1965 – O Ano em que o Rock Amadureceu

1965 – O Ano em que o Rock Amadureceu

Por Marcello Zapelini

Muita gente acredita que o rock se tornou “adulto” em 1966, quando The Beatles, Beach Boys, Bob Dylan e outros artistas lançaram álbuns extremamente marcantes e muito mais maduros do que os discos imediatamente anteriores. Outros apontam o ano de 1967 e a ascensão da psicodelia e da cena de São Francisco. Por fim, os mais radicais preferem os anos 70 para indicar essa maturidade. Peço licença para nadar contra essas correntes e argumentar que o ano de 1965 é que representou a virada de mesa do estilo.

Heróis do rock nos anos 50: Buddy Holly, Bill Haley, Elvis Presley, Little Richard e Jerry Lee Lewis

A década de 50, para o rock, é a dos “heróis solitários”: Elvis, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little Richard e tantos outros artistas que balançaram o mundo da música popular colocando seus nomes nos cartazes dos teatros. Já os anos 60 testemunharam a ascensão das bandas (ou, como se dizia na época, dos conjuntos), bem como o salto continental dos Estados Unidos para a Inglaterra, que toma a primazia, como mostra o fenômeno da British Invasion em 1964. Essas bandas começam garimpando a mina de ouro dos anos 50 (é só pensar nos Stones e Beatles gravando Chuck Berry, por exemplo), e começam lentamente a evoluir para um som próprio, que incorpora outras influências. Experimentos com novos instrumentos também começam a ser feitos.

E de repente, as pessoas começaram a prestar atenção nas letras! A música deixava de falar apenas para os pés, mas também ao cérebro. Bob Dylan pode ser considerado um dos principais responsáveis pela atenção dispensada às letras, com suas longas diatribes recheadas de imagens metafóricas bem elaboradas; independentemente disso, o rock começava a querer transmitir uma mensagem, a querer ser visto não só como um convite à dança e à diversão, mas também como um estímulo ao intelecto. Por outro lado, o começo de um foco maior nas letras não significou descuidar-se do instrumental; por exemplo, The Yardbirds capitalizava em cima da habilidade de Eric Clapton na guitarra, The Beatles e The Beach Boys começaram a elaborar mais os arranjos, incluindo instrumentos diferentes e deixando um pouco a trindade sagrada da guitarra-baixo-bateria – mas enquanto a turma de Liverpool gravavam quase todos os instrumentos sozinha, os garotos da praia progressivamente incorporavam músicos de estúdio para as criações de Brian Wilson.

Os Fab 4 em 1965

Em 1964, os dois singles mais vendidos na Billboard tinham sido “I Wanna Hold Your Hand” e “She Loves You”, canções emblemáticas da Beatlemania. Se a segunda é marcada para sempre pela inocente repetição do yeah yeah yeah (e nunca vou esquecer de ver o LP A Hard Day’s Night sendo vendido aqui como Os Reis do Iê Iê Iê mesmo no começo dos anos 80…), a primeira me traz a imagem da eternamente sarcástica Grace Slick do Jefferson Airplane perguntando se era sério que alguém acreditava que Lennon e McCartney, dois homens de vinte e poucos anos, só queriam segurar a mão da namoradinha. Acredito que elas descrevam bem como eram as músicas de maior sucesso: letras românticas que não chocavam os pais e faziam as menininhas beijarem as fotos dos Beatles no caderninho de recortes.

O single de “( I Can’t Get No) Satisfaction”

Agora pule para 1965 e compare com “(I Can’t Get No) Satisfaction”, primeira colocada em 1965. A letra de Mick Jagger ousava vocalizar o que qualquer jovem sentia, ou seja, a insatisfação de ter que se encaixar num mundo em que ele não tinha criado e lidar com pessoas que nada lhe diziam (“he can’t be a man ‘cause he doesn’t smoke the same cigarette as me”) ou, ainda, não entendia (“the man comes on the radio, he’s telling me more and more about some useless information”). Apesar de primitiva, a letra da música dos Stones não  tem nada a dizer sobre namoricos adolescentes (ainda que o trecho que fala “try to make some girl” possua evidente conotação sexual), e deixa bem claro que havia aquela revolta juvenil que, nos anos 50, apavorara os pais com o filme Rebel Without a Cause (Juventude Transviada) ou com o livro The Catcher in the Rye (O Apanhador no Campo de Centeio), e que iria explodir de vez com os punks em 1977. Em seguida os Stones teriam “The Last Time” (com toda a misoginia de Mick Jagger) e a letra acelerada até se tornar quase incompreensível de “Get Off Of My Cloud” nas paradas – Jagger e Richards estavam crescendo como compositores.

Voltando a falar dos Beatles, como esquecer o que eles fizeram em 1965? Deixando de lado os singles, a banda lançou dois álbuns e um filme. Se Help!, o filme, é apenas um pouco menos tolo do que A Hard Day’s Night, sua trilha sonora é incomparavelmente superior. Claro, Lennon sempre reclamou de ter gravado a faixa-título acelerada e não lenta e angustiada, como se sentia (num ritmo que casaria melhor com a letra) e tem várias músicas que ninguém se lembraria mais se não fossem dos Quatro Cabeludos, como “The Night Before”, mas o disco traz “Yesterday”, com seu arranjo orquestral e uma letra melancólica e introspectiva, e a solidão de “You’ve Got to Hide Your Love Away”. Mas o melhor do ano ainda estava por vir, pois “Rubber Soul” trazia uma banda que começava a experimentar voos mais elevados para ver se deixava de ser apenas um fenômeno adolescente. Afinal, como esquecer o corinho “tit-tit-tit-tit-tit” em “Girl”? Os meninos bonzinhos de Liverpool já não eram mais tão meninos nem tão bonzinhos assim… E há a famosa cítara em “Norwegian Wood”, ainda que a música precise tanto dela em seu arranjo quanto um pastor alemão de uma air fryer, mas não se pode negar que há uma ousadia no ar. Por fim, destaco a ode à inutilidade de certas pessoas que andam por aí em “Nowhere Man”; a música alegre contrasta vivamente com a diatribe de Lennon, uma das poucas letras da época que não envelheceram mal.

Single de “My GeneratioN”

Ainda na Inglaterra, that little band from Shepherd’s Bush dava seus passos na busca do sucesso. The Who lançara “I Can’t Explain” como seu primeiro single, e no segundo, “Anyway Anyhow Anywhere”, mostrava que não era como as outras bandas, ao investir pesado nos efeitos na guitarra de Pete Townshend (sim, eu sei que “Satisfaction” já trazia uma guitarra distorcida e “You Really Got Me” é quase uma precursora do heavy metal, mas a música do The Who consegue ser mais anárquica). E no terceiro single a banda investia no abismo entre as gerações mais jovens e as mais velhas: quem, antes do The Who, ousara incluir um verso como “hope I die before I get old” numa música direcionada às paradas? Mais ainda, que música pop trazia um solo de baixo? E para acabar, a maioria não percebeu na época, mas o vocal g-g-g-gaguejado de Roger Daltrey imitava a fala de um cara alto de anfetamina. Quando o álbum saiu, no final de 1965, a artilharia de Keith Moon na bateria em “The Ox” deve ter assustado muito papai que entrou na hora errada no quarto do filho ouvindo música…

The Yardbirds em 1965, tendo como destaque Jeff Beck (primeiro à direita) nas guitarras

Enquanto isso, The Yardbirds, que conquistara fama graças à presença de Eric Clapton e suas habilidades guitarrísticas, mostrava que havia espaço para uma banda ser bem-sucedida a partir de uma estrela num instrumento musical, como ocorria no jazz. Mas “For Your Love” não permitia concluir isso; os fãs de Clapton tinham que virar o disquinho para ouvir seu ídolo estraçalhar em “Got to Hurry”, uma instrumental que, embora fosse no estilo que o Slowhand gostava, não o segurou na banda. Melhor para os Most Blueswailing Yardbirds, pois o substituto de Clapton, Jeff Beck, não ficava atrás na habilidade e não era um purista do blues, aceitando bem outros estilos. Isso fica bem claro no single seguinte, a monumental “Heart Full of Soul”, que após uma tentativa frustrada com uma cítara, apelou para El Becko para, numa guitarra entupida de distorção, emular o som do instrumento indiano. E poucos meses depois ainda havia o canto gregoriano de “Still I’m Sad”, lançada como duplo lado A com “Evil Hearted You” (essa último, um pouco mais convencional). O sucesso dessas músicas nas paradas britânicas demonstrava que a paleta sonora dos músicos de rock estava se expandindo, e The Yardbirds com Beck se consolidava com uma das bandas mais criativas nesse campo.

A espetacular Graham Bond Organisation

Ainda na Inglaterra, é essencial mencionar uma das mais impressionantes formações dos anos 60 nesse país: The Graham Bond Organisation. Além de Bond (um vocalista meia-boca, mas igualmente talentoso no órgão e no sax), ainda se tem Dick Heckstall-Smith nos saxofones, e dois jovens que marcariam época: Jack Bruce (vocal e baixo) e Ginger Baker (bateria). Para completar, a banda ainda teve um certo John McLaughlin como guitarrista. Nos dois LPs lançados em 1965, The Sound of ‘65 e There’s a Bond Between Us, a banda une jazz, blues e rhythm & blues numa impressionante demonstração de talento, abrindo caminho para grupos como o Cream e toda a turma do jazz rock dos anos 70. Além disso, no primeiro disco Bond foi provavelmente o primeiro músico de rock a usar um mellotron, e em “Wade in the Water” ele introduzia os trabalhos com “Tocatta and Fugue in D Minor”, de Bach, o que ocasionalmente deu uma ideia a um jovem chamado Keith Emerson. E no segundo disco tem-se a versão original de “Walkin’ in the Park”, que o Colosseum regravaria posteriormente, bem como “Dick’s Instrumental”, com Heckstall-Smith mostrando que dava para misturar jazz e rock sem perder nada em nenhum dos estilos. Graham Bond, gordinho e feioso, não se encaixava na hipótese de ídolo adolescente, mas a sua Organisation deixaria filhotes fantásticos nos anos seguintes.

The Beach Boys Today!, álbum de mudança sonora dos Beach Boys

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, 1965 também representava mudanças. Começamos com o mais improvável: Brian Wilson decide sair da praia e buscar novos ares para sua música. The Beach Boys Today mostra que Wilson estava progredindo rapidamente. O pop alegre e, por que não, ensolarado da banda vinha se tornando mais elaborado, mais sofisticado e Today o revela (é claro que a banda ainda tinha muito a progredir, tanto que sua obra-prima, Pet Sounds, sairia no ano seguinte, e só se pode especular o que Smile poderia ter se tornado se Brian não tivesse sofrido um colapso nervoso. Mas, em 1965, depois de vários álbuns leves e quase inconsequentes (diversão pura, lógico!), este “Today” traz o belo arranjo vocal e instrumental de “Please Let me Wonder”, Brian se arriscando no cravo em “For When I Grow Up (To be a Man)”, a beleza de “She Knows Me Too Well”, e, no final das contas, apenas a versão de “Help Me, Ronda” (a versão em compacto, que pede ajuda a uma certa Rhonda, é bem mais interessante) e a tolice de “Bull Session With ‘Big Daddy’” puxam o álbum para baixo. O interessante é que o álbum foi sequenciado de modo a concentrar o material mais dançante no lado A e as baladinhas no B – o que facilitava a vida de quem tinha conseguido tirar uma gatinha para dançar na festa da turma. Claro, Summer Days (And Summer Nights), que foi lançado a seguir, interrompeu a progressão de Brian e seus garotos da praia (ainda que tenha rendido a ótima “California Girls”), e Party! é uma bobagem exigida pela gravadora Capitol (que mantinha uma rotina de três discos por ano), mas nada tira o fato de que Brian Wilson percebeu que os tempos estavam a-mudando (fãs do Dylan já captaram) e que ele tinha capacidade para pegar essa onda de mudança antes de muita gente.

The Byrds liderados por Roger McGuinn (primeiro à direita)

Enquanto isso, falando em Bob Dylan, The Byrds tomavam para si “Mr. Tambourine Man” e incluíam guitarras, baixo e bateria na música do trovador folk (segundo fontes fidedignas, ele teria dito “wow, you can really dance to that” ao ouvir a versão da turma de Roger McGuinn). The Byrds eram uma banda bastante variada: Gene Clark era um ótimo compositor de melodias pop no melhor estilo Beatles, Roger McGuinn e David Crosby eram fãs de folk, Chris Hillman gostava de country e bluegrass, e Michael Clarke, que ainda era um baterista iniciante, tinha influências de surf music, pop e rock’n’roll clássico. O primeiro LP dos Byrds trazia versões para quatro músicas de Bob Dylan, uma de Pete Seeger e outra de Jackie de Shannon (além, é claro, da velha “We’ll Meet Again”) e apenas cinco composições originais de Gene Clark (duas em coautoria com Roger McGuinn), mas o grande destaque mesmo reside na faixa-título. O que era uma balada voz e violão meio enjoadinha se tornou uma bela canção pop, com guitarras proeminentes e um arranjo vocal fantástico, o que sem dúvida serviu para tornar a música de Bob Dylan acessível aos rockers da época. É interessante ver que uma banda iniciante, apenas um ano depois dos Rolling Stones, recorria a um artista contemporâneo em vez de voltar ao passado, e seguramente “Mr. Tambourine Man” deu algumas ideias a mr. Robert Allen Zimmermann, que iria mudar sua música praticamente na mesma época.

O jovem Dylan em 65, buscando novos caminhos sonoros

E quanto ao próprio Dylan? Bob estava de saco cheio de ser um cantor folk com um violão e uma gaita, e decidiu eletrificar seu som; os primeiros frutos comporiam um lado de Bringing it All Back Home (LP lançado quase simultaneamente ao single dos Byrds) e a famosa apresentação no festival de Newport, que enlouqueceu o decano Pete Seeger. Abrindo com a letra praticamente declamada, stream of consciousness, de “Subterranean Homesick Blues”, que puxa um repertório bastante variado de músicas elétricas e acústicas bastante diferentes das que Dylan registrara nos álbuns anteriores. Poucos meses depois ele lançaria Highway 61 Revisited, quase uma coletânea em formato de LP de inéditas que marcaria sua carreira para sempre; à parte a longa “Desolation Row”, todas as músicas têm arranjos com instrumentos elétricos. O álbum rendeu, entre outras músicas de destaque, “Like a Rolling Stone”, que com mais de seis minutos de duração conseguiu furar a barreira das rádios e tocaria bastante. Bob Dylan conseguiu provar que era possível, no rock, fazer música para pensar e ainda assim ser comercialmente bem-sucedido, e por causa disso, sua contribuição para o ano de 1965 como um ponto de virada não pode ser subestimada.

É claro que seria possível falar muito mais, mas vou encerrar por aqui recuperando a contribuição do Haaaardest Working Man in Show Business, James Brown. Desde os anos 50 Brown vinha levando o rhythm’n’blues a percorrer caminhos bem pouco trilhados, efetivamente se estabelecendo como um inovador na música negra. O sucesso se estendeu inclusive às paradas pop (vide seu frenético Live at Apollo de 1963). E no ano de 1965 ele lançaria “Papa’s Got a Brand New Bag”, um blues de doze compassos acelerado para se tornar irresistivelmente dançante. Com um riff insistente de guitarra do genial Jimmy Nolen e um forte arranjo de metais, “Papa’s…” é uma das músicas precursoras do funk (o verdadeiro, não esse pastiche dos dias atuais) – e do funk deriva boa parte da música negra posterior. Em “Try Me”, seu single imediatamente posterior, Brown voltaria para o terreno da balada, mas “I Got You (I Feel Good)” continuaria o caminho trilhado por “Papa’s…”, e nos anos seguintes outros pioneiros consolidariam o novo panorama do funk. James Brown merece estar na lista dos inovadores que transformaram o rock por muitas razões, e uma delas foi justamente por chamar a atenção para o ritmo, despindo as músicas de firulas desnecessárias e concentrando naquilo que faz você movimentar os pés.

James Brown e Mick Jagger em 1965

60 anos atrás, o rock entrou numa trajetória evolutiva que se ramificaria por diferentes caminhos nos anos seguintes. É claro que em 1966-67, bandas como o Cream, Procol Harum, Moody Blues, The Mothers of Invention, Jimi Hendrix Experience, Grateful Dead, Jefferson Airplane (e muitas outras mais) impulsionariam a mudança, mas penso que trouxe evidências suficientes para provar que as sementes foram plantadas em 1965 – algumas dessas sementes seriam fumadas posteriormente, mas isso é outra história.

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