Alguma enrolação seguida de muita babação de ovo para o Arcadium

Alguma enrolação seguida de muita babação de ovo para o Arcadium
Por Marco Gaspari
Fala-se muito dos músicos de rock. Veneram-se as bandas. Selos de discos são cobiçados. Produtores são endeusados. Capistas são elevados à categoria de artistas sublimes. Críticos de rock são admirados ou odiados. Revistas e livros de rock são devorados. Festivais são verbetes obrigatórios nas melhores enciclopédias. Mas por que tão pouco espaço é dedicado aos clubes de rock?
O UFO Club, por exemplo, fundado por John Hopkins e Joe Boyd em dezembro de 1966, em plena swinging London, e que não chegou a durar um ano (foi fechado por pressões policiais e acusações sobre drogas), qual a real importância dessa casa de shows que nesses poucos meses de vida revelou o Pink Floyd, o Soft Machine, o Bonzo Dog Doodah Band, o Hapshash and the Coloured Coat e tantas outras bandas legais?
E o meu clube preferido (não por ter sido frequentador, claro), o Middle Earth? Esse durou até quase o final dos anos 60 e foi onde a maioria dos grupos do underground londrinos se refugiou depois do fechamento do UFO. Pelo Middle Earth passaram, além do Floyd, do Soft Machine e do Bonzo Dog, o The Who, o Crazy World of Arthur Brown, o Fairport Convention, o Tomorrow, o Tyrannosaurus Rex, os Social Deviants e o Graham Bond Organization, só para citar alguns dos mais badalados. Também apresentou aos ingleses o som ao vivo do Jefferson Airplane, do Captain Beefheart e dos Byrds (com Gram Parsons).
Mas nem só de medalhões vivia a casa. Várias bandas obscuras que tocavam por lá, inclusive, tiveram sua primeira (e na maioria das vezes única) oportunidade de gravação através do selo da casa: o Middle Earth. Foi o caso, por exemplo, da escocesa Writing on the Wall e daquela que é motivo deste artigo: a inglesa Arcadium. Se não fosse o Middle Earth, será que essa banda teria algum registro ou sequer mereceria uma menção aqui neste blog?
O Arcadium é a quintessência do grupo obscuro. Quase nada se sabe sobre a história de seus músicos ou mesmo o que aconteceu com eles depois que resolveram passar a régua. Gravaram um LP, um single, participaram de duas coletâneas sem músicas inéditas e caíram no ostracismo. E que bela banda era o Arcadium!
Seu único LP, Breathe Awhile, foi lançado pelo selo Middle Earth em 1969. Na formação do grupo quem escrevia as letras, tocava o violão de 12 cordas e cantava era o Miguel Sergides, um letrista com uma visão enigmática e pouco saudável do mundo e um vocal pomposo, embora sem grandes predicados (dava pro gasto); o baixista era Graham Best, o tecladista era Allan Ellwood, seu irmão Robert Ellwood era o guitarrista e John Albert Parker mandava nas baquetas. Graham, Allan e Robert também faziam os backing vocals.
O som de Breathe Awhile é descrito por aí como a trilha sonora de um pesadelo (ou uma bad trip), com um órgão vertiginoso (o tecladista devia ser fã do Vanilla Fudge), guitarras distorcidas no talo, harmonias fantasmagóricas e vocais doloridos. Bom, só posso acrescentar que tudo isso era no bom sentido, porque o resultado final são músicas marcantes e bem no clima daqueles primeiros exemplos da passagem da psicodelia inglesa para o progressivo. Infelizmente o Middle Earth devia cuidar mais do clube do que do selo, uma vez que o LP é bem pobrinho, sonora e graficamente. Mas isso não deixa de ter um charme todo próprio, principalmente porque um exemplar original gira fácil na casa das quinhentas doletas.
I’m on My Way” abre o álbum com uma espécie de fog surreal, mântrico e espacial, preparando o terreno para um final agressivo, mezzo psicodélico mezzo hard. São 12 minutos de ótimas surpresas sonoras e é aqui que a gente sente que a voz do Sergides funciona como a de um garoto propaganda de agência de turismo para viagens ao lado negro da mente.
Poor Lady” vem na sequência. Um hard psicodélico que não faria feio nos primeiros discos do Uriah Heep e ainda por cima com um trabalho de guitarra que lembra o Randy Califórnia no Spirit. Precisa mais?
“Walk on the Bad Side” é uma balada. Mas vamos devagar: não estou falando de Bread, a menos que o David Gates fosse o protótipo para o American Psycho. Os toques de órgão e os ataques de guitarra fazem a cama para  Sergides cantar seus versos de letrista que passou a noite angustiado e acordou com complexo de Peter Hammill. Estranho e muito legal.
O lado B começa com “Woman of a Thousand Years”, um rockão agressivo e que não tem nada a ver com a música do mesmo nome gravada pelo Fleetwood Mac dois anos depois. Os backing vocals ficam pontuando o nome da música e o efeito é muito peculiar. A guitarra novamente dá um show.
“Change Me” é Vanilla Fudge, mas com algumas cerejas de cobertura: o órgão é mais sombrio e a guitarra acidifica e intensifica o desespero dos vocais. A mesma guitarra injeta adrenalina ao longo da próxima faixa, “It Takes a Woman”, e cede lugar no final para uns toques pacificadores do órgão.
Temos então a grande faixa do lado B, “Birth, Life and Death”, fechando com doses de morfina o LP. Julian Cope, num elogio supremo, encontrou aqui paralelos com a temática explorada pelo Van der Graaf Generator no sublime “Pawn Hearts”. Os mais de 10 minutos da música começam com sirenes anunciando um show de órgão e guitarra ácida que se estende pelos próximos 5 minutos. Quando entra o vocal já estamos nos acomodando nos abrigos antiaéreos, esperando pelo pior, mas a música sossega um pouco e Sergides inicia sua ladainha de dor e desesperança. O fade brusco no final da faixa é o ponto frustrante do álbum.
Só um conselho: se você tiver quinhentos dólares sobrando para comprar o LP original, será brindado com plics e plocs durante toda a sua execução. Melhor economizar e comprar ou o CD da Repertoire ou o da Akarma que traz um som mais caprichado e com as duas faixas do single de bônus. A grana que sobrar você investe num garrafão de Sangue de Boi para brindar a audição e em alguns comprimidos de Valium que vão ajudar você a dormir à noite depois desse verdadeiro pesadelo sonoro, exemplo marcante da psicodelia dark.

16 comentários sobre “Alguma enrolação seguida de muita babação de ovo para o Arcadium

  1. Pobre de mim que me deixo seduzir por termos como "dark", "pesadelo", "dor" e "desespero". Fiquei LOUCO pra ouvir a banda depois desse magnífico texto! Tô esperando carregar os videos do youtube pra ver se o som da banda é tão magnífico quanto. Parabéns por mais um belo texto, Gaspari! Dessa vez sobre uma banda que talvez nem os próprios membros conheçam…

  2. Achei o som menos tenebroso do que o esperado, mas a banda é boa. Bem melhor do que, por exemplo, um Spooky Tooth, pra citar uma banda parecida. A guitarra é realmente boa!

  3. A banda não é tão desconhecida assim, Adriano. Hoje em dia ninguém mais é. E eu dei uma pista das minhas intenções já no titulo da matéria: ia exagerar na babação de ovo. Como se trata de um som datado, e todos por aqui têm horas e mais horas de vôos sonoros no brevê, duvido que algum grupo consiga corresponder às expectativas criadas. Mas a gente tenta, né? E procura caprichar na escolha dos adjetivos. Pelo menos minhas palavras fizeram um favor ao Arcadium: conseguiram que você se desse ao trabalho de carregar os vídeos e conhecesse o bom trabalho deles. Abração!

  4. Cada vez mais me orgulho de ter vindo para a Consultoria. São textos como esse que me fazem pesquisar cada vez mais para levar algo do nível que o Diogo, o Gaspa e outros colegas vem mantendo no blog.

    Cara, esse início de sirenes em "Birth Life and Death" (a melhor do LP) é o mesmo de "War Pigs", não tem como não ser … Outra que eu curto bastante é o delírio de "Woman of a Thousand Years", com um shozao de guitarra

    Eu naõ sou muito apreciador da sonoridade do Arcadium, e vejo o grupo numa espécie de Procol Harum e Vanilla Fudge (o timbre do órgão é muito parecido), mas acho o batera muito bom, e claro, as letras são deprê pura.

    Eu pegaria minhas 500 doletas e investiria nos plocs,ou então, ao inves de um sangue de boi, que é suco de uva, pegava um Johnny Walker mesmo e otras cositas más, hehehe

    Agora, imaginem ir a um pub e ver pinkfloyd, soft machine, arcadium, captain beefheart, …, no auge da psicodelia e pagando praticamente centavos pelo ingresso (se é que se pagava algo).

    Finalmente coloquei a consultoria em dia!

  5. Quando conheci a banda gostava mais do seu som, mas com o passar do tempo não os vejo com a mesma força do começo, embora ainda os ache um boa opção pra quem quer se aventurar em uma sonoridade psicodélica do fim dos anos 60.
    Tambem acho a produção do album bem pobre, mas como já dito, pode ser de proposito pra dar um charme ao disco. Enfim, um album interessante embora não essencial.

    Mais um excelente texto, Siri…;)

    Laís F.

  6. Obrigado, Laís.
    Essa história da produção pobre ter seu charme foi mais uma forçação de barra da minha parte do que algo feito de forma proposital. A gravadora era meia-boca mesmo, pois tenho discos (inclusive esse)lançados por ela e era tudo ruim.

  7. Texto irretocável como sempre.
    Com relação à Banda estou com a Laís no que diz respeito a "uma boa opção pra quem quer se aventurar em uma sonoridade psicodélica do fim dos anos 60". Acrescentaria a essa relação "boa opção x psicodelia 60's" as Bandas; Sweet Smoke, Traffic Sound, Octopus, P.L.J. Band, La Ira De Dios e tantas outras que o Siri com certeza conseguiria colocar no Olimpo com seus belos textos.

  8. Ótimo texto , banda muito rara e que faz uma sonzeira muito loca
    gostei muito do texto , bandaça . . .

  9. Não me lembrava dessa ótima matéria! Tenho o cd da Repertoire, tanto o Arcadium quanto o Writing On The Wall. Excelentes bandas! Valeu!

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