Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte II]

Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte II]

Por Marcello Zapelini

Dou sequência (e encerramento) hoje à trilogia cristã lançada por Bob Dylan no final dos anos 70, início dos anos 80. O texto inicial contextualizou esse período, e apresentou os álbuns Saved e Slow Train Coming. Hoje, falo sobre o último disco, Shot of Love, bem como explano um pouco mais sobre esse importante período na carreira do bardo americano. Deixo também uma singela homenagem e felicitações para ele, que completará 82 anos amanhã, dia 24 de maio.


Shot of Love (1981)

O terceiro disco é o mais variado de todos. Trata-se de um dos poucos discos de Dylan a incluir uma música adicional em sua edição em CD: “The Groom’s Still Waiting at the Altar” foi inicialmente lançada como lado B do single “Heart of Mine” e depois incorporada – o que, sem ironias, é uma bênção, pois é uma das melhores músicas do disco: um blues pesado e furioso cuja letra é uma verdadeira torrente de imagens. O álbum em si traz uma reflexão menos devocional da fé, e as letras de algumas músicas foram modificadas, soando menos como pregação cristã, indicando que Bob estava aprendendo a lidar com seus próprios sentimentos religiosos.

Inicialmente, como indica Scott Marshall (autor de “Bob Dylan: A Spiritual Life”), Dylan considerava Shot of Love um dos seus álbuns mais fortes. No entanto, mal recebido pela crítica, o disco vendeu vendeu ainda menos do que seu antecessor. A produção é assinada por Chuck Plotkin, Bob Dylan e Bumps Blackwell, e a banda de apoio traz novamente o núcleo Tackett, Drummond e Keltner, com Carolyn Dennis, Monalisa Young e Clydie King (com quem ele teve um relacionamento) recebendo o apoio de Madeline Quebec e Regina McCrory nos vocais. Donald “Duck” Dunn, Ringo Starr, Ronnie Wood, Benmont Tench e Danny Kortchmar também participaram das gravações.

O disco abre com a faixa-título, outro rock mais pesado do que normalmente se associa a Bob Dylan (que se referiu a ela em entrevista de 1983 como a sua música mais perfeita, que encapsulava tudo o que ele tinha a dizer), e segue com as animadas “Heart of Mine” e “Property of Jesus”, que mantêm o disco num astral elevado até que a elegíaca “Lenny Bruce” se inicia; uma homenagem ao comediante de mesmo nome, a música não se encaixa bem no disco, mas Bob nunca explicou por que a incluiu (eventualmente, ela seria uma das músicas desta época mais apresentadas ao vivo nas turnês seguintes). A religião volta em “Watered-Down Love”, que retoma o clima alegre das primeiras músicas. A música seguinte no CD é a já mencionada “The Groom Still Waiting at the Altar”; o lado B iniciava com o reggae “Dead Man, Dead Man”, este bem melhor do que “Man Gave Names…” do LP anterior. “In the Summertime” põe a harmônica em destaque, uma balada leve que quebra um pouco o ritmo do disco, pois na sequência vem a tensa “Trouble”, uma das minhas favoritas do álbum, em que a letra gira em torno da ideia de que os problemas são intrínsecos à vida humana. O disco se encerra com “Every Grain of Sand”, reconhecida de maneira quase unânime como uma das melhores composições de Bob em todos os tempos, cuja letra se inspira em Keats, Blake e outros grandes poetas da língua inglesa; essa versão destaca o vocal de Clydie King.

Shot of Love ficou conhecido também pelas músicas abandonadas, várias das quais aparecem nas Bootleg Series posteriores. “Caribbean Wind”, por exemplo, é considerada uma obra-prima perdida, mas não se enquadrava no disco, a animada “You Changed my Life” ficou de fora até mesmo dos discos piratas da época, mas teria entrado facilmente no disco, “Angelina” é uma linda balada que também acabou ficando de fora, e há muitas outras composições interessantes disponibilizadas oficialmente nos anos seguintes – embora os registros indiquem que foram registradas pelo menos mais 25 músicas além das onze originalmente lançadas. Ao longo dos anos, Shot of Love também acabou renascendo para o público e a crítica, recebendo alguns elogios.

The Bootleg Series volumes 1 – 3: Rare and Unreleased (1991)
The Bootleg Series vol. 13: Trouble No More (2017)
The Bootleg Series vol. 16: Springtime in New York (2021)

Biograph, de 1985, trouxe músicas raras ou inéditas mescladas àquelas que compõem a mais completa antologia dos primeiros 25 anos de carreira de Bob Dylan (mais sobre essa box pioneira na seção seguinte) – e a fase cristã não foi deixada de lado, indicando que o cantor não renegava esse período. Seis anos depois, uma série dedicada exclusivamente a explorar os arquivos do cantor foi inaugurada com nova box set de 3 CDs, The Bootleg Series volumes 1 -3: Rare and Unreleased. Organizada cronologicamente, a box revisita a fase cristã em seu volume 3, incluindo “Ye Shall Be Changed”, que ficou de fora de Slow Train Coming, uma demo para “Every Grain of Sand” (fantástica, aliás!) e três canções gravadas para “Shot of Love”: “You Changed My Life”, “Angelina” e “Need a Woman”. Nenhuma raridade de Saved entrou no programa, e os interessados no período teriam que esperar mais de 25 anos por elas. Mas a espera iria compensar.

O 13º volume, em sua edição Deluxe, traz oito CDs e um DVD: os dois primeiros trazem gravações ao vivo das suas turnês da época (com material registrado nos primeiros shows em novembro de 79 no Warfield Theatre de San Francisco, prosseguindo por shows nos EUA, Canadá e Europa até novembro de 1981), o terceiro e o quarto são dedicados a músicas inéditas (algumas gravadas ao vivo), versões alternativas e gravações de ensaios e soundchecks. Os CDs 5 e 6 são dedicados a uma recriação de um setlist típico da turnê de 1980, e foram construídos a partir de uma série de concertos em Toronto (Canadá). Em seguida, tem-se dois CDs com um show completo em Earl’s Court, Londres, em 1981. O DVD traz o documentário Trouble No More, e os fãs que adquiriram a box no pré-lançamento diretamente no site de Dylan receberam um bônus, dois CDs com um show completo registrado em San Diego em 1979. Ainda assim, teria sido interessante disponibilizar por completo um dos shows no Warfield para se ter uma ideia de como tudo começou.

De acordo com Clinton Heylin (em Trouble in Mind, um livro dedicado exclusivamente à fase cristã de Dylan), essa fartura de material se deve a dois motivos: o cantor adquirira um gravador de 8 canais de excelente qualidade, bem como assinara um contrato para alugar um estúdio em Santa Monica, Califórnia, o que lhe permitiu gravar demos, ensaios com a banda, bem como seus shows. Muitas composições são inéditas e mostram que os discos da época podiam ter sido ainda melhores (como entender que ele deixou de lado “Making a Liar Out of Me”, “Yonder Comes Sin” ou a linda “Rise Again”?). No todo, The Bootleg Series vol. 13: Trouble No More apresenta 102 músicas, o que à primeira vista parece um excesso.

Acreditem, não é demais. A box é simplesmente fascinante. As versões ao vivo das músicas da fase cristã são sensacionais e Dylan soa forte e sincero, interagindo bem com as backing vocals e fazendo sua guitarra dialogar com a de Fred Tackett. O desempenho dos músicos é estelar, e as reinterpretações dos clássicos, presentes nos CDs 7 e 8, mostram a qualidade do grupo, com destaque absoluto para uma versão incendiária de “Maggie’s Farm”. É verdade que os sermões que Dylan fazia no palco – e que levaram muitos fãs a abandoná-lo – não estão presentes, mas o que importa é a música. Naturalmente, há muita repetição: “Slow Train”, por exemplo, abre seis dos oito discos que compõem a edição Deluxe, mas é interessante ouvi-las em perspectiva, verificando sua evolução ao longo dos anos, e “Gotta Serve Somebody” recebe diferentes tratamentos (a versão do segundo CD, gravada em show na Alemanha em 1981, é fantástica). A versão completa é fundamental; mas, para o fã ocasional, a versão compilada em CD duplo é a melhor introdução possível à fase cristã!

O DVD traz trechos de shows (provavelmente em Toronto, conforme consta do livro de Clinton Heylin, que menciona que alguns shows nessa cidade foram filmados) entremeados a um pregador na Igreja recriando alguns dos “sermões” de Bob Dylan durante os shows. Há a opção de assisti-los em sequência, bem como a de assistir apenas o material ao vivo. Os destaques são muitos: a energia aparentemente inesgotável de Tim Drummond, as cantoras dançando e tocando instrumentos de percussão, o pianista Terry Young abandonando o piano para cantar com as vocalistas, e Bob extremamente animado durante “Solid Rock”. Algumas músicas adicionais são colocadas nos extras, e em “Jesus Met the Woman at the Well”, um ensaio em estúdio, Dylan toca baixo e Drummond, a guitarra solo. No total, são 90 minutos e 18 músicas. Ao final do título principal (The Concert), Dylan, ao piano, interpreta “Abraham, Martin, and John” em dueto com Clydie King num dos momentos mais arrepiantes do DVD.

Com Clydie King, em 1981

Quatro anos depois, Dylan retornou à fase cristã no 16º volume das Bootleg Series, cuja edição Deluxe traz cinco CDs (a regular é, como em quase todos os casos anteriores, um CD duplo). Nos dois primeiros discos tem-se ensaios e outtakes de Shot of Love, comprovando que muitas músicas boas tinham sido gravadas para o disco, inclusive revisitando clássicos como “Cold, Cold Heart”, “Mystery Train”, “Fever” e até “Sweet Caroline”, de Neil Diamond. Clinton Heylin menciona que entre 1980 e 81 Dylan cogitou lançar um segundo volume para Self Portrait, e gravações como essas mostram que ele trabalhou duro. Mas, como mencionado anteriormente, o cristianismo estava deixando de se fazer presente na no trabalho do cantor.

Naturalmente, como essa box se estende até 1985, não há a unidade temática do volume 13, mas ainda assim a complementa bem, especialmente porque Trouble No More se concentra mais em Slow Train Coming e Saved. Organizada em torno das gravações feitas em New York na primeira metade da década de 80, o 16º volume na verdade é mais válido por conta dos dois CDs trazendo gravações inéditas ou versões alternativas para o material de Infidels, mas o material de Shot of Love exige destacá-lo aqui.

E depois?
Dylan afirmou, na entrevista a Kurt Loder, que o termo born again não se aplicava a ele – embora o tivesse usado em 1980 na que concedeu a Robert Hillburn, para o Los Angeles Times; em sua opinião, born again é uma expressão meramente comercial e não tem relação com a fé. Mais ainda, ele disse que sempre acreditara em um poder superior, em um Deus; em várias músicas anteriores, Dylan deixou transparecer religiosidade, notadamente no disco John Wesley Harding (os interessados nas alusões religiosas podem consultar os livros de Scott Marshall e Clinton Heylin). Aliás, Heylin, em seu livro Still on the Road – The Songs of Bob Dylan, disseca as músicas do cantor da década de 70 em diante, e realiza um belo trabalho de busca das menções à Bíblia nelas contidas, tornando-se uma obra indispensável para quem quiser ter uma ideia melhor da mensagem que Bob desejava transmitir.

Após Shot of Love, Dylan desapareceu por um período. Em 1982 não há disco novo, nem shows, e quando ele voltou com Infidels, embora algumas letras tragam ecos da fase cristã, como “Man of Peace” (“Sometimes Satan comes as a man of peace“), o fato de o cantor ter sido visto em sinagogas e no bar mitzvah de um dos filhos com Sarah foram vistos como um retorno ao judaísmo. Entretanto, para Scott Marshall, é mais provável que ele tenha, nos anos seguintes, desenvolvido uma visão mais sincrética da religião, conciliando as fés cristã e judaica, e para provar seu argumento, ele cita diversas entrevistas e declarações do cantor, que dão a entender que Dylan transitava entre as duas religiões. Nos shows, a maioria das músicas da fase cristã desapareceria das setlists de Dylan nos anos seguintes, mas “Gotta Serve Somebody” (diga-se de passagem, a música mais regravada de todas dessa época, com versões feitas por gente como Willie Nelson, Mavis Staples e Etta James) seria apresentada mais de 600 vezes, ao passo que “In the Garden” faria parte de diversos shows importantes e “Every Grain of Sand” seria tocada ao vivo pelo menos uma vez em praticamente todas as turnês posteriores, com destaque para a de 2022 (mais de 70 apresentações).

Shot of Love fez parte das turnês de 1986 e 1987 com Tom Petty & The Heartbreakers”, mas praticamente sumiu dos shows posteriores (muito pouco para a sua “mais perfeita canção”…). Desde que se iniciou a Never Ending Tour, em 1988, músicas do período são “ressuscitadas” (sem trocadilhos) esporadicamente; por exemplo, “Solid Rock” foi apresentada 19 vezes em 2002. Bob Dylan lançou dois álbuns ao vivo oficiais após a fase cristã, mas somente Dylan & The Dead apresenta músicas desse período: “Slow Train” (que foi incluída no repertório dos shows a pedido de Jerry Garcia) e “Gotta Serve Somebody”.

As coletâneas posteriores não realizam um bom trabalho para apresentar a fãs ocasionais o período cristão, mas algumas músicas são incluídas. Biograph, mencionada anteriormente, traz “Slow Train” e “I Believe in You” do primeiro disco cristão, “Solid Rock” de Saved e “Every Grain of Sand” de Shot of Love, bem como “Caribbean Wind” e uma versão ao vivo para “Heart of Mine”, até então inéditas. A coletânea oficial seguinte (Greatest Hits vol. 3) trouxe apenas “Gotta Serve Somebody” e “The Groom’s Still Waiting at the Altar” que, como foi visto, “encontrara lugar” no CD de Shot of Love, deixando de lado Saved. Os dois volumes de The Best of Bob Dylan, lançados em 1997 e 2000, ignoram a fase cristã quase completamente, apresentando apenas “Gotta Serve Somebody” no volume 1 – a mesma música que aparece em The Essential Bob Dylan, CD duplo lançado em 2000. Por fim, Dylan, em 2007, esquece as músicas dessa fase na edição em CD simples, embora apresente “Gotta Serve Somebody”, “Precious Angel” e “The Groom…” na edição tripla Deluxe.

Nos quarenta anos seguintes, Bob Dylan lançaria discos ótimos (“Oh Mercy, Time Out of Mind, Rough and Rowdy Ways), bons (Tempest, Together Through Time, Good as I Been to You), e ruins (Knocked Out Loaded, Down in the Groove, Christmas in the Heart), mas nunca mais gravaria uma sequência tão coesa como sua trilogia cristã (a não ser nos discos da fase Sinatra nos anos 2010 – mas aí as músicas não são dele); tornou-se comum o bardo de Minnesota lançar um disco bom seguido por um mais fraco. Os três álbuns cristãos, entretanto, são uniformemente bons – ainda que Shot of Love deixe um pouco a desejar em relação aos anteriores, possui material superior à maioria das coisas que Bob gravou entre 1985 (quando a produção destruiu Empire Burlesque) e 1997 (quando Time Out of Mind surpreendeu o público e a crítica – acho que só os mais fanáticos imaginavam que ele lançaria um disco tão bom).

Na letra de “I Believe in You”, Dylan assume-se como alguém que se tornou um pária por causa da sua fé. Certamente, quando a música foi gravada em Slow Train Coming, isso ainda não tinha ocorrido, mas no período imediatamente subsequente, ele foi execrado por boa parte da crítica e de seus fãs; a popularidade do músico só se recuperaria com Time Out of Mind. Os amigos judeus se dividiram: alguns não acreditaram que Bob tinha se convertido (a namorada de Leonard Cohen, por exemplo, dizia que o cantor simplesmente afirmava “eu não entendo!” ao falar de seu amigo), outros o criticaram, outros simplesmente ignoraram. O público vaiou vários shows – em entrevista, Dylan comentou sardonicamente que já tinha sido vaiado antes – e o público diminuiu. Trouble No More traz um anúncio de rádio para Saved, em que um cidadão qualquer diz que se desapontou com o show que assistiu, pois queria rock’n’roll, e não gospel – suspeito que ele tenha ido buscar uma cerveja quando “Solid Rock” foi interpretada.

Como este é um texto opinativo, sinto-me à vontade para afirmar que a má fama da trilogia cristã é injustificada, pois as músicas são, na maioria, muito boas, e Dylan exalava sinceridade em suas declarações de fé. É claro, as letras podem incomodar a maioria dos não-cristãos – mas você pode se concentrar na música (até porque nem sempre é fácil acompanhar o que o homem está cantando se você não tiver as letras), e há muitas melodias envolventes nos três álbuns. Slow Train Coming, Saved e Shot of Love não vão te converter – mas pelo menos não vão te perder por aí…

2 comentários sobre “Revisitando o Bob Dylan Cristão [Parte II]

  1. Esse cara é fera. E não to falando do Dylan, mas sim do Marcello. Que baitas textos meu caro, parabéns. Essa fase Dylan está aí para ser descoberta e apreciada por admiradores do bardo, e sem preconceito algum. Como você bem coloca, a questão das letras é algo a parte perto do brilhantismo musical que as canções possuem. Talvez só no período da dupla folk Good As I Been To You / World Gone Wrong +Time Out of Mind o status de brilhantismo que essa fase cristã possui foi igualado (ok, a dupla citada são de revisões, mas são ótimos discos). A fase sinatra acho terrível, assim como a maioria dos lançamentos de Dylan nesse século, mas se ele viesse novamente ao Brasil, eu com certeza ia querer assisti-lo. Parabéns Marcello

  2. Obrigado, Mairon! Realmente esse período da carreira do Dylan ainda está esperando para ser redescoberto. “Trouble No More”, na versão em box set, é para mim o exemplo mais bem acabado do quanto o bardo estava inspirado, mesmo em shows que o público parecia não curtir. As músicas são muito boas, as letras incomodam quem não tiver simpatia alguma pelo cristianismo – mas realmente a força das músicas fala por si só. Eu tive a oportunidade de assistir Bob Dylan ao vivo apenas uma vez, no show de abertura dos Rolling Stones na praça da Apoteose em 1998. Se ele voltar ao Brasil, a gente se encontra na fila de entrada!!

Deixe um comentário para Marcello Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.