Discografia Comentada: The Beatles [Parte II]
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Por Marcello Zapelini
A segunda parte desta discografia comentada vai explorar os discos mais famosos dos Beatles, e, na minha opinião, aqueles que dão a um fã deles argumentos para defendê-los como a maior banda de todos os tempos – é claro que todo mundo tem sua candidata a esse título, mas mesmo quem não é fã dos Beatles tem que admitir que o trabalho da banda nessa fase da carreira é impressionante. A virada de chave se deu no ano de 1966: os quatro estavam cansados das longas turnês, da má qualidade sonora dos shows (a gritaria era tanta que eles não conseguiam ouvir o
que estavam tocando), mas, sobretudo, estavam com as cabeças cheias de ideias, algumas originais, outras baseadas no que estava sendo feito de mais revolucionário na música nos anos 60.
Esse é o momento em que a coisa fica séria: as composições e arranjos estavam se tornando cada vez mais ambiciosas, o produtor George Martin se virava para colocar nas fitas master as ideias que eram trazidas, e o cenário musical vinha se tornando cada vez mais sofisticado (os adolescentes que tinham comprado o primeiro single em 1962 estavam crescendo, afinal…). De 1966 até sua dissolução, The Beatles fizeram seus melhores discos – e alguns dos melhores da história do rock.
Revolver [1966]
Para mim, a obra-prima dos Beatles. Revolver é um relativamente pouco presente nas coletâneas, mas é recheado de músicas fortes e atraentes que, no todo, fazem dele a melhor coisa que a banda fez. O ataque guitarrístico de “Taxman” mostra que a banda podia fazer rock pesado se quisesse, e a letra de George é tristemente atual. “Eleanor Rigby” traz uma das letras mais tristes de Paul, e sua interpretação vocal acompanhada de um quarteto de cordas é uma das melhores de sua carreira – sou só eu, ou Macca estava tentando reproduzir as harmonias dos Beach Boys? “I’m Only Sleeping” é um pouco arrastada para dar a impressão de sono, com um solo de guitarra ao contrário para reforçar. George traz a primeira música inteiramente “indiana” de sua carreira em “Love You To” – e embora ele tenha gravado outras, nunca a superou. Na sequência, a bela “Here There and Everywhere” explora a veia romântica de Paul, com belo arranjo vocal. Mas aí tem “Yellow Submarine” para nos lembrar que nem tudo é perfeito – os fãs que me perdoem, mas não consigo gostar. Ainda bem que a paulada de “She Said She Said” encerra o lado A nas alturas. O lado B começa com duas músicas apenas medianas, a alegre “Good Day Sunshine” e “And Your Bird Can Sing”, que tem um riff de guitarra insistente e John entusiasmado no vocal, e dá um salto com “For No One”, outra balada melancólica, com arranjo que destaca uma trompa (!) e mais uma bela interpretação vocal de Paul. A divertida “Dr. Robert” coloca o astral lá em cima; uma homenagem a um médico que prescrevia bolinha em NY, é bom exemplo do senso de humor perverso de John Lennon. Uma sequência perfeita encerra o disco: George apresenta uma inédita terceira música num disco dos Beatles com a ótima “I Want to Tell You”, que aponta para a psicodelia que tomaria o mundo em 1967; Paul canta como um soulman acompanhado de metais em “Got to Get You Into My Life”, uma ode à marijuana que ninguém percebeu na época; por fim, a fantasia insana de “Tomorrow Never Knows” desperta o baterista em Ringo Starr e o viajante em John Lennon. Muitas vezes voltei para o lado A, muitas vezes coloquei o CD no repeat ouvindo Revolver.
Sem álbum novo nos planos (Sgt. Peppers… estava demorando para ficar pronto), a EMI optou por colocar no mercado a antologia A Collection of Beatles Oldies, que é formada sobretudo por músicas que, na Inglaterra, só estavam disponíveis em singles e EPs.
Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band [1967]
Durante décadas, o LP que aparecia em primeiro lugar nas listas de melhores de todos os tempos. Minha opinião? É muito bom, mas não é nem mesmo o melhor do grupo. De Sgt. Peppers … já se falou tanta coisa que eu só posso chover no molhado. Após a introdução com a faixa-título, cheia de efeitos de plateia e arranjo de metais, vem a melhor coisa que Ringo Starr fez na vida, que foi cantar “With a Little Help from My Friends” (mas convenhamos, Joe Cocker fez melhor…). A famosa “Lucy in the Sky With Diamonds” destaca o baixo de Paul, que começou a usar um Rickenbacker para melhorar seu som, pois o velho Hofner era bastante limitado. O baixista comprova a boa forma no instrumento com a otimista “It’s Getting Better”, que mostra o abismo que se cavava entre ele e o parceiro: Macca canta “it’s getting better all the time”, Lennon responde com “can’t get much worse”. Na sequência, “Fixing a Hole” tem seu impacto diminuído por ser parecida com a anterior, e Paul canta a melancólica ao extremo “She’s Leaving Home”, com seu arranjo orquestrado. John retoma a batuta em “Being for the Benefit of Mr. Kite”, espécie de circo psicodélico que acaba não indo a lugar nenhum. No início do lado B, George volta a oferecer uma música indiana em “Within You Without You”, que eu até gosto, mas nem sempre. A leve “When I’m 64” é uma música simpática sobre as agruras de manter um romance depois que se envelhece; composta por Paul, a música nunca foi apreciada por John. “Lovely Rita” é outra música inofensiva, que não se destaca no disco, ainda que não seja ruim. John se sai bem com a divertida “Good Morning Good Morning”, engatando genialmente a cacofonia dos bichos com a primeira nota de guitarra da reprise da faixa-título. O álbum se encerra com a música mais ambiciosa do disco, “A Day in the Life”, uma de suas mais conhecidas – e melhores – músicas. Sgt. Peppers Lonely Hearts Clubs Band foi um álbum revolucionário, mas, em retrospecto, no panorama da época, ele não é tudo isso – e olha que o disco é bom demais.
Magical Mystery Tour [1967]
Lançado na Inglaterra como dois EPs com as músicas do filme para a TV, depois completado com músicas inicialmente disponibilizadas em compactos na edição americana, que se tornaria o padrão para os relançamentos. O disco abre com a faixa-título, uma música que, embora não seja nada especial, é uma das minhas favoritas, e segue com “The Fool on the Hill”, uma bela melodia com um interlúdio instrumental não muito cativante; no todo, ela funciona bem. Duas músicas um tanto estranhas, a instrumental “Flying” (assinada pelos quatro) e “Blue Jay Way”, de George, dão sequência no disco, antes de trazer Paul de volta na alegre “Your Mother Should Know”. Os EPs originais (e o lado A do disco americano) se encerram com a fantástica “I Am the Walrus”, uma das melhores músicas que Lennon fez em toda sua vida, com sua letra incompreensível e sua melodia sinuosa. Depois da alegre “Hello Goodbye”, tem-se as famosas “Strawberry Fields” e “Penny Lane”, belas composições que remetem ao passado dos rapazes em Liverpool. O disco se encerra com a agradável “Baby You’re a Rich Man”, que não se destaca na tracklist, sendo uma música bastante obscura na carreira do grupo, e com “All You Need is Love”, uma música que nunca apreciei muito, embora tenha feito grande sucesso. Magical Mystery Tour é um álbum que fica à sombra de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, mas sempre gostei muito dele. A edição original em vinil tinha um belo livreto de fotos extraídas de cenas do filme.
The Beatles [1968]
O popular álbum branco, que por muito tempo foi meu disco favorito do grupo (e hoje ainda é top 3 na minha lista). Com 30 músicas, o álbum não permite um comentário faixa por faixa, então vou apresentar os destaques positivos e negativos, e as músicas “nem – nem” (nem boas, nem ruins):
Positivos: “Back in the USSR”, “Dear Prudence”, “Glass Onion” (e sua letra tirando sarro dos intérpretes do trabalho do grupo), “While My Guitar Gently Weeps” (com solo magistral de Eric Clapton), “Happiness is a Warm Gun”, “Martha My Dear”, “I’m So Tired” (Lennon sonolento como em “I’m Only Sleeping”, mas a música é melhor), “Blackbird” (Macca no seu melhor), “I Will”, todo o lado 3 – a divertida “Birthday”, “Yer Blues” e sua homenagem a John Mayall, “Mother Nature’s Son” (linda balada de Paul) “Everybody’s Got Something to Hide Except for Me and my Monkey” (ótimas guitarras de John e George), “Sexy Sadie”, “Helter Skelter” (um proto-heavy metal), “Long Long Long”, e finalmente “Savoy Truffle” (que George escreveu para Eric Clapton, que adorava doces), “Cry Baby Cry”.
Negativos: “Ob-La-Di, Ob-La-Da” (alegre e inconsequente, mas boba demais para meu gosto), “Wild Honey Pie” (uma vinheta de Paul, sem qualquer atrativo), “Rocky Raccoon” (outra tolice de Paul), “Revolution 1” (a versão do
compacto é muito melhor), “Revolution 9” (pura perda de tempo, metida a “música concreta”), “Good Night” (cafona ao extremo…).
“Nem-Nem: “The Continuing Story of Bungalow Bill” (com direito a Yoko cantando um verso!), “Piggies” (a letra é ótima, mas a música nem tanto), “Don’t Pass Me By” (Ringo assinando sozinho uma música pela primeira vez), “Why Don’t We Do It in the Road?” (muita gente acha-a ridícula, mas eu gosto…), “Julia” (homenagem de Lennon à sua mãe, infelizmente uma música um pouco simples e repetitiva), “Honey Pie” (jazz dos anos 30 feito por quem
não sabia fazê-lo, simpático, mas nada além disso).
No balanço, 18 músicas que variam do bom ao muito bom, 6 razoáveis, 6 que não aprecio; para um álbum duplo, um saldo bem positivo. Lennon disse que não havia música dos Beatles lá, somente John, Paul, George e Ringo acompanhados (ou não) dos outros; e, para ele, gravar assim foi uma ótima experiência.
Yellow Submarine [1968]
Este o famoso disco a ser comprado para completar a coleção (toda banda tem pelo menos um). Com duas músicas recicladas de álbuns anteriores (a faixa-título e “All You Need is Love” – e eu não gosto de nenhuma), mais quatro sobras de gravação que a banda ia jogar fora, o álbum original se completa com música incidental composta e orquestrada por George Martin extraída do desenho animado (o resultado disso é que os LPs nas lojas de usados estavam bem malhados no lado A e quase virgens no B…). Das músicas novas, “Hey Bulldog”, de John, é a melhor, um rock pesado para o padrão Beatles, com uma letra que não fala nada em buldogues – por isso acrescentaram alguns latidos ao final. George compôs duas músicas, “It’s Only a Northern Song”, uma crítica à indústria musical (e à indústria Beatle propriamente dita), música bem interessante que junto com “Hey Bulldog” acaba salvando o disco; a outra, “It’s All Too Much” é apenas razoável, longa demais para suas poucas ideias musicais. Por fim, tem-se “All Together Now”, uma música bem flower power que pouco acrescenta ao disco e ao grupo em geral. Em 1999, quando foi relançado, o CD incluiu todas as músicas do desenho, mas não as orquestradas. Essa versão é melhor para quem queira uma antologia bem razoável do grupo, mas não substitui o original para os colecionadores (ideal seria ter incluído o antigo lado B do disco no final dessa reedição, pois tinha lugar).
Abbey Road [1969]
Uma das melhores coisas que a banda fez em toda a sua carreira e, cronologicamente falando, o último disco gravado pelo grupo. A abertura com “Come Together” mostra que Paul sabia tocar um baixo fenomenal quando queria – e rendeu um processo a John, que copiou dois versos de Chuck Berry. “Something”, na sequência, é uma bela e triste balada romântica de George, uma de suas músicas mais famosas. Na sequência, Paul interpreta “Maxwell’s Silver Hammer”, uma de suas composições mais fracas enquanto um Beatle, com um sintetizador proeminente e Ringo tocando uma bigorna; outra de Paul, “Oh Darling”, é bem melhor, uma balada soul que traz uma interpretação vocal meio exagerada, mas impressionante. Ringo assina sozinho e interpeta “Octopus’ Garden”, uma música leve e despretensiosa que traz boas guitarras de John e George. O lado se encerra com a bizarra e repetitiva “I Want You (She’s So Heavy)”, de John. O lado B, curiosamente, é melhor, ainda que formado praticamente só por fragmentos de músicas, abrindo com minha música favorita de George, “Here Comes the Sun”. “Because”, de John, traz um arranjo vocal fantástico. Paul volta ao spotlight com “You Never Give Me Your Money”, fusão de quatro trechos de músicas que ele nunca completou – e que se completam à perfeição. A letra de “Sun King” mistura idiomas sem fazer sentido, uma brincadeira de John que acaba funcionando. Dois bons fragmentos de John, “Mean Mr. Mustard” e “Polythene Pam” (com seu vocal com sotaque exagerado de propósito), mantêm o álbum interessante, e daí em diante, o show é todo de Paul: de “She Came in Through the Bathroom Window” a “The End”, é tudo coisa sua, e, cá entre nós, poucas vezes ele fez algo que se comparasse com essas pequenas músicas. Abbey Road teria sido um fechamento melhor para a carreira do grupo, mas quis o destino que Let it Be fosse lançado posteriormente.
Em fevereiro de 1970, a Capitol lançou nos EUA uma coletânea com músicas de compactos, Hey Jude, que não saiu na Inglaterra e, após o final da década de 80, saiu de catálogo. Se você tem uma cópia em vinil ou o CD, provavelmente vale uns trocados bons; as músicas estão todas disponíveis em outras antologias.
Let it Be [1970]
O disco que fez o sonho acabar. McCartney não suportava Yoko e por isso John não queria papo com ele. George estava de saco cheio de Paul, que não aguentava as limitações de Ringo como baterista. E Ringo não queria discutir com ninguém e acabou ficando meio à margem do resto. Verdade seja dita, o disco está muito aquém do que a banda vinha fazendo, cheio de orquestrações de Phil Spector e com poucas músicas realmente boas gravadas no telhado do edifício da Apple. Uma versão sem orquestrações foi lançada como Let it Be… Naked, mas isso é assunto para depois. O disco tem músicas muito boas, como a faixa-título (apesar de muito desgastada pelo excesso de repetições), “Get Back” (mas gosto mais da versão do single), “I’ve Got a Feeling” e “For You Blue” (com boa pedal steel guitar tocada por John), um bocado de músicas apenas razoáveis, como “Two of Us” (agradável, mas abaixo do padrão dos Beatles), “One After 909” (que também foi citada no processo contra Lennon, o do plágio de Chuck Berry), “Dig a Pony” (a introdução é muito legal, mas a música não lhe faz jus), “The Long and Winding Road” (destruída pela produção de Spector) e as vinhetas “Dig It” e “Maggie Mae”. O álbum se completa com duas músicas que não tem jeito de eu gostar: “Across the Universe” (prejudicada pela produção, é verdade, mas nem mesmo David Bowie conseguiu fazê-la soar bem) e “I Me Mine” (George não estava nos seus melhores dias, apesar da boa letra).
No mesmo ano de 1970, tivemos McCartney, Plastic Ono Band e All Things Must Pass, três discos bem superiores a este anêmico Let it Be; claro, teve a estreia solo do Ringo também, mas, como não tenho o disco, não vou comentar. Mês que vem, a terceira e última parte.