A Little Respect: Odair José – O Filho De José E Maria [1977]

A Little Respect: Odair José – O Filho De José E Maria [1977]

Por Mairon Machado

Muitos artistas da música tiveram seu momento “tô doidão, vou tacar o foda-se“, e lançaram discos considerados inapropriados para o mesmo, seja por conta do que foi criado ali, ou pela revolta inimaginável para o artista em questão, ou até pela total mudança sonora que o mesmo fez. Inúmeros são os casos de fracasso nesses casos, alguns retumbantes como John Lennon criando Two Virgins ao lado de Yoko Ono, Lou Reed e seu Metal Machine Music (ambos discos totalmente avant-garde e fora do contexto criado pelos artistas até então), e aqui no Brasil, Ronnie Von e sua trilogia do final dos anos 60, início dos 70, chocou o Brasil e os fãs (as fãs em especial) pela revolta contra sua própria imagem, enquanto Tim Maia guerreou contra si mesmo após lançar os revolucionários e icônicos Racional I e Racional II no meio da década de 70. Poderia citar muitos outros discos por aqui, mas acredito que nenhum deles foi, e ainda é, tão impactante moral e artisticamente como O Filho de José E Maria, lançado por Odair José em 1977.

Antes deste lançamento, Odair era nacionalmente reconhecido como um músico popular, pai do que hoje chamamos de “música brega”, e que flertou com polêmicas ao lançar no mínimo duas músicas de impacto devastadoras: “Vou Tirar Você Desse Lugar”, bolachinha de enorme sucesso em 1972, e que aparece na coletânea Os Grandes Sucessos De Odair José, do mesmo ano, e “Uma Vida Só (Pare De Tomar A Pílula)”, do álbum Odair José (1973). Enquanto a primeira traz a paixão de um cidadão comum por uma menina do job, e toda sua vontade por retirar a mesma daquele lugar e viver um grande e verdadeiro amor, a segunda faz uma afirmação do aborto que ninguém havia sido capaz de se quer tocar no assunto até então.

Caetano Veloso (esquerda) e Odair José (direita) se encontram para ensaio do Phono 73

A polêmica em torno de “Vou Tirar Você Desse Lugar” foi tamanha que, durante o Phono 73, Caetano Veloso foi o responsável por acalmar os ânimos dos mais exaltados, e trazer Odair ao palco para cantar a canção ao seu lado, em uma das versões acústicas mais belas que somente Caetano poderia criar para esta faixa. As vaias tomaram conta, levando Caetano a soltar a celebre frase: “Não existe nada mais Z do que a classe A“. Foi através da minha obsessão de ter tudo dos artistas que eu gosto, e no caso quando comprei o Phono 73, que conheci essa canção do Odair José, artista que nunca me chamou a atenção, só que esta música me encantou. Mas, a obsessão da coleção foi além, e vasculhando a obra de Sergio Dias (sim, aquele dos Mutantes), um dia encontrei em um blog que ele havia feito as guitarras de um disco de Odair. A bolacha se chama Coisas Simples (1978), e foi lançada no chamado “período rebelde” de Odair, o qual tem como zênite O Filho de José E Maria.

Independente de polêmicas ou não, o goiano Odair José era sem sombra de dúvidas um dos artistas mais conhecidos da música nacional, além de ser um dos campeões de vendas de discos no país, no nível de Roberto Carlos e Nelson Ned, para se ter um pouco de noção do tamanho que seu nome tinha na primeira metade da década de 70. Mas, como afirmei no início do texto, todo artista tem seu momento “tô doidão“, e entre 1974 e 1976, Odair começou a planejar seu mais audacioso disco: um álbum duplo com 24 canções que, em ordem cronológica, falasse de uma fase do protagonista, desde seu nascimento até a sua morte. Após lançar as polêmicas sobre relacionamentos amorosos com prostitutas e o uso da pílula anticoncepcional, entre outras, agora era a vez de Odair abordar temas ainda então considerados tabus na sociedade brasileira, como divórcio, drogas e homossexualidade.

Odair José, o cantor das massas

O projeto resultou em O Filho de José e Maria, um disco conceitual cujo protagonista, o filho de José e Maria, é um rapaz que sofre pela separação dos pais durante a infância, se envolve com drogas e coloca em dúvida sua própria condição sexual. Após longos anos de solidão e rejeição social, assume a sexualidade aos 33 anos, cometendo suicídio mas ressuscitando para viver feliz e tranquilo com sua sexualidade. Porém, a gravadora se recusou a lançar a ideia inicial. O álbum duplo foi totalmente vetado, e os produtores acharam a temática muito controversa. Odair então saiu da Philips e foi para a RCA, que acabou sendo um pouco mais condescendente, lançando 10 das 24 faixas originais, já que a censura caiu em cima e malhou as outras 14 canções. Decepcionado com as críticas e com os vetos, Odair ainda ajudou o disco a se tornar mais “estranho” ao embaralhar as canções e deixar a sequência da história totalmente confusa no vinil.

O Jornal do Brasil de 23 de janeiro de 1977, quatro meses antes do lançamento do disco, já anunciava “Uma ópera rock bíblica ao estilo Jesus Cristo, Superstar. Tanto que ele já pensa até em fazer uma montagem para o teatro. Além do mais, Odair descobriu a guitarra Gibson Les Paul e trocou os seus discos do Românticos de Cuba por Lps do Led Zeppelin. No texto, a proposta de Odair de negociar com o rock ultrapassa o uso simples da rotulação; Led Zeppelin e a venerada pelos rock stars guitarra elétrica Les Paul acionam, ambos, um imaginário pertencente ao gênero do rock’n’roll e denotam as intenções do “terror das empregadas”.

A Azymuth em 1977. Da esquerda para direita: José Roberto Bertrami, Ivan Mamão e Alex Malheiros

Lançado em maio de 1977, há portanto exatos 48 anos, O Filho de José E Maria foi um grande fracasso de vendas, e principalmente, de crítica. A Igreja ameaçou Odair de ser excomungado, e a imprensa musical caiu em cima, massacrou o que chamaram de “disco pretensioso” e “um dos piores lançamentos da música popular brasileira”. Odair estava influenciado por Gibran Kalil e principalmente a música estadunidense de Eagles e Humble Pie, com especial inclinação para Joe Walsh e Peter Frampton, que viviam os auges de suas famas, assim como o jazz rock de Jeff Beck. Para ele, o som e o sucesso de Peter Frampton eram o que tinha que ser buscado, e para tal, chamou o grupo Azymuth para banda de apoio, assim como um grande time de músicos de estúdio. A banda que grava O Filho de José E Maria tem Odair (voz, violão e guitarras), Jaime Alem (guitarra e violão), Hyldon (guitarras), Robson Jorge (piano elétrico), e o Azymuth de José Roberto Bertrami (órgão, clavinete e sintetizador), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Mamão (bateria), e José Lanforge (voice-box e harmônica), e com arranjos de Don Charley. Um timaço que acaba criando uma das obras mais sensacionais do Brasil nos anos 70.

Farei a apresentação conforme a ordem correta proposta por Odair, ressaltando a posição de cada faixa no LP original (e no disco seguinte, que complementa a história). Tudo começa com a primeira faixa do lado B, “O Casamento”, que para mim é a melhor faixa do disco. São seis minutos impactantes, que apresentam os pais José e Maria para o ouvinte, e como começa a história deles. O belíssimo dedilhado ao piano em escala menor já mostra a dramaticidade que virá pelos próximos 40 minutos. O tocante trabalho feito por Robson Jorge vai ganhando adição de baixo, órgão, bateria e um suave sino que bate por 8 vezes, surgindo então o padre, raivoso, perguntando “Quem são essas pessoas sacristão, o que elas querem aqui na minha igreja“, com um tom agressivo, gritando que “já passa da meia-noite … a igreja é minha, eu tenho que saber“. Aqui já temos a primeira crítica de Odair à Igreja, a questão da posse material que o padre tem, que como aquilo o pertence só ele pode determinar o que irá acontecer lá dentro.

Odair ao vivo, interpretando O Filho de José e Maria

A harmonia musical muda totalmente para apresentar o sacristão, cantando suavemente apresentando as pessoas que “é gente boa, todas casadas … e hoje são seus convidados … é um casamento … de mais importante, pois dizem que é a vontade de Deus“. O ritmo é suave, bem singelo, mas repentinamente, voltamos ao dedilhado do piano elétrico e o padre ainda mais agressivo, gritando “Como vontade de Deus, ninguém se casa só por isso, tem que haver outras razões … Você tem que saber sacristão, quem são essas pessoas, de onde vem, vamos diga-me, a igreja é minha“. Mais uma crítica forte aqui. Como um padre se nega a realizar uma determinada tarefa por vontade de Deus? Fica claro que o padre está desconfiado de algo mais, que a justificativa de ser apenas vontade de Deus não o satisfaz, e ele exige a verdade.

A melodia muda novamente para o sacristão que conta toda a verdade: “José nasceu em Belem e é carpinteiro, Maria é uma simples moça caseira, e hoje vão se casar. Olhe bem seu vigário, há razões demais pois não demora eles vão ser pais, e isso não pode esperar, não é?“. A sutil malícia que o sacristão fala esse “não é?” é fantástica, do tipo “veja bem padre, ela está grávida, vais querer te incomodar?” e a resposta imediata do padre com “É claro que não, e já que é assim, me traga logo os noivos” mostra a hipocrisia do padre, em mais uma crítica à Igreja, que não permitia (e ainda não permite de forma geral) o casamento de mulheres grávidas. Odair faz a crítica justamente ao contrário, pois é exatamente o fato de Maria estar grávida que convence o padre a realizar o casamento.

Um pouco mais de Odair em turnê com o álbum aqui resenhado

Maria e José então se apresentam ao padre com uma frase célebre: “Senhor, nos perdoe, mas não foi nossa culpa não“, cantado chorosamente por vozes duplicadas, e então “O Casamento” muda de rumo. A sequência agora traz batidas agressivas que levam ao casamento de José e Maria, com o padre dizendo “em nome do pai, do filho e do espírito, eu caso vocês, eu vos bendito, agora repitam comigo, eu quero e acredito“, evocando uma comunhão entre os presentes. A frase é repetida e assim, a conglomeração passa a vibrar e cantar em uníssono, em um gospel animado, que remete a algumas igrejas evangélicas, com direito a coral e tudo, onde José e Maria “já estão casados e em feliz lua-de-mel” e o padre desejando “meus parabéns!” para o casal, encerrando a canção em um clima super para cima, diferente do início da canção. São 6 minutos de uma obra-prima, que além de musicalmente impactante, tem toda a crítica da hipocrisia com a Igreja Católica. A citação de Maria grávida antes do casamento é uma clara alusão ao fato de que Maria estava grávida de Jesus, mesmo sendo virgem. E fora as tantas outras críticas que Odair traz nessa faixa impecável, que tem por um único defeito abrir a história (e pegando o vinil, abrir o lado B acaba descaracterizando totalmente o contexto).

Vamos seguir pelo “roteiro” original de Odair, agora com “Não Me Venda Grilos (Por Direito)”, a segunda faixa do lado A, e a segunda da história, começando com o violão embalado de Odair, a levada do piano elétrico de Robson e a Azymuth fazendo o swing para José trazer todo seu lado machista para Maria. “Eu tenho por direito de te amar … vou mudar de vida, vou mudar de sonhos, vou mudar de amigos …vou mudar de vida para te amar” é a declaração de amor de José, e aquela questão de que o homem tem por direito a posse da mulher, já que se submete mudando de vida, de amigos, para poder agradá-la, então, tem o direito de “amá-la” (transar com ela em outras palavras), ainda enaltecida em diversas músicas do sertanejo universitário atual. “Seu nome tem meu nome, seu corpo traz meu filho, por certo sou seu homem mas não me venda grilos … viver já pesa muitos quilos” mostra toda a crítica ao machismo e patriarcado, a questão da obrigação da mulher ceder o nome para o do marido, e ainda carregar o filho dele no ventre. E há mais “não me venda grilos“, ou seja, eu te amo, mas não me enche o saco com neuroses e loucuras por que tenho mais com o que me preocupar. Uma música que, assim como “O Casamento”, está muito à frente de seu tempo, repleta de ironias, e que tem um ótimo embalo de Hyldon e Jaime Alem, fazendo um trabalho nas guitarras sublime.

Material promocional de época para O Filho de José e Maria

Penso que esta canção deveria vir antes de “O Casamento”, já que mostra como José e Maria começam a relação, mas Odair apresenta e sempre contou que “O Casamento” é o começo da história, então, seguimos com a faixa-título, que é a terceira na história e a segunda do lado B. Aqui conhecemos o filho de José e Maria, e novamente temos o piano elétrico sendo o centro das atenções. O dedilhado é triste, trazendo o baixo de Malheiros para contar que “Maria e José se amaram, e um lindo menino nasceu, depois eles dois brigaram e o menino sofreu. Maria seguiu seu caminho, José voltou pra Belem e o pobre menino sozinho sofreu mais que ninguém“. Vamos a ideia que Odair teve para escrever essa canção: “Você vê o Jesus mais com a mãe, você não vê Jesus com o pai. Ninguém me explicou se o pai já tinha morrido ou se o pai não o acompanhava. Eu queria trazer aquela coisa para os dias que eu estava vivendo, de filhos criados diante de uma separação … A separação antigamente era um problema danado, aquela angústia de pegar o filho no final de semana … cada um enche a cabeça da criança de um jeito. É só uma criança.“. A separação era mais um tema polêmico para 1977, tanto que A lei do Divórcio só foi promulgada em 26 de novembro de 1977 (levando Odair a criar outra canção polêmica já em 1978, “Agora Sou Livre (O Divórcio)”. A questão do órfão filho de José e Maria segue com ele vivendo “seis meses na casa da mãe, seis meses na casa do pai e nessa roda da vida a vida vai“, sobre o andamento suave da bateria e do baixo, uma linda vocalização, em algo que nos lembra um Pink Floyd à brasileira. Linda faixa, e agora a vida do filho de José e Maria começa a ser construída.

Entramos em “Fora da Realidade”, faixa que encerra o lado A, e que é um rock para cima, até com um tema quebrado. Aqui voltamos a concepção do filho de José e Maria, e o dilema da gravidez de Maria. Vamos novamente às palavras de Odair sobre sua ideia para esta canção: “Olha que história louca! A mulher tá lá, chega um anjo e fala ‘você vai ser mãe porque um anjo pousou sobre você e você engravidou’. … Isso é um absurdo! Se você for analisar, é um absurdo biológico, um absurdo genético … Ela fala sobre essa dúvida que existia na época e existe até hoje“. Maria pede para ser abraçada, e diz que traz escondida em seu corpo o mais lindo dos segredos. Ao mesmo tempo, José relata o que aconteceu com ele: “Um anjo apareceu no fim da tarde e falou do meu destino, disse que eu nasci pra te aturar e pra ser um bom menino … uma noite em seus braços isso sim é que é viver“. De novo aqui o machismo exaltado, com o “nasci pra te aturar” e “uma noite em seus braços isso sim é que é viver“, ou seja, aguento as coisas por que terei uma noite de sexo. Um belo solo de guitarra surge, e voltamos para o refrão, encerrando então o lado A com mais um solo de guitarra. Destaco ainda a frase “sei que você não gosta de falar, mas na verdade tem medo, bobagem, nosso amor vai ser um sonho quando de verdade ele existir“, ou seja, quando o filho do casal nascer. Ariovaldo Contesini participa nessa faixa nas percussões, apesar de não creditado no álbum.

Texto promocional sobre o álbum exclusivo para as rádios

A primeira canção “podada” viria aqui. “Fera” só foi ganhar vida em 2015, no álbum Dia 16. É uma música com muita guitarra, na linha Stones, e com uma letra que exalta o sexo: “olha eu não conhecia o que você mostrou, você foi além da conta e me conquistou. Você gosta quando faz e não faz por fazer, seu amor é tão gostoso que não dá pra esquecer“. José e Maria se entregam a relação carnal, aos desejos sexuais, e José se apaixona pela “Fera, Fera que me dá prazer”. Agora casados, José e Maria podem curtir a relação tranquilos, sem medo do preconceito, e aqui Odair novamente crítica a Igreja com “agora aquele nosso desejo não será mais pecado, e o que não era certo agora não será errado … desbancar qualquer preconceito para a história contar“. O solo de guitarra é áspero, e o embalo dos Stones torna a faixa ainda mais atrativa. Seria legal ter ouvido ela com a Azymuth, mas certeza que teria um embalo mais swingado. Por outro lado, acho estranho Odair ter colocado “Fera” e “Fora da Realidade” após a faixa-título, mas enfim, seguimos na ordem da cabeça de Odair.

“Só Pra Mim, Pra Mais Ninguém” continua a história, voltando para a terceira faixa do lado A, e novamente, mandando o machismo direto nos sulcos do vinil. A letra destaca o ciúme e a posse de José sobre Maria: “Olha meu bem, quando eu por acaso sair tranque a porta do seu coração e não abra pra ninguém … só pra mim seu bem … o perigo está sempre no ar, basta apenas uma troca de olhar, não olhe pra ninguém” é a definitiva demonstração de controle do homem sobre a mulher. O piano elétrico e orquestrações, junto de violão e baixo, trazem uma canção bem comercial. Vozes femininas (provavelmente do Trio Esperança, não creditados) levam aos vocais com ecos de Odair, em uma faixa suave e bonita, apesar do machismo extremo da letra (que certamente faria sucesso se não fosse o desprezo geral que o disco ganhou).

Coisas Simples (1978) traz canções que foram limadas de O Filho de José e Maria

Na sequência deveria vir “Agora Eu Sei”, que acabou saindo no álbum seguinte (o citado Coisas Simples, de 1978). A faixa começa com um riffzão de guitarra (a cargo de Sergio Dias) e o piano, com a voz rasgada de Odair dizendo que “agora eu sei por que razão você não quis ficar comigo“. É José se referindo a uma traição de Maria, levando a ” a gente gosta sem querer a gente ama é sem saber“, que parece ser uma frase dita por ambos. Maria então responde “andei pela vida pra ver como era, perdi o meu tempo pois ele não espera, valeu a pena eu tentar a sorte, encontrei razões mais fortes que a morte“. Ou seja, Maria tentou a sorte de se submeter aos seus desejos, e não deu bola às ameaças de José, encontrando razões para a separação. A faixa me lembra muito Joe Walsh solo desse período, principalmente pela levada americana do piano e pelas quebradas no meio da canção, além dos solos que Serginho coloca entre as falas de Odair. Fico pensando como seria O Filho de José e Maria se tivesse sido gravado por Sergio Dias ao invés de Hyldon, que mesmo sendo um ótimo músico, não tem a veia roqueira de Serginho.

Voltamos então ao que ficou registrado em O Filho de José E Maria, e a sequência é “O Sonho Terminou”, terceira faixa do lado B, onde os teclados viajantes e a bateria dão uma ideia muito diferente do que ouvimos até então no disco. É a vez do personagem central começar a narrar sua história. Odair surge gritando “todos nós já nascemos um pouquinho bandido todos nós temos no corpo um segredinho escondido“. O personagem já revela aqui suas experiências, primeiro que é bandido, o que implicitamente revela o uso de drogas pelo mesmo, e indagando-se sobre sua sexualidade, sobre o medo do preconceito e sobre qual o seu papel como ser humano. Chama a atenção a agressividade vocal de Odair, principalmente na segunda metade da canção, quando exalta que “as pessoas precisam saber da verdade, pois elas se enganam com seu modo de ser, não sei por que razão você não se assume pra viver“, ainda mais para alguém como Odair. O final com o “todos nós, todos nós” é de uma agressividade tremenda, e eu digo tranquilamente que esta é a faixa mais roqueira de O Filho de José E Maria, principalmente pelos teclados psicodélicos e efeitos musicais que lembram uma viagem. Delirante, e que o pessoal LGBTQIA+ deveria ouvir para cantar em dia de passeatas do grupo.

Odair cabeludo em 1977. Os fãs de Odair não queriam o rock, e os fãs de rock não queriam Odair

A dúvida sexual do filho de José e Maria segue em outra faixa que não aparece no LP original, “Forma de Sentir”. Esta também saiu em Coisas Simples (com o subtítulo É Proibido Proibir), e é impressionante que a censura tenha vetado ela inicialmente, mas deixado ser lançada em 1978, pois é com certeza a mais apelativa canção homossexual criada para a trama aqui apresentada. O piano e a orquestração, junto de baixo e bateria, mostram mais uma canção bem leve e popular, e a letra, puta que pariu, é muito, mas muito defensora do homossexualismo. Vamos a ela: “Sei que és entendido e vais entender que eu entendo e aceito a tua forma de amor … ame, assuma e consuma o teu verdadeiro sentido do sentir, e nem pense que eu vou proibir“. Só aqui, se eu fosse um censor, já iria cair para trás na cadeira. Afinal, a palavra “entendido” era uma gíria entre os homossexuais para “gay”, e isso surge logo de cara na canção, assim como “consuma” surge com o significado duplo de consumir (drogas) e consumar (fazer sexo). Que coragem de Odair criar algo assim, não preciso nem entrar em detalhes. Mas ele consegue “piorar”, ou seja, deixar ainda mais explícita a homossexualidade do Filho de José e Maria: “o dobro do verso o dobro da flor, o dobro do corpo o dobro do amor, o beijo no beijo o igual no igual, trocando, entregando, buscando, chegando ao delírio final“. Caralho Odair, vai ser gênio assim na ditadura. A faixa encerra-se com Odair cantando “É proibido proibir”, o que para mim é uma homenagem clara à Caetano Veloso e sua controversa (até então) posição sexual nos anos 70. Afinal, quem melhor no Brasil que Caetano para simbolizar alguém tão ambíguo sexualmente em 1977?

“Gaiola” é a canção que viria aqui, mas acabou não saindo do papel, e até hoje nunca foi registrada por Odair. Ele revelou apenas uma frase da mesma: “Estamos presos na gaiola da vida; Estamos com as asas partidas; Vamos então botar as cartas na mesa”. Isso segue também em “Louco Por Você (Por Você Eu Sou Louco)”, faixa que acabou entrando em Coisas Simples, e que tem o protagonista revelando sua paixão por alguém do mesmo sexo e o seu problema com as drogas: “por você estou louco, ando ate meio grogue, seu amor eu preciso mas você diz que não pode … por você estou louco mesmo quando estou sóbrio“. A canção é uma balada-rock bem anos 50, gostosa de se ouvir, com bastante presença de naipe de metais, e é mais um momento que fica estranho como a censura deixou passar para Coisas Simples, mas totalmente compreensível de ser vetada para O Filho de José e Maria, apesar de que de forma isolada, parece uma canção de um homem para uma mulher.

Dedicatória na contra-capa de O Filho de José e Maria logo após o lançamento do álbum

O personagem decide que irá encarar a realidade e mostrar-se ao mundo como homossexual, e isso acontece em “É Assim …”, a quarta faixa do lado A, que também já encaminha para o fim da história. Curto bastante o órgão e o riff da introdução, além do ritmo quebrado da mesma, mais uma na linha Stones/Joe Walsh. Surge o protagonista com uma voz chorosa: “Deve ter alguém que entenda o meu lado negativo, vou fugir dos meus problemas vou em busca do desconhecido … a gente não se assume com medo de tudo”. O filho de José e Maria está pensando no suicídio, ao mesmo tempo que sabe que terá que se libertar dos preconceitos e mostrar sua sexualidade (o lado negativo é claramente a homossexualidade), o que é ressaltado na última estrofe: “A última emoção na vida a certa tem que ser a morte, morrer ainda não é proibido que tal a gente tentar a sorte“. Genial! Me lembra muito o personagem de “Bohemian Rhapsody” do Queen, que diz que “matou um homem” sendo na verdade ele mesmo admitindo sua homossexualidade. O refrão destacando o nome da canção é o personagem aceitando tudo como é, e foda-se o resto, com o coral dando aquela sensação de que sim, o personagem cometeu o suicídio e encontrou-se com os anjos no céu!

Isso é um ponto que passava pela cabeça do próprio Odair. Não seu posicionamento sexual, mas o fato de cometer o suicídio. “Eu não cheguei a pensar em suicídio, mas por várias vezes eu estive para morrer. Eu cheirei muita cocaína. Em determinado momento, uma cheirada a mais eu podia ter morrido. Uma vez eu cheguei a pensar até… Eles tinham acabado de fazer aquela ponte Rio-Niterói. Cheguei a pensar que talvez fosse legal eu parar o carro lá em cima, me jogo lá de cima e foda-se. Depois nêgo acha o carro e imagina… Pula de lá e acaba com isso. É, então cheguei a pensar, sim. É aquilo, falaram que o cara tá louco. Eles não estavam certos, mas também não estavam totalmente errados“. Ainda sobre “É Assim …”, um grande rock setentista em minha visão, com direito a solo de talk box e um baixão trovejante, destaco que é uma composição em parceria com Maxine, um autor que não existe, e sim mais uma invenção da cabeça de Odair.

As letras na capa interna do disco

Seguimos com “De Volta Às Verdadeiras Origens”, quarta faixa do lado B, com o saxofone mandando ver, um embalo fantástico da Azymuth e um swing onde o baixão de Malheiros ressoa pela casa. Odair canta “minha porta sempre aberta, pode entrar fique a vontade … todo mundo tem problema quando vive sem amor“. A priori não sabemos quem está falando isso, parece ser o protagonista, mas, logo quem fala se revela. “Beba um pouco do meu vinho, coma um pedaço de pão, tome um pouco de carinho, ver curar a solidão … eu te espero há tanto tempo, como sofri com seu sofrimento, o seu passado não tem importância, não guarde trauma, não mate a esperança“. Quem canta é Deus, ou Jesus, um ser superior que recebe o filho de José e Maria, perdoando-o pelo seu passado com drogas e com as relações homossexuais, como um bom cristão deve fazer. É a comprovação de que ele morreu, em uma canção ótima e embaladíssima no estilo Motown.

“Nunca Mais”, faixa que abre o LP original, na verdade é a penúltima canção. Sua introdução com as cordas e metais lembra o estilo Saturday Night Fever. Os vocais de Odair anunciam “Eu agora sou bem diferente não se assustem e nem se preocupem. Sou o mesmo de antigamente só que agora nada mais me encuca. Encontrei uma pessoa amiga ensinando as coisas boas da vida, e os meus traumas fui deixando pra trás, e o meu passado não me assusta mais, nunca mais“. O personagem se liberta dos seus dilemas morais, encontrando uma pessoa amiga (Deus?) para superar os traumas, gritando em plenos pulmões o nome da canção. Isto em um ritmo dançante, na faixa mais comercial do disco, onde vocais de apoio, cordas e a tecladeira wonderiana se destacam. O filho de José e Maria se encontra consigo mesmo: “Sou o filho de José e Maria, morri de tristeza para viver de alegria … sou o que resta de uma noite esquecida, noite de festa, razão dessa vida“. Outra excelente faixa, dançante e com certeza, chocante para um fã de Odair na época!

As demais letras na capa interna

“Que Loucura” encerra o disco e a história em uma canção muito alegre e com uma energia altíssima. A guitarra embala uma excelente canção para encerrar o disco. O personagem canta: “Essa foi a minha história, mas bem que podia ser a de vocês, um problema todos os dias, mais um trauma chocante uma vez por mês“. Que arranjo orquestral, e que embalo! A auto-piedade do protagonista ressalta-se no refrão: “Olha, eu era tão menino e ninguém teve dó” e segue na apoteosoe final: “mas que loucura, a gente tem que viver, hey hey hey hey!!!” (mais uma citação aos Stones aqui). Um show de percussão, um show orquestral e um show das guitarras de Hyldon e Jaime Alem. Para mim, fica claro que o filho de José e Maria acaba ressuscitando e seguindo sua vida, assumindo sua sexualidade e totalmente nem aí para o mundo preconceituoso em que vive, com esse “a gente tem que viver” dando essa clareza de que, independente do que somos, mesmo sendo uma loucura para uns, a gente tem que viver. Uma aula de defesa à todos os oprimidos e considerados marginais na sociedade conservadora que – ainda  – predomina no mundo. Vamos ao criador da obra: “a ideia era que terminava num balé, com as pessoas todas dançando, as bailarinas tirando a roupa, ficando só de roupas mais íntimas, colocando tudo para fora“. Imaginem a loucura que seria isso? Ela nunca foi colocada em prática, mas quase foi ao ar em produção da Rede Globo, que queria fazer O Filho de José e Maria como parte de um programa chamado Sexta Super, que infelizmente, também não foi ao ar.

Li diversas críticas e resenhas sobre o álbum falando que o filho de José e Maria é Jesus Cristo, mas em nenhum momento Odair cita o nome de Jesus ao longo de todo o álbum. Portanto, essa analogia não é a verdadeira, mas apenas uma provocação feita pelo próprio Odair, que afirmou em entrevista posterior: “cara, eu não estou falando só da vida de Jesus Cristo. Eu usei isso como ponto de referência. Porque nós, do Ocidente, temos Jesus como referência, então eu usei essa referência. ‘Ah, mas não podia!’ Não podia na sua opinião, na minha podia.”

Quero comentar agora um pouco sobre a capa do álbum, com arte de Rodrigo Argollo Ferrão, fotografia de Ivan Klingen e coordenação gráfica de Ney Tavora, e que também trouxe seus “Ps” de polêmicas. A capa traz um Odair de cabelos compridos, sem camisa, com o nome do álbum brilhando através de uma luz neon vermelha, como se Odair estivesse saindo de uma farra em uma boate ou prostíbulo, mas que também lembra uma auréola. Duas pequenas nuvens, também acima de sua cabeça, sustentam dois músicos (um guitarrista e um pianista), dando o tom do que estará nas canções do disco. Na contra-capa, Odair posa a la Pink Floyd em Ummagumma, com todos instrumentos usados no disco, no total de 12, com uma mesa que ainda tem pão e vinho, em uma clara alusão a última ceia. Vamos as palavras de Odair: “Na época, o Guilherme chamou o artista plástico Rodrigo Argollo. A frente é toda dele, deu muito trabalho. Foi alugado um estúdio gigante no Rio, aqueles estúdios de fotografia. Foi montado um cenário, foi montado tudo … E a contracapa é provocadora porque a ideia era ter uma ceia. Jesus sonhou com os 12 apóstolos, eu vou sonhar com os instrumentos“. Tendo capa-gatefold, ainda traz encarte com as letras, para poder ser acompanhada a história.

O Filho de José e Maria sendo apresentado em São Paulo, na Virada Cultural de 2013

Em maio de 2013, trinta e seis anos após o lançamento do disco, Odair apresentou O Filho De José E Maria na íntegra, como concebido, durante a Virada Cultural de São Paulo, no Theatro Municipal da cidade, que acabou sendo lançado em um excelente CD/DVD no ano seguinte. Nesta apresentação, além das 10 faixas do LP, Odair trouxe as músicas que foram lançadas em Coisas Simples e também “Viagem”, de Odair (1975), como canção pertencente à história, inserida entre “De Volta as Verdadeiras Origens” e “Nunca Mais”. Mas esta não foi escrita para O Filho de Maria e José, entrou apenas por encaixar no contexto geral.

Com o passar dos anos, e o crescimento da popularidade do álbum, Odair apresentou por diversas vezes o disco novamente na íntegra. Destaque para alguns shows especiais, como o de Belém em 16 de dezembro de 2023, tendo nada mais nada menos como a Azymuth como banda de apoio, e mais recentemente, os shows de 31 de janeiro e 01 de fevereiro deste ano, no SESC Pompeia.

Odair apresentando O Filho de José e Maria no SESC Pompeia, 2025

Odair já teceu diversos comentários sobre O Filho de José E Maria. Trago aqui este que achei o mais relevante: “A igreja não gostou, porque achavam que eu tava falando de Jesus Cristo – e tem uma música que o cara fica doidão, outra que ele não sabe se é bicha ou macho … A partir desse disco, as pessoas começaram a fazer questionamentos sobre a minha competência pra vender discos, mas foi até legal, porque você ter a obrigação de todo disco ter de vender é uma bosta. Até porque você não consegue isso a vida inteira. E se você analisar, essa coisa de fazer sucesso, fazendo músicas direto, é um ciclo de sete anos. Pode ver, todo mundo, tem raras exceções, só aguentaram sete anos, pode reparar, Beatles mesmo: sete anos“.

O músico foi ameaçado de ser excomungado da Igreja Católica após o lançamento da obra, e passou anos sem emplacar sucessos. A estrategia de Odair foi por água abaixo, e nos próximos anos, ele naufragou sua carreira, jamais conseguindo voltar ao sucesso pré-O Filho de José E Maria. “Eu diria que a rejeição ao disco não chega a ser uma coisa que me assombra. Eu fico olhando a minha vida, junto com meu trabalho de 1980 a 2000 … cara, eu desperdicei tudo. Tem discos desse período que venderam bem, 200, 300 mil cópias, um de 1990 que vendeu quase 500 mil cópias, …, mas não são bem-feitos enquanto trabalho de um artista. São muito fracos e me incomoda bastante“. Milhares de cópias acabaram devolvidas e dissolvidas na fábrica da gravadora.

Reencontro da Azymuth com Odair José para interpretarem O Filho de José e Maria em Belém, 2023

Segundo ele, a classificação empregada pela crítica era reflexo de desinformação ou ironia, pois a “levada” daquele trabalho remetia mais à soul music. “É rock mesmo o que eu quero fazer agora. Uma coisa mais jovem, mais pra fora, mais alegre. Quero ser eu mesmo, mas fazendo aquele sonzão inglês, de guitarra, do Peter Frampton“. Em entrevista a Folha Ilustrada de abril de 1977, Odair confessou que, por trás do projeto, não havia “perseguição ao sucesso fácil, mas a preocupação de iniciar um trabalho de maior qualidade”. Anos depois, o jornalista Marcus Preto reconhece que “o problema é que os fãs de Odair José não queriam aquele som, e os fãs daquele som não queriam Odair José“.

Em 2019, a coleção Clássicos em Vinil da Polysom resgatou o álbum, fazendo o relançamento que acabou apresentando o disco para toda uma nova geração de fãs, que se quer imaginavam desta audácia em Odair gravar um disco de rock, ainda mais uma obra-prima que faço questão de mostrar para nosso leitor da Consultoria do Rock. Encerro novamente com as palavras de Odair: “Minha vida musical, e até como pessoa, não teria razão nenhuma de ser se não tivesse esse disco. E as pessoas que conhecem o Odair José sem conhecer esse disco não conhecem o verdadeiro Odair José … Não é uma prepotência, não é uma arrogância, mas você me desculpe: o disco hoje é genial, imagina em 1977? Eu fiz uma coisa genial e não podia ser genial? Qual o problema, a minha genialidade assustou quem? As músicas de O Filho de José e Maria na verdade são o dia-a-dia do ser humano“. Espero que você rompa a barreira do preconceito, e curta uma das grandes e geniais obras nacionais em todos os tempos.

Contra-capa do álbum, remetendo à Santa Ceia, também causou polêmica

Track list

1. Nunca Mais

2. Não Me Venda Grilos (Por Direito)

3. Só Pra Mim, Pra Mais Ninguém

4. É Assim…

5. Fora da Realidade

6. O Casamento

7. O Filho de José e Maria

8. O Sonho Terminou

9. De Volta Às Verdadeiras Origens

10. Que Loucura

2 comentários sobre “A Little Respect: Odair José – O Filho De José E Maria [1977]

    1. Sim sábio, O Evangelho Segundo Odair. Bom livro, mas penso que podia ter aprofundado mais algumas questões

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