Navegando para a América: a tentativa de invasão saxônica nos EUA

Navegando para a América: a tentativa de invasão saxônica nos EUA

Por Fernando Bueno

É muito comum bandas com longas carreiras terem fases bem distintas com discos que fogem um pouco, ou em alguns casos até completamente, do direcionamento musical do início. Isso pode ocorrer por diversos motivos: questões comerciais, evolução técnica dos músicos, mudanças de formações, interesses pessoais, etc… Há alguns dias, aqui mesmo no site, falamos do Ulver que era uma banda de black metal puro e se tornou um expoente da música eletrônica. Depois da saída de Peter Gabriel o Genesis se desenvolveu para uma banda com total direcionamento pop. Os Beatles foram evoluindo, absorvendo diversas influências e gravaram discos muito diferentes e bem mais elaborados do que os seus primeiros registros. Faltou então um exemplo de mudança por questões comerciais. E o escolhido foi o Saxon.

Antes de mais nada é preciso dizer que para muita gente a diferença entre o metal mais tradicional e o hard rock, ou o hard heavy, talvez não seja tão evidente. Principalmente para as bandas que nasceram na New Wave of British Heavy Metal esses padrões ainda não estavam bem definidos então todas aquelas bandas bem diferentes entre si como Venon, Diamond Head e Def Leppard eram considerados simplesmente heavy metal. O Scorpions, por exemplo, foi considerado uma banda de heavy metal até direcionar seu som para o hard rock. Serão essas nuances que vão permear esse texto.

Quando lemos a história de uma banda europeia é raro não nos depararmos em algum momento sobre o tema “conquistar o mercado americano” – alguém aí lembrou de “Hello America” do Def Leppard? Apesar do sucesso em terras europeias trazer prestígio e reconhecimento, era nos Estados Unidos que esses objetivos vinham acompanhados de grana. E fazer dinheiro só com o sucesso na Europa sempre pareceu não ser suficiente.

O Saxon já havia feito algumas turnês americanas desde 1982 após ser lançado o ao vivo The Eagle Has Landed. Voltaram quando Power & the Glory vendeu alguns milhares de exemplares por lá. Porém as vendagens nunca foram satisfatórias. Chegaram até a ter um contrato interrompido por conta desses baixos números. Desse modo alguma coisa tinha que mudar.

Alguns fãs consideram que Crusader já tinha tido uma mudança em relação aos discos anteriores. Claro que essas opiniões acabam sendo abafadas por conta da ótima e épica faixa título, considerada por muitos a melhor de sua carreira, que tinha tudo o que o Saxon havia feito até então, mas basta ouvir “Rock City” para perceber isso. Há até uma faixa chamada “Sailing to America”, que nos diz muito sobre as intenções do grupo (sacaram o título da matéria?). A turnê de Crusader nos EUA foi acompanhando os então novatos do Motley Crüe e o já consagrado Iron Maiden em sua histórica World Slavery Tour.

Mas foi com o sucessor de Crusader que as coisas ficaram mais na cara. Innocence Is No Escuse já começa pela capa com uma bela garota comendo uma maça fazendo alusão ao pecado original. Mulher bonita sempre ajuda a vender. Some-se a isso a mudança de gravadora (lembram do contrato interrompido?) depois de um processo jurídico. Inicialmente ficariam na EMI, a gravadora do Iron Maiden, e eles tinham mais esperança de ter uma melhor divulgação, mas acabaram ficando mesmo com a Parlophone, uma subdivisão da própria EMI, justamente pela atenção que a primeira dava para o Iron Maiden, o que deixava outras bandas em segundo plano. Innocence Is No Excuse foi o terceiro disco de uma formação que havia se estabilizado com Biff Byford nos vocais, Paul Quinn e Graham Oliver nas guitarras, Steve Dawson no baixo e Nigel Glocker na bateria, este último o único que não era um dos fundadores. Para produzir o álbum foi chamado Simon Hanhart, que já havia trabalhado com David Bowie, Elton John, Marillion e Bryan Adams, mas o plano A era ‘Mutt’ Lange (uma espécie de tutor de Hanhart), que havia feito fortuna com o Def Leppard. Não podemos esquecer de um detalhe muito importante para quem queria se estabelecer no mercado americano, os cabelos armados de laquê não poderiam faltar, como você podem comprovar nas fotos que permeiam esse texto.

Gravado todo na Holanda, Innocence Is No Excuse abre com a scorpiana “Rockin´Again”, que tem um andamento cadenciado e refrão cheio de backings, algo que se repetiu ao longo de todo o disco. Aliás, os alemães devem ter sido uma referência bastante utilizada para o álbum. Porém a escolha para abertura com essa música foi da gravadora, já que a banda queria que fosse “Back On The Streets”, que é realmente a melhor e aquela que fará o fã comprar o álbum. Dei uma olhada em set lists mais recentes e vi que a música não é lembrada mais. Gostaria de ouví-la com uma pegada mais heavy metal. Acredito que ficaria ótima. Ouçam também uma versão chamada “Back On the Streets (12’’ Club Mix)”, com claro apelo pop. Outras faixas de destaque são “Call of the Wild” e “Gonna Shout”.

Biff diz que o clima do álbum se deve ao fato que as músicas foram compostas basicamente por ele e o baixista Dawson. Assim, segundo ele, faltaram guitarras mais agressivas, mais riffs. Se a idéia era ganhar o mercado americano eles até que conseguiram bons resultado, já que o disco chegou ao seu maior posto no país até então, #133. Porém na Inglaterra, onde costumavam figurar sempre entre os 20 mais, fizeram um modesto #36.

Antes de começar a gravar o próximo álbum o baixista Steve Dawnson deixa a banda, segundo a história, por problemas familiares. Paul Johnson, que até então não tinha passado por nenhuma banda minimamente conhecida, foi o escolhido para substituir Steve e integrou à banda já em fase avançada de gravação de Rock the Nations, apareceu em todas as fotos nos créditos, mas acabou não tocando. Biff, que já tinha sido baixista em épocas pré-Saxon, acabou acumulando a função. Prestem atenção à capa do álbum e veja que a bandeira brasileira está lá. A banda nunca tinha se apresentado por aqui e talvez a repercussão mundial do Rock in Rio tenha incentivado a lembrança.

Desses discos que apresento nessa matéria Rock the Nations é o que menos tinha tido contato até então. Foi o que mais ouvi com cuidado. As guitarras cortantes a la Accept da faixa título nos engana em indicar que o álbum teria uma maior pegada que o anterior, o que me faz lembrar da impressão passada por Biff que teria faltado agressividade em Innocence Is No Excuse. Não há como negar que esse disco possui músicas mais direcionadas ao riffs e solos (ouçam “Battle Cry”), e isso é um ponto positivo, mas no todo o álbum é inferior aos outros dois. Os destaques musicais são os dois singles “Waiting For the Night” e “Northern Lady”, mas o fator relevante mesmo para esse disco se tornar especial é a participação de um Cavaleiro do Império Britânico, Sir Elton John, descrito pelos integrantes do Saxon como “a true rocker”, mesmo que isso faça os radicais tirarem as cuecas pela cabeça.  (Nota: em 1986, Elton John ainda não tinha sido nomeado Sir, isso ocorreu apenas em 1997). O pianista gravou passagens para a semi-balada “Northern Lady” e “Party Till You Puke”, talvez a faixa mais rock and roll do Saxon. O resultado de Rock the Nations foi a posição #149 nas paradas americanas (inferior à do álbum anterior) e um #34 na Inglaterra (ligeiramente melhor).

Nigel Glocker resolve participar da união dos guitarristas Steve Howe e Steve Hackett, o GTR, que deveria ter sido um deleite para os fãs de progressivo, e saiu da banda. Assim quem gravou o sucessor de Rock the Nations, Destiny, foi seu xará Nigel Durham. Glocker voltaria para o Saxon alguns meses depois muito provavelmente pelo fracasso do GTR. Em 1999 ele abandonou novamente o grupo para voltar em 2005 e não sair mais. Destiny já foi dissecado por Diogo Bizotto aqui para a Consultoria do Rock para a sessão I Wanna Go Back, onde ele comenta sobre bandas que adotam uma sonoridade mais AOR. E é justamente esse ponto que vou pegar para o meu comentário. Após dois discos bem mais hard rock o Saxon fez a maior mudança nesse terceiro, que foi o último pela gravadora EMI. Isso é um sinal de que o grupo e seus empresários estavam satisfeitos com aquela mudança musical. Afinal o que mais acontece com grupos que fazem uma guinada de direcionamento e não obtém sucesso é a tal volta às origens. Continuar na mesma toada significa que o plano estava dando certo.

Iniciar um álbum com um cover, “Run Like the Wind”, ainda mais com uma música de Christopher Cross um cantor/compositor de soft rock, é algo ousado. Mas o bom resultado acabou premiando os ingleses pela ousadia por mais que os críticos tenham falado que a faixa tenha sido um risco calculado para ganhar posições nas paradas. Falei dos backing vocals presentes em Innocence Is No Escuse e em Destiny eles estão ainda mais marcantes. O single “I Can´t Wait Anymore” é provavelmente o incentivo que fez Diogo Bizotto resenhar o álbum para uma sessão de AOR. Todas as idiossincrasias do gênero estão lá, incluindo aí o timbre da bateria que chama bastante atenção. Em “Calm Before the Storm” há a adição de teclados que ao meu ver podiam ter sidos limados.

Não era novidade a adição de elementos AOR em bandas da NWOBHM. O Demon é um dos maiores exemplos, mas outros como o Lionheart – do ex-Iron Maiden Dennin Stratton e Jess Cox do Tygers of Pan Tang –, do já citado Def Leppard e o Magnum, que surgiu na mesma época, mas que poucos incluem com um dos participantes do movimento.

Um detalhe que passa um pouco despercebido em Destiny é que eles não usaram o logotipo da banda, mas isso acaba passando batido porque o “S” estilizado de seu logo é usado como um ícone gigante. Em relação as paradas o álbum foi o que obteve posições mais baixas desses três avaliados aqui no texto. Nos Estados Unidos não conseguiu entrar entre os 200 primeiros e na Inglaterra obteve um modesto #49. Isso provavelmente acabou acelerando o rompimento do contrato com a EMI.

É bom dizer que a banda refuta essa história de que a preocupação com as vendas tenha sido fundamental para a mudança de seu som. No encarte da edição resmaterizada de Innocence Is No Excuse eles falam exatamente isso. Aliás, essas edições dos discos do Saxon valem muito a pena para quem curte a banda (foram relançados praticamente todos os discos). Além de ler a versão da banda sobre o que estava acontecendo com eles na época de cada disco, todos eles têm muitos bônus, como faixas que só tinham saído como lado B em singles, versões diferentes para a rádio ou gravações ao vivo para as principais músicas do álbum. Alguns deles tem bônus até demais com muitas versões de uma mesma música fazendo a audição ficar um pouco enfadonha.

Quando falamos das bandas oriundas da NWOBHM, o Saxon é citado como um de seus principais expoentes, mas quando avaliamos o mercado musical como um todo não dá para compará-los com bandas como Iron Maiden e Judas Priest em termos de sucesso e importância mundial. Claro que eles possuem muitos fãs e alguns deles podem até preferí-los em detrimento dos outros citados, mas não dá para negar que sua influência é restrita à um nicho mais seleto de fãs.

O Saxon conseguiu aumentar suas vendas e se tornar mais conhecido nos Estados Unidos, porém os números e o reconhecimento foram inferiores aos esperados, assim fica a critério do leitor julgar se isso foi ou não uma boa. Normalmente essa é a fase que os fãs menos ouvem, mas ao meu ver tem discos melhores no todo que alguns mais recentes por exemplo. Um bom argumento para esse meu julgamento é que depois de três discos mais hard rock eles voltaram ao metal tradicional em Solid Ball of Rock, mas o retorno ao metal não significou uma volta da qualidade de discos como Wheels of Steel ou Denim and Leather, acredito que isso aconteceu só em 1997 com Unleash the Beast.

22 comentários sobre “Navegando para a América: a tentativa de invasão saxônica nos EUA

  1. Foi uma tentativa descarada de pegar o embalo do Def Leppard, com menos ou mais qualidade do que o retorno às origens posteriormente a intenção foi comercial.

  2. Muito legal, Fernando. Nos anos 70 muitas bandas foram obrigadas a mudar o estilo pelas próprias gravadoras. Quando o progressivo foi perdendo seu apelo, não digo popular, mas midiático, muitas bandas resolveram abraçar até a discoteca. É dessa época discos horrendos dos baluartes não só ingleses, mas italianos e alemães.

  3. Rock the Nations é o melhorzinho desse aí, mas é a pior fase do Saxon, sem dúvidas. Parabéns pela coragem, Fernando.

  4. Isto não é só um texto, é uma exegese, uma interpretação do significado dos discos citados. Textaço, Bueno!
    Lembro que quando Rock the Nations saiu aqui, a crítica da Bizz destacou justo a presença da bandeira brasileira na capa, que, segundo o redator, significava que a banda considerava o Brasil entre os países mais roqueiros.
    Pessoalmente duvido que os músicos tenham levado isso em conta.

    1. Eudes…Confesso que tiver que recorrer ao dicionário para saber o significado de “exegese”. rs
      Obrigado pelas palavras.

  5. Como eu também gosto muito de hard rock e AOR, acabo também gostando de muita coisa que essas bandas de heavy metal tradicional acabaram lançando na época. Porém, não ouvi quase nada do Saxon “comercial” ainda. Bom incentivo para ir atrás.

  6. Já que o assunto aqui é AOR (também), acho oportuno citar um livrinho chamado “Rockspeak! The Dictionary of Rock Terms”, compilado por Tom Hibbert e cuja primeira edição foi lançada em 1983 (quando essas bandas de heavy metal ainda surpreendiam) pela Omnibus Press, uma editora inglesa gigante na rock music, mas tida como séria (pelo menos na época). Pois bem, o livrinho define AOR assim: “Adult Oriented Rock, uma forma de rock music caracterizada por uma suave (pode também ser meiga, ui) mistura de letra, performance , composição e produção,… formulada para fazer com que qualquer esforço de compreensão por parte do ouvinte não seja necessário, amolecendo seu subconsciente. Bandas do tipo (isso do ponto de vista de 1983): Jefferson Starship, Pat Benatar, Boston, Foreigner, Billy Joel, Fleetwood Mac (a partir de 1977) e que tais… Veja MOR”.

    Agora vamos para a definição de Easy Listening (que por aqui parece que sou o único que gosta). Não existe definição. Nada além de “Veja MOR”.

    E o que será MOR? Trata-se das iniciais de Middle of The Road, expressão inglesa que define tipos de músicas formuladas nem para ofender, nem para excitar o ouvinte, ganhando sua aceitação passiva… ou EASY LISTENING (tá lá no livrinho). E citam o exemplo máximo de MOR: Barry Manilow.

    Ou seja: nós que somos fãs ou de AOR ou de Easy Listening ou dessa fase horrível do Saxon e outras bandinhas cultuadas por nobres consultores, por tabela não merecemos nada além do que ouvir uma boa coletânea do Barry “boca mole” Manilow.

    Tá tudo em casa.

    1. Vejam como são as coisas. O Marco utilizou toda sua didática e conhecimento para nos passar uma informação para em seguida nos insultar (com elegância, claro) no fim do texto. Um dia vou conseguir ser assim.

    2. A banda escocesa Middle Of The Road, que fez sucesso com os hits “Samson and Delilah”, “Sacramento (A wonderful town)” e “Chirpy Chirpy Cheep Cheep”, é um exemplo de MOR, sr. Gaspari?

      1. Conceitualmente sim, mas não sei se a intenção do nome era essa. Talvez a expressão signifique mais coisas, porque uma banda se chamar Meio da Rua é feio demais. Mas a cantora era linda e gostosa e de uma mulher assim ninguém liga pro nome. Talvez o Eudes Baima ligue.

        1. Na verdade, Marco, a pergunta foi mais um chiste… rerere. A banda está mais para bubblegum. E a vocalista era gostosinha mesmo… Sally Carr.

  7. Acho essa coisa de MORO, AOR, e outras siglas, coisa de rádio FM americana dos anos 70 e 80. Sacos onde cabem muitas coisas díspares.

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