W. A. S. P. – The Crimson Idol [1992]

W. A. S. P. – The Crimson Idol [1992]

Por Mairon Machado

Um dos grandes discos da história do rock no início dos anos 90 veio de um momento inesperado. The Crimson Idol, quinto álbum dee estúdio do W. A. S. P. (We Are Sexual Perverts), surgiu justamente quando o grupo, liderado pelo vocalista, baixista, tecladista e guitarrista, além de compositor Blackie Lawless, perdia sua maior referência nas guitarras, Chris Holmes. Os fãs ficaram em choque com a saída de Holmes (à época), que estava insatisfeito com os caminhos “mais sérios” que a música do grupo estava tomando a partir do excelente The Headless Children (1989), disco que mudou totalmente a sonoridade festiva e provocativa dos três primeiros discos do grupo (a saber W. A. S. P. de 1984, The Last Command de 1985 e Inside the Electric Circus, de 1987, além do ao vivo Live … In the Raw, de 1987). Além disso, o relacionamento de Holmes com a nova namorada, Lita Ford, bateu de frente com a linha dedicada que Lawless estava cobrando de sua banda.

Resultado, o W. A. S. P. desmoronou em 1990, e assim, Lawless decidiu viajar o mundo para começar uma carreira solo. Porém, a pressão da gravadora Capitol (e também dos fãs), fez com que o músico voltasse com a ideia de continuar com o W. A. S. P.. Assim, ao lado de Bob Kulick (guitarras) e Frankie Banalli (bateria), além de Doug Aldrich (guitarra em “Arena of Pleasure”, não creditado no álbum) e Stet Howland (bateria), Lawless colocou nos sulcos de vinis e CDs aquela que por muitos é considerada ainda hoje como sua obra-prima.

Lawless (esquerda) e Bob Kulick (direita) na época de gravação de The Crimson Idol

Foram três anos investindo na criação deste álbum conceitual, uma ópera-rock que narra a história de ascensão e queda de Jonathan Aaron Steele, um rock star que viveu do sexo, das drogas, e que se perde em um mundo de famas, muito por conta de seus traumas do passado, onde sonhava pelo amor dos pais. Muitos acharam que era uma espécie de autobiografia de Lawless, outros compararam a história como uma adaptação à Tommy (do The Who, banda que inspirou muito Lawless), mas o fato é que The Crimson Idol é um disco magnífico, com composições únicas e poderosas, empregando ainda a teatralidade que consagrou o grupo nos anos 80. Lançado em 8 de junho de 1992, completando portanto 30 anos em 2022, é sem dúvidas um dos grandes discos conceituais da história.

É fundamental começar com o encarte de The Crimson Idol. Nos agradecimentos, Lawless já mostra sua devoção à Pete Townshend, onde afirma que Townshend “exorcisou um grande demônio em mim, encorajou, inspirou, e deu a convicção para criar o disco. Ele é meu mentor e espero que esteja orgulhoso de mim“. Essa inspiração será sentida ao longo do disco, tanto pela história, que por vezes lembra Tommy, quanto pela performance assombrosa da bateria, muito influenciada pelas endiabradas performances de Keith Moon. No mesmo encarte, e após mais diversos agradecimentos, há um longo texto chamado Narração, que conta a história de Jonathan Aaron Steel, de um ponto de vista autobiográfico.

O texto narrando a história de Jonathan Aaron Steel, retirado do encarte da edição em vinil brasileira

Havia pensado em traduzir esse texto, mas preferi colocar o mesmo em formato de imagem (acima), e resumir a história. Filho de uma família de classe média, composta pelos pais William (Big Red) e Elizabeth Steel, fervorosos religiosos, e o irmão mais velho Michael (Little Red), Jonathan percebeu desde pequeno que não era o preferido de seus pais, considerando-se a ovelha negra da família, constatando que o vermelho e o preto não se misturavam. Agressões eram constantes, e apesar da dor desta violência, Jonathan amava o pai e o irmão. Os irmãos eram diferentes como o dia e a noite, o que fazia com que Jonathan pensasse que fosse filho de pais diferentes, mas mesmo assim, eram muito próximos. Foi Michael quem encorajou Jonathan em sua vida, contando que quando ele nasceu, um anjo voou sobre a cama do bebê e com uma varinha mágica disse: “Você é o cara!”, o que Jonathan só foi entender a medida que foi crescendo. Além disso, Jonathan ficava horas diante do espelho, perguntando-se por que aquilo acontecia, buscando o que estava errado com ele.

A relação com a mãe também era difícil, já que ela era teimosa, má-educada, preconceituosa e arrogante. Mas Jonathan admirava sua beleza, e as mulheres que teve quando adulto sempre foram o oposto da sua mãe. Durante a juventude, o garoto passa a lidar com depressão, medo, ódio e raiva, as “Quatro Portas das Perdição” que se tornam a força orientadora e controladora da vida de Jonathan. No aniversário de 14 anos, a vida de Jonathan muda totalmente. Michael é morto em um acidente de carro por um caminhoneiro bêbado. Em choque, Jonathan acaba não participando do funeral, e isso irá abalá-lo profundamente a partir de então, passando a viver mais na rua do que no “inferno” de sua casa. Na rua, descobre o sexo, o álcool e as drogas. Uma vida excitante, maravilhosamente perigosa, que ele não conhecia. Nesse mundo, em determinado dia, já com 15 anos, bêbado, Jonathan acaba pasando em frente à uma loja de músicas, onde depara-se com uma linda guitarra vermelha carmesim (Crimson Red, como o pai), que se torna seu instrumento de paixão e obsessão.

O jovem Jonathan diante do espelho (irmão Michael ao fundo)

Ele rouba a guitarra, e com o instrumento e a música, o menino encontrou a fuga para suas dores. Com 16 anos, e cansado do lema “viva, trabalhe e morra” dos pais, Jonathan fugiu de casa em busca do sucesso. Na cidade grande, a “Arena dos Prazeres” ofereceu à ele o contato com Charlie “The Chainsaw”, um ex-advogado que tornou-se presidente de uma das maiores companhias de gravação do mundo. Tempos depois, Lawless afirmou que esse personagem era uma alusão ao dono da Capitol Records. O lema do personagem era que o necrotério (Morgue em inglês) era o mundo da música, onde todos se vendem. Charlie apresentou o mundo da música de uma maneira que Jonathan nunca havia visto, e também Alex Rodman, um jovem empresário, que se torna seu novo mentor.

Dias antes de Jonathan lançar seu primeiro álbum, uma cigana surge na vida do rapaz. Ela lê nas mãos dele todo seu passado de dor com a família, o presente de sucesso que o aguardava, e pára antes de contar sobre o futuro. Ao contrário da fama e riqueza desejada pelo agora artista, a cigana vê um herói caído, e avisa que Jonathan deve tomar cuidado com seus desejos (algo que Lawless afirmou durante o lançamento e promoção do álbum, em diversas entrevistas, ser a principal mensagem de The Crimson Idol, ou seja, pense bem naquilo que você deseja, pois às vezes isso irá se tornar real, e não será bom). Aquilo assombrou Jonathan, que clamou por ser “o ídolo de milhões de olhos”. O sucesso chegou à vida do jovem, e quanto mais discos foram vendidos, mais excessos surgiam – amigos, mulheres, dinheiro, carros, casas. Em um dos seus devaneiros com o sucesso, ele acaba voltando a ver um velho amigo, através do traficante The Doctor Rockter, que lhe coloca novamente diante do espelho, mas agora o espelho onde Jonathan consome cocaína e outras drogas, vivendo em um mundo atípico.

Jonathan e a cigana

No auge da carreira, o ídolo, The Great Crimson Idol, tem tudo o que quer, menos o que sempre quis de verdade, a aceitação de seus pais, os quais ele não via desde que tinha fugido. Cada vez mais afundado nas drogas, Jonathan é encontrado por Alex durante uma festa em sua casa. Alex acaba com tudo, se afasta de Jonathan e o larga na berlinda. Só e refletindo durante seu momento de “chapação”, Jonathan resolve ligar para casa, com esperança de que, após ter chegado à fama, ao sucesso, os pais iriam finalmente aceitá-lo. Mas a mãe foi fria, trocando poucas palavras, sendo as últimas “não temos nenhum filho“. A grande estrela, o ídolo, caía em autodestruição, e o grande final então chega, ficando para o fã acompanhar a uma hora de audição e entender o que irá acontecer com Jonathan.

Aqui encerra-se a Narração, que no relançamento em CD de 1998, surge como uma faixa-bônus intitulada “The Story Of Jonathan (Prologue To The Crimson Idol)”, a qual é a mesma narração do texto do encarte, e também virou um vídeo/filme que auxilia na compreensão da história (algumas imagens acima). Apesar de eu ter alguns pés atrás com o enredo de The Crimson Idol, e com citações bem inspiradas em Tommy (a cigana, o espelho, o doutor, entre outros), é através da combinação das letras e músicas criadas pelo genial cérebro de Lawless que tudo fará sentido. A história de Jonathan é uma tragédia de um garoto que nunca teve amor, um abraço, um carinho, e que perdeu-se em um mundo cruel, o mundo da música. A tradução que fiz na narração, e que farei sobre as letras das canções, é livre, podendo ter outras interpretações. Caso você leitor discorde dessa interpretação, é só comentar. Vamos ao álbum!

Blackie Lawless, o gênio criador de The Crimson Idol

The Crimson Idol abre com “The Titanic Overture”. O dedilhado da guitarra ao fundo nos traz a voz de Jonathan: “I look at my face in the mirror and I don’t understand. Don’t feel like a boy and it’s not getting clearer, but I don’t feel like a man” (“Olho minha face no espelho e não entendo. Não me sinto como um garoto, mas não está claro, eu não me sinto um homem”). Teclados e violões passam a dar ritmo para a faixa, deixando apenas o violão entoando uma sequência de acordes que irá surgir diversas vezes ao longo do álbum. Bateria e baixo surgem com muito peso, e é impressionante já de imediato a potência e velocidade que a bateria entrega. Então, começa a pancadaria, com a guitarra mandando ver na sequência de acordes junto com o teclado, e o pau pegando na bateria. Essa faixa é incrível, com um instrumental fantástico. Os teclados brilham, os riffs da guitarra apresentam o que virá na obra, e a bateria é avassaladora. Voltam então os dedilhados, e Jonathan é agora um jovem. “I’m seventeen and I’m somebody’s son. My dad don’t know where I stand cause when he looks at me, he don’t like what he sees. He don’t know what I am” (“Tenho 17 e sou filho de alguém. Meu pai não sabe onde eu estou, por que quando ele me olha, ele não gosta do que vê. Ele não sabe quem eu sou”).

“The Invisible Boy” vem na sequência. Somos apresentados musicalmente então à Jonathan, o garoto indesejado, irmão do filho querido, do qual Jonathan falecia nas sombras. A angústia se torna mais clara no refrão, onde ele suplica ao pai: “Red, Crimson Red, am I the Invisible Boy?” (“Red, Crimson Red, eu sou o garoto invisível?”), relata as agressões: “Feel the strap, cross my back” (sinto a cinta atravessando as minhas costas), pergunta: “The orphan son you would never need?” (“Sou o filho órfão que você nunca necessitou?”) e afirma: “I’m the boy only the mirror sees” (“sou o garoto que apenas o espelho vê”), relatando as dores, a sensação de injustiça, suas ilusões e pensamentos diante do espelho, de onde ele se enxerga como uma vergonha.

Jonathan sendo agredido pelo pai. As marcas da cinta nas costas

A música aqui é mais pancadaria. O riffzão da guitarra e do baixo, e a quebradeira Mooniana da bateria, são a base para Lawless rasgar sua voz cantando as frases acima. Os efeitos sonoros da cinta enquanto Jonathan sente ela nas costas, são sentindos em nossos ouvidos, e o refrão é matador. Sonzeira pegando nas caixas de som, com muita velocidade e fúria, e é apenas o início desta obra-prima sensacional. Aliás, Lawless também faz muito bem o casamento entre o que a história está contando e a harmonia musical, sendo que a mudança que ocorre no disco, da fúria para o desespero de Jonatan, é algo mais do que fantasticamente impressionante, e digno de ser estudada. A interpretação vocal dele, fazendo as vozes de Jonathan e do espelho, é muito legal, e o solo de Kulick aqui é animalesco. Baita faixa, que encerra com o pensamento de Jonathan: “Some people never go crazy. What truly boring lives they must lead. Is there no love to shelter me? Only love, love sets me free” (“Algumas pessoas nunca enlouquecem, que vida verdadeiramente chata devem viver. Não há amor para me abrigar? Somente o amor me libertará”). É a apresentação da frase mais emblemática de The Crimson Idol, que também me remete um pouco ao Tommy (as repetições de “See Me, Feel Me, Touch Me, Heal Me” ao longo daquele disco tem uma certa similaridade aqui), revelando a dor de Jonathan por não ser amado. Apenas o violão faz a tal sequência de acordes citada anteriormente, e podemos sentir a dor de Jonathan através da magnífica interpretação de Lawless.

“Arena of Pleasure” apresenta Jonathan fugindo de casa e descobrindo as aventuras e prazeres da noite. Com dezessete anos, ele foge do pesadelo de sua vida na “terra prometida”, onde viveu com fogo e raiva nos olhos. “Mama, I’m running for my life … I’m outta here” (“Mamãe, estou correndo por minha vida … estou aqui fora”) são os desabafos de Jonathan à mãe, e agora, ele decide não desperdiçar suas lágrimas pelos anos perdidos. Irá viver um novo mundo, como uma estrela do Rock. É uma faixa pesadíssima, começando com o riff da guitarra, trazendo a voz sussurrante de Lawless. Os teclados são marcantes, e o ritmo é forte, estourando no refrão. Outra grande faixa com instrumental e interpretação impecáveis. Os gritos de Lawless fazendo os desabafos de Jonathan e demonstrando sua raiva, são arrepiantes, e claro, a performance de Kulick na guitarra é mais uma vez animalesca.

Frankie Banalli (esquerda) e Lawless (direita)

O triste dedilhado do violão introduz o ouvinte a “Chainsaw Charlie”, e o contato de Jonathan com a realidade das gravadoras. O barulho da moto-serra abre mais uma pancada. Vamos a história. Sedutoramente, Charlie conquista Jonathan: “Here’s your deal, will you gamble your life? … It’s is the one you’ve waited for all your life” (“Aqui está o seu contrato, você irá apostar com a sua vida? …. Aqui está aquilo que você esperou por toda a sua vida”). Fascinado, Jonathan aceita o contrato, pois “It feed my hunger … I’ll will my throne away, to a virgin heir and Charlie’s slave” (“Isso alimenta minha fome … irei tirar meu trono, para um herdeiro virgem e escravo de Charlie”). Então, Jonathan entra no mundo de Charlie, um mundo onde “He’ll make ya scream for the cash machine down in Chainsaw Charlie’s Morgue” (“Ele irá fazer ouvir os gritos da máquina da fama debaixo do necrotério de Charlie Motosserra”).

Single de “Chainsaw Charlie (Murders in the New Morgue)”. Versão 7″ Picture Disc. Uma das três partes de um pacote especial sobre a canção (VER TEXTO).

O novo pupilo é incentivado a ser um grande guitarrista: “Strap on your sixstring and feed our machine” (“toque suas seis cordas e alimente nossa máquina”). A voracidade de Charlie torna-se agressiva. “Welcome to the morgue boy, where the music comes to die, … I’ll cut you throat just to stay alive” (“Bem-vindo ao necrotério, garoto, onde a música morre … Eu vou cortar sua garganta, apenas para permanecer vivo”) e segue “I’m the president of showbiz … the new morgue’s our factory, to grease your lies, our machine is hungry, it needs your life … I’ve never had a heart but I’ll make you a star” (“Eu sou o presidente do showbizz … o novo necrotério é a nossa fábrica, que engraxa nossas mentiras, nossa máquina está faminta, ela precisa de sua vida … nunca tive coração, mas irei fazê-lo uma estrela”).

É um desabafo forte de Lawless em relação às gravadoras. Eis aqui, uma das maiores canções da história do W.A.S.P., sem sombra de dúvidas. Pancada forte no estômago das gravadoras, e nos ouvidos dos fãs. A genialidade está principalmente nas variações que a música possui para ilustrar cada um dos personagens. Charlie é representado por um instrumental e vocal velozes, realmente agressivos como o personagem da história, enquanto Jonathan surge com uma melodia mais afável, inocente, de um garoto maravilhado pelas novas descobertas e pela possibilidade da fama, inclusive com acordes longos, sem muita velocidade.

Outro single do mesmo pacote (VER TEXTO). Essa é a versão 7″, com mensagem gravada por Lawless no selo do vinil

O refrão dessa canção talvez seja um dos mais conhecidos da carreira do W. A. S. P. (ao lado claro de “I Wanna Be Somebody”), e é impossível não balançar a cabeça e rasgar a voz cantando “Murders, murders in the New Morgue“. O momento em que Charlie dá as boas vindas ao garoto é assustadoramente assustador. A voz de Lawless está muito endiabrada, e o solo de Kulick, veloz e carregado de alavancas, é fantástico. A virada que a canção dá então faz de “Chainsaw Charlie” um épico. Velocidade e pancadaria para qualquer admirador de Metal abrir um sorriso enorme na face. O encerramento já é com o público nas mãos de Jonathan, entre as explosões de fogos e a plateia entoando os “o o o o o” que emulam a melodia do refrão da canção. Perfeito!! Mais uma faixa incrível!!

E eis que surge a cigana que irá ler seu futuro. O lado A entra em sua reta final com “The Gipsy Meets The Boy”. A personagem me remete a Acid Queen de Tommy (The Who), tanto que na letra da canção ela surge como The Gypsy Queen. Mas esta cigana tem um contexto mais forte em relação ao personagem central de The Crimson Idol do que a de Tommy. Ela diz para Jonathan “Be careful what you wish, cause it may come true” (“Cuidado com o que você deseja, por que poderá tornar-se realidade”). Jonathan vê o Ídolo Carmesim voar alto, mas então cair mais rapidamente ainda. Mesmo assim, ele implora à cigana que “I Just wanna be the Crimson Idol of a million eyes” (“Eu apenas quero ser o Ídolo Carmesim de milhões de olhos”).

O dedilhado do violão e os teclados são a base para o momento de revelação da cigana para Jonathan. Os quatro acordes voltam a aparecer, em uma faixa suave, onde a voz sussurrada de Lawless mostra sua conversa com a cigana, passando por mais um momento tenso. A canção ganha peso e resgata os acordes anteriores, e então, Jonathan revela seu desejo de ser o ídolo de milhões de olhos.

O single de “Charlie Chainsaw” com a mensagem gravada por Lawless (VER TEXTO)

Isso nos leva ao fim do lado A com “Doctor Rockter”. “He’s the king of sting, Mr. Morphine” (“Ele é o rei da picada, o Senhor Morfina”) o cara que “I’ll help son but ya gotta buy this time” (“Eu irei ajudá-lo filho mas você precisa comprar desta vez”). E Jonathan se afunda nas drogas. M. D., cocaína, codeína, 714 (a famosa Lemmon 714) são alguns dos materiais que Docktor Rockter entrega à Jonathan, que usa-as sobre “the mirror … that’s on the table feeding me little white eyes” (“o espelho … está sobre a mesa alimentando meus pequenos olhos brancos”). Uma faixa pulsante e pesadíssima, que traz lembranças de clássicos como “Animal” e “Wild Child”. Outro refrão magnífico, mais uma performance incrível da bateria, mais um solo matador de Kulick, e os teclados brilhando entre a pancadaria que come solta. E assim é concluída a primeira meia hora (sim, colocaram 28 minutos e quarenta e seis segundos em um lado do vinil) da ópera rock.

O single de “I Am One”

Vamos ao avassalador e tenso lado B. Enquanto a genialidade conturbada de Jonathan era construída no lado A, é agora que a coisa irá chegar no seu ápice, e também cair vertiginosamente. Estamos em “I Am One”, uma das melhores canções do grupo. “I’ve become the one” (“eu me tornei o cara”). A frase do irmão Michael torna-se real. Jonathan vira o ídolo de multidões, como apresentado logo no início da canção, onde o mundo está aos pés do artista. “Hello, New York City! Hello, Dallas! Hello Los Angeles, California! Tokyo! Paris! Rome! Chicago! Rio de Janeiro!“, e, tantas outras cidades, são anunciadas! Os “o o o o o o o” da plateia (que irão aparecer no refrão da canção) são entoados a plenos pulmões “pelos fãs”, e segue a pancadaria na linha do que havíamos ouvido no início do lado A.

A fama chega para um jovem de apenas 18 anos, que ainda não consegue esquecer o passado.”Long live to King of Mercy … Oh I am one, love I am one, I got something to prove and nothing to lose” (“Longa vida ao Rei da Misericórdia … Oh eu sou o cara, amor eu sou o cara, eu tenho algo a provar e nada a perder”). Jonathan está afundado no ego de excessos e na cegueira do vício. Ele lembra da mãe “Mama, look what I’ve become” (“mamãe, veja o que me tornei”), e das dores de cada ano que se passa “18 bloody roses, each year that bleed my soul” (“18 rosas sangrentas, cada ano que sangra minha alma”). Durante as crises das drogas, ele começa a ver seu futuro “Will he take me down to the gallows and kill the boy inside the man” (“Será que ele me levará para a forca, e matará o menino dentro do homem?”). A amargura de Jonathan aumenta quando ele percebe que “I don’t see my face in the mirror any more why am I the chosen one” (“eu não vejo mais minha face no espelho, por que eu sou o cara?”), ao mesmo tempo que ele se auto-declara “I’m the crimson man … long live the king of mercy” (“eu sou o homem carmesim … longa vida ao rei da misericórida”).

A música é veloz, nos mesmos moldes que “The Invisible Boy”, com mais um refrão marcante, e a garganta de Lawless sendo dilacerada em gritos impiedosos e raivosos. Os trechos onde ele traz a marcante frase “Is there no love shelter me? Only love, love set me free” são amenos no vocal, chorosos, mas tensos no instrumental, e segue a pancadaria, onde Banalli destrói na bateria.

Single de “The Idol”

Entre barulhos de conversas, garrafas quebrando, mulheres e risadas, o empresário Alex Rodman encontra Jonathan destruído, rodeado pelas drogas e pelas podridões da fama. Alex abandona Jonathan, que ainda entorpecido, faz uma ligação, enquanto o coração bate forte (esse momento é muito bem retratado instrumentalmente). Então, uma voz feminina atende o telefone. O dedilhado da guitarra e as alavancadas trazem a dor que aquele telefonema causou para Jonathan. Ele reflete “Will I be alone this morning, will I need my friends? Something just to ease away my pain. No one ever sees the loneliness behind my face. I am just a prisoner to my fame” (“Estarei eu sozinho esta manhã? Precisarei de meus amigos? Alguma coisa para aliviar a minha dor. Ninguém percebe a solidão por detrás de minha face. Eu sou apenas um prisioneiro da minha fama”).

Entramos em “The Idol”, outro grande momento de The Crimson Idol, e que também traz citações à Tommy. Jonathan começa se perguntando “If I could only stand and stare in the mirror, could I see one fallen hero with a face like me? And if I scream, could anybody hear me? If I smash the silence, you’ll see what fame has done to me” (“Se eu pudesse permanecer e olhar no espelho iria ver um herói caído com a minha face? E se eu gritasse, poderiam me ouvir? Se eu quebrasse o silêncio, vocês iriam ver o que a fama fez comigo?”, lembrando o cego surdo e mudo menino Tommy) e no auge de sua dor, reflete que “I’ll never know if love’s a lie” (“nunca saberei se o amor é uma mentira”), e com muita melancolia e dor no coração, começa a gritar a dolorida e mais famosa frase de The Crimson Idol: “Where is the love to shelter me? Give me love, love set me free” (“Onde está o amor para me abrigar? Me dê amor, o amor me tornará livre”).

“The Idol” é uma baladaça que muda totalmente o direcionamento do disco. Enquanto as canções anteriores eram fortes, velozes e avassaladoras, aqui, o peso cai nas costas de Jonathan, e através da dolorida voz de Lawless que faz a famosa pergunta e reflexão sobre o amor com muita amargura. O solo de Kulick é para colocar a casa abaixo, lembrando David Gilmour em “Comfortably Numb”. Lágrimas sempre brotam em meus olhos, e as vezes despencam mesmo, enquanto eu canto junto de Lawless “Where is the love to shelter me only love set me free“. Lindo demais!

Single de “Hold on to My Heart”

Após a dolorida confissão da falta de amor, Jonathan busca pelo conforto em seu coração, que pulsa forte. É hora do show. A plateia clama por Jonathan, e então, no fundo de sua alma, Jonathan reflete sobre o que passou. Surge a baladaça “Hold On To My Heart”. Muitos acham que é uma canção de amor, mas não mesmo. Aqui é um lamento de Jonathan sobre todos os seus sentimentos e aflições. É aqui que ele irá perceber que terá que tomar a mais difícil decisão de sua vida, diante do próximo palco que irá se apresentar. Isso vem da chama que está em seu coração, que nenhuma chuva pode apagar (“There’s a flame, flame in my heart, and there’s no rain, can put it out“). Com um tom choroso, Jonathan implora: “just hold me, hold me, hold me, take away the pain inside my soul” (“apenas me abrace, me abrace, me abrace, tire essa dor de dentro da minha alma”). E finalmente, temos uma premonição na fala de Jonathan: “I’ll make it through the night, and I’ll be alright” (“farei isso durante a noite e ficarei bem”). Nossa, isso é forte demais. Impossível segurar as lágrimas novamente.

Balada linda levada pelo violão, e com Lawless mais uma vez cantando como nunca. A entrada aos poucos da bateria vai dando ritmo para esse belíssimo trabalho. O choro vocal de Lawless será sentido pelas paredes de sua casa, e o refrão irá destruir com qualquer possibilidade de controlar as lágrimas aqui. Que música sofrida, mas linda, puta que pariu! O solo é fantasticamente casado com camadas de teclados encantadores. Uma canção que representa um desafio para o Ídolo Carmesim, de naquele momento único que ele tem diante de sua plateia, brilhando no palco, saber se aquilo é o que realmente ele quer?

Linda versão em vinil carmesim

Para concluir essa obra-prima, e a história, vem a magistral e épica “The Great Misconceptions of Me”. É uma faixa de dez minutos, tensa, raivosa, simplesmente uma paulada. Começando com os violões, Jonathan sobe ao palco e dirige-se para a audiência: “Welcome to the show the great finale’s finally here I thank you for coming into my theatre of fear … you’re all witnesses you see a priviledged invitation to the last rights of me” (“Bem-vindos ao show o grand finale finalmente aqui. Agradeço vocês por virem no meu teatro do medo … vocês são todos testemunhas, verão, de um convite privilegiado para minha extrema-unção”).

Então começa a sequência mortal de desabafos. Primeiro para sua mãe: “Remember me? You can’t save me. Mama you never needed me” (“Se lembra de mim? Você não pode me salvar. Mamãe, você nunca precisou de mim”), volta-se novamente à plateia “I don’t wanna be The Crimson Idol of a million” (“Eu não quero ser o Ídolo Carmesim de milhões”) e continua: “I am the prisoner of the paradise I dreamed, The idol of a million lonely faces look at me” (“Sou um prisioneiro do paraíso que sonhei, o ídolo de um milhão de faces solitárias olhando para mim”), chamando pelo Rei da Misericórida: “Long Live to King of Mercy” (“Vida longa ao Rei da Misericórdia”).

Mais de Blackie Lawless

Então o ídolo entrega-se: “There is no love to shelter me, only love set me free” (“Não existe amor para me abrigar, só o amor irá me libertar”), faz uma última retrospectiva de sua vida: “I was the warrior … the idol of eight thousand lonely days of rage” (Fui um guerreiro, o ídolo de oito mil solitários dias de raiva), confronta seu pai: “Red, Crimson Red, am I the inivisible boy? The strap on my back … Only one crimson son no it never was me” (“Red, Crimson Red, eu sou o garoto invisível? A cinta nas minhas costas … somente um filho carmesim e ele nunca foi eu”), e então comete seu ato final diante de seu público: “I was dying in the shadows and the mirror was my soul. It was all I ever wanted, everything I dreamed, but the dream became my nightmare and no one could hear me scream” (“Eu estava morrendo nas sombras e o espelho era minha alma. Era tudo o que eu queria, tudo o que sonhei, mas o sonho tornou-se um pesadelo, e ninguém pode me ouvir gritar”). Num ato de desespero, vem o último suspiro de Jonathan: “With these six-strings I make a noose to take my life, it’s time to choose. The headlines read of my suicide” (“Com estas seis cordas faço uma forca para tirar minha vida, é a hora da escolha. As manchetes noticiarão meu suicídio”).

É indescritível o que se passa nesses dez minutos de “The Great Misconceptions of Me”. Saímos de momentos acústicos para pancadaria generalizada, a guitarra aguda e intermitente de Kulick furando nossos ouvidos como uma brocadeira, a bateria de Banalli como uma locomotiva levando tudo que enxerga pela frente, o ritmo cavalgante do baixo, as camadas de teclados, e as diversas retomadas de trechos da história, tudo construído e encaixado perfeitamente por uma mente brilhante como a de Lawless. É o encerramento 100% ideal para um disco mais que perfeito!

Jonathan encontra a paz, falando para o Rei da Misericórdia:”Oh sweet silence, where is the sting, I am no idol, no crimson king … I don’t wanna be the crimson idol of a million” (“Ó doce silêncio, onde está a picada? Eu não sou um ídolo, nenhum Rei Carmesim? … Eu não quero ser o Ídolo Carmesim de milhões”) deixando como legado a célebre frase “No love to shelter me, only love set me free” (“Nenhum amor para me abrigar, só o amor me libertará”). Apenas com teclados e violões, a morte chega através das mesmas cordas das guitarras que levaram o garoto a ser ídolo, e como um símbolo final, são os riffs das cordas da guitarra que fazem o encerramento instrumental de The Crimson Idol com os mesmos riffs que abriram o disco, e a mesma pancadaria comendo solta na bateria, e os mesmos acordes de teclados, e a frase “No love to shelter me only love set me free” sendo entoada à plenos pulmões, ou seja, o mundo é nada mais do que uma repetições de ciclos impiedosos! Incrível!!

Imagens da turnê de The Crimson Idol

E assim, encerra-se a profecia de um ídolo que saiu do inferno de uma vida familiar, conquistou a fama entre excessos, e deixou de existir buscando pelo verdadeiro amor, que ele perseguiu a vida toda. Como diria Artaud, “Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno“, e esse foi Jonathan, um artista que criou sua música para sair do inferno de não ser amado, e entrou em um inferno maior ainda.

O disco foi bem recebido pelos fãs e imprensa em geral, mas ao meu ver, merecia muito mais reconhecimento principalmente do pessoal que curte Heavy Metal e discos conceituais. Se há algumas questões sobre “por que os colegas de Jonathan permitiram sua morte”, ou “não ter o amor dos pais é o suficiente para se tirar a vida no auge do sucesso e tão jovem”, também podemos confrontar essas perguntas com “os colegas de Jonathan estavam tão chapados que nem perceberam que o ato era real?” e ainda, e talvez o principal em termos conceituais, dos males que a depressão pode fazer para uma pessoa. Por outro lado, não há o que se questionar da qualidade musical de The Crimson Idol. Lawless realmente estava inspirado aqui, e mesmo tendo feito mais dois álbuns conceituais (os The Neon God), e regravado The Crimson Idol em 2017, ainda prefiro a versão original.

Imagens da banda em Donington, 1992

Falando em regravações, vale lembrar que em sua edição remasterizada, dupla, de 1998, The Crimson Idol conta com a citada “The Story of Jonathan (Prologue To The Crimson Idol)”, três canções inéditas (“Phantoms In The Mirror”, “The Eulogy” e “When The Levee Breaks”), regravações acústicas para “The Idol” e “Hold on to My Heart”, além de sete faixas gravadas ao vivo em Donnington, no ano de 1992, sendo seis delas de The Crimson Idol. É uma reedição bem interessante de se adquirir. A formação nessa apresentação é de Lawless (guitarra, vocais), Doug Blair (guitarra, vocais), Stet Howland (bateria) e Johnny Rod (baixo, vocais). A apresentação deste show pode ser encontrada na íntegra no Youtube, e mesmo com qualidade baixa na visão, o som é ótimo, sendo que quase todo The Crimson Idol é interpretado.

O single de “Chainsaw Charlie” na versão em CD, fechando o pacote (VER TEXTO)

Três singles foram lançados: “Chainsaw Charlie (Murders in the New Morgue)”, “The Idol” e “I Am One”, os quais foram relativamente bem sucedidos nos charts (posições décima sétima, quadragésima primeira e quinquaségima sexta nas paradas britânicas, respectivamente). Para os colecionadores, o primeiro deles, de “Chainsaw Charlie (Murders in the New Morgue)”, saiu em uma tiragem limitada de um pacote contendo três mídias, chamada The Chainsaw Pack. Ela é constituída de uma pasta plástica com 3 bolsas, uma para cada um dos lançamentos, os quais foram: um compacto de 7″ Picture Disc; Um compacto de 7″ com uma mensagem gravada a mão no vinil, feita por Lawless (apresentados acima); o CD single. Do show de Donington citado na versão do relançamento, saiu o single de “I Am one” (apresentado acima).

Vale também lembrar que The Crimson Idol foi eleito pela revista Metal Hammer como um dos 20 melhores álbuns conceituais de todos os tempos. Nas palavras de Lawless, “Este álbum deve ser apreciado com muita calma e cuidado, pois não criei um fast food para os ouvidos”. Não lembro quando foi a primeira vez que ouvi The Crimson Idol, mas lembro do soco na cara que tomei com tanta musicalidade e a impressionante fúria exalada pelas canções deste magnífico álbum, o qual com certeza, serve e MUITO para aqueles que têm um pé atrás com o W. A. S. P., comprovar que a banda é diferenciada positivamente. Depois veio outra ópera rock, The Neon God, mas aí é papo para outra resenha.

Contra-capa de The Crimson Idol

Track list

1. The Titanic Overture

2. The Invisible Boy

3. Arena of Pleasure

4. Chainsaw Charlie (Murders in the New Morgue)

5. The Gypsy Meets the Boy

6. Doctor Rockter

7. I Am One

8. The Idol

9. Hold on to my Heart

10. The Great Misconceptions of Me

4 comentários sobre “W. A. S. P. – The Crimson Idol [1992]

  1. Excelente matéria! Gosto bastante da banda e acho este o melhor álbum do grupo e um disco até mesmo subestimado, do ponto de vista que deveria ser ainda mais conhecido. Saudações!

      1. Eu acho ambos muito bons, mas assim como o Use Your Illusion, daria tranquilo para ser um único álbum simples (a história se prolonga um pouco demasiado ao meu ver). Fora que há algumas similaridades com The Crimson Idol né ….

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