os shows posteriormente mesclavam bons e maus momentos. Para piorar, Dylan tentou modificar os arranjos das músicas antigas, e se deu mal em várias delas, o que alienou até os fãs mais fiéis (“Don’t Think Twice, It’s Alright” como reggae chega a ser um insulto). Alguns dos músicos que o acompanhavam nessa turnê eram cristãos, e Helena Springs, uma das vocalistas, encorajava-o a orar para diminuir sua angústia. A cantora, aliás, tornou-se parceira de Bob em várias composições (como, por exemplo, “If I Don’t Be There By Morning”, registrada por Eric Clapton), além de se tornar sua namorada; más línguas diziam que a moça fora contratada mais por sua beleza física do que propriamente pelo talento vocal. Tudo isso contribuiu para complicar a situação!

De acordo com o próprio Dylan, durante um show em San Diego, no final de 1978, um fã atirou alguma coisa no palco, e ele a pegou e guardou no bolso sem ver o que era; mais tarde, percebeu que era um crucifixo. Então, conforme sua narrativa, ele teve uma experiência impressionante; ele sentiu Jesus Cristo em seu quarto de hotel, que teria lhe perguntado “por que você resiste a mim?”. Bob teria respondido que não resistia a Jesus, que então lhe questionou por que ele não o seguia. Como tudo na vida de Bob Dylan, ninguém jamais saberá se o episódio é verdadeiro ou não. Mas foi o suficiente para que ele compusesse Slow Train Coming (que, como observou o dylanológo Clinton Heylin, é uma pregação que não alude à Bíblia), que estrearia no soundcheck do show de 2/12/78, e se tornasse cristão, recebendo o batismo em 1979 (o processo da conversão é detalhado no capítulo 30 do livro Bob Dylan: A Biography, de Bob Spitz). E o primeiro fruto dessa conversão foi seu melhor disco em cinco anos.


Slow Train Coming (1979)

Para este disco, gravado no Muscle Shoals do Alabama, Jerry Wexler, um dos proprietários do estúdio e coprodutor, sugeriu a participação de Mark Knopfler. Além do guitarrista, outro integrante do Dire Straits se faz presente, o baterista Pick Withers. Veteranos do Muscle Shoals, o tecladista Barry Beckett (coprodutor) e a seção de metais da casa brilham nas novas composições. O lendário Jerry Wexler coproduziu o disco, e posteriormente afirmou que Bob tentava convertê-lo também! A banda inclui também o excelente baixista Tim Drummond e o percussionista Mickey Buckins. Carolyn Dennis, Regina Havis e Helena Springs conferem o clima gospel nos backing vocals. O disco como um todo é muito bom, abrindo com “Gotta Serve Somebody”, uma das músicas mais famosas – e a mais tocada ao vivo – dessa fase, cuja letra alude até ao sucesso “Hurricane”; ela rendeu-lhe o primeiro Grammy da carreira. Após a alegre “Precious Angel”, Dylan arrepia com “I Believe in You”, com um solo de Mark Knopfler, memorável por sua sutileza, emendando com a excelente faixa título.

O lado B abre com a pesada “Gonna Change My Way of Thinking”, e segue com a segunda composição cristã de Bob (de acordo com Clinton Heylin), “Do Right to me, Baby (Do Unto Others)”, uma música que só mostrou seu potencial ao vivo (como mostram as versões na box “Trouble No More”), bem como “When You Gonna Wake Up”, três músicas que exploram a veia roqueira de Dylan, dando uma desacelerada na divertida “Man Gave Names to All the Animals”, um reggae relaxado e inofensivo (particularmente, minha música menos favorita do álbum) que entrou no álbum porque o filho da vocalista Regina Havis gostou dela, e termina com “When He Returns”, seu momento mais tocante como cantor em todo o disco.

O álbum foi bem recebido pela crítica (Jann Wenner, na Rolling Stone, simplesmente derramou elogios ao LP) e vendeu muito bem (recebeu o disco de platina), atingindo o 2º posto na Inglaterra e o 3º na parada da Billboard, e foi promovido numa turnê em que Dylan se recusou a tocar suas músicas antigas, mesmo que, de acordo com Howard Sounes, um pastor o tenha tranquilizado afirmando que suas músicas antigas não ofendiam Deus. O fato de não haver nenhum dos hits e a pregação de Bob entre as músicas alienaram muitos fãs, que simplesmente se recusaram a assistir os shows. Entretanto, Clinton Heylin afirmou que os relatos de “centenas” de pessoas abandonando os shows eram exagerados. Pior para eles, deve ter pensado o bardo; em 1984, numa entrevista a Kurt Loder (também disponível no livro de Jonathan Cott), ele admitiu que não se importava com o fato de tocar nos mesmos lugares e atrair metade do público que tivera na turnê de 1978.


Saved (1980)
Este é considerado como um verdadeiro catecismo cristão, e foi recebido com um misto de elogios e críticas pesadas – ainda que tenha passado por um verdadeiro renascimento (sem ironia) nos últimos anos. Como o disco anterior, as músicas têm arranjos gospel, e as letras vão ainda mais fundo nos valores cristãos, o que desagradou uma parte da crítica. Quanto à banda… Costumo dizer que essa é uma daquelas que nem Deus de bom humor faria melhor: Fred Tackett (guitarra), Tim Drummond (baixo) e Jim Keltner (bateria) são o núcleo, com Spooner Oldham e Terry Young nos teclados e os backing vocals de Regina Havis, Carolyn Dennis, Monalisa Young e da fantástica Clydie King. Esses músicos tinham acompanhado Bob na turnê de Slow Train Coming, em que os shows começavam com um monólogo religioso de Regina Havis, seguiam com seis canções gospel com as cantoras se alternando no vocal principal, acompanhadas de Terry Young (um excelente cantor por si mesmo), com Dylan entrando em “Gotta Serve Somebody”. Todas as composições originais de Saved foram tocadas nessa turnê antes de serem gravadas em estúdio – a única vez em que isso ocorreu em toda a longa carreira de Bob.

A grande pergunta é: o disco é bom? Sem dúvida; a curta “A Satisfied Mind” (de Red Hayes e Jack Rhodes, um violinista e um compositor/produtor de country) abre o disco colocando em primeiro plano os vocais de Dylan e suas cantoras, e segue a todo vapor com a faixa-título (composta em parceria com Tim Drummond, ironicamente o único músico não-religioso da banda), com o lick de guitarra mais memorável numa música dele desde “I Want You”, bem como um trabalho sensacional de piano. “Covenant Woman” vem a seguir – particularmente, aprecio mais esta versão de estúdio do que as gravações ao vivo, pois os vocais de Dylan soam melhor aqui. “What Can I Do For You” é uma bela balada tornada ainda mais atraente por um solo de harmônica – algo relativamente raro nos álbuns da trilogia cristã. Fred Tackett brilha na paulada “Solid Rock”, primeira música da fase cristã que me chamou a atenção, quando adquiri “Biograph” no começo dos anos 90. Nos shows, Dylan a antecedia com um monólogo em que falava do fim do mundo e da necessidade de se amparar numa fundação de rocha sólida – Jesus Cristo.

O lado B abre com “Pressing On”, em que os vocais e os teclados se unem para uma das mais bonitas composições de Dylan de todos os tempos. “In the Garden” é tensa e vai se construindo lentamente, puxada pelo órgão de Spooner Oldham, levando a “Saving Grace”, outra balada gospel com destaque para os teclados, e o álbum conclui com a bluesy “Are You Ready”, outra música que mostra o alto nível da banda que acompanhava Bob nessa fase. Vale lembrar que Bob Dylan tinha “In the Garden” em alta consideração, tanto que afirmou mais de uma vez que ela deveria ser tema da Anistia Internacional; esta música foi tocada em vários shows importantes ao longo dos anos, indicando que o cantor realmente a via como especial.

Eventualmente, Saved teve sua capa alterada: a pintura de Dylan no palco que aparece no encarte do LP original acabou sendo colocada na capa no lugar do dedo de Deus iluminando os fiéis; mais recentemente, a arte original foi restaurada. O álbum atingiu o 3º lugar na Inglaterra, mas fracassou nos EUA, alcançando apenas o 24º posto; Dylan não recebeu um disco de ouro nos EUA pela primeira vez desde seu primeiro álbum. Além disso, apesar do alto nível dos shows, com a banda e Dylan dando o melhor de si a cada apresentação, a turnê foi um fracasso relativo de público, o que fez dela a última inteiramente dedicada às músicas gospel – os shows seguintes trariam de volta os clássicos do repertório dylanesco de volta, como veremos em duas semanas.

4 comentários sobre “Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte I]

  1. Essa fase do Dylan é muito interessante. Tem várias músicas ótimas, e outras excelentes. “Gotta Serve Somebody” e “Slow Train Coming” foram algumas das primeiras músicas dessa fase que ouvi, através do desprezado Dylan & Dead, que acho um belo disco, e aqui vai minha pergunta ao Marcello, você dizer por que 9 anos depois, e mesmo tendo se afastado dessa ‘fase cristã’, o que levou Dylan a interpretar as mesmas na tour com o Dead?

    No aguardo da segunda parte, valeu Marcello

  2. Obrigado pelo comentário, Mairon! Coincidentemente eu também tive meu primeiro contato com essas músicas que você citou no “Dylan & The Dead”. Eu pensava que era o único que gostava desse álbum e dos discos cristãos do bardo – ainda bem que não estou sozinho, hehehehe. “Slow Train Coming” foi um pedido específico de Jerry Garcia a Dylan: em novembro de 1980, Garcia participou de um show de Dylan e gostou muito de tocá-la, por isso pediu que fosse incluída. De acordo com Howard Weiner, “Gotta Serve Somebody” surgiu nas listas feitas pelos integrantes do Dead e entregues a Dylan como potenciais músicas do setlist, mas não sei exatamente quem pediu.

  3. Slow Train Coming se tornou meu segundo álbum favorito do Dylan nos anos 70 (o primeiro é Desire) e parte da minha “trilogia” preferida dele, junto com o citado Desire e o Blood on the Tracks. Meu Deus, que primor de álbum, que não entrou na lista dos melhores de 1979 aqui da Consultoria… Por mim, merecia ter entrado sim!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.