Radio Gnome Invisible, do Gong

Radio Gnome Invisible, do Gong

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Por Marco Gaspari (matéria originalmente publicada na revista poeira Zine nº 17)

Receita para se fazer a mais saborosa trilogia do rock espacial.

Ingredientes:

  1. ideais revolucionários
  2. gibis da Marvel
  3. uma porção generosa de anarquia
  4. uma pitada de Frank Zappa
  5. outra de Sun Ra
  6. filosofia riponga
  7. vida em comunidade
  8. surrealismo, esoterismo e outros ismos
  9. humor a gosto

Modo de fazer:

Misture tudo na cabeça de um chef talentoso, de preferência australiano e que atenda pelo nome de Daevid Allen.

Gong foto 1Como todas as grandes receitas, esta surgiu de um incidente. Daevid Allen era então o guitarrista fundador do Soft Machine e estava com a banda há um ano, tendo esta lançado apenas um compacto e feito fama no circuito underground de Londres, quando, na volta de uma viagem do grupo para St. Tropez, teve seu visto de entrada na Inglaterra negado por haver trabalhado ilegalmente no país.

Forçado a permanecer na França, ele se estabelece em Paris, onde vive Gilli Smyth, poetisa, jornalista e sua companheira desde 1964. Durante alguns meses os dois improvisam espetáculos de poesia e música e, como fiéis militantes da contra cultura da época, se embebedam dos humores revolucionários estudantis que culminariam no famoso Maio de 1968.

Por volta dessa época, Allen recruta músicos locais e forma uma banda de jazz-rock para acompanhar o músico Don Cherry numa apresentação no Museu de Arte Moderna de Estocolmo. De volta à Paris a banda se desfaz e o Gong só vem a se formar em 1969 com talentos como Didier Malherbe no sax e Christian Tritsch no baixo. Em  1970, a banda ingressa no selo alternativo BYG para lançar o LP Magick Brother Mystick Sister (creditado apenas a Daevid Allen e Gilli Smyth).

Poucos meses depois ingressa o baterista Pip Pyle e o Gong grava pela Philips a trilha sonora do filme Continental Circus (1971), além de participar como banda de apoio do poeta underground Dashiell Hedayat na gravação do álbum Obsolete (o mais raro de toda a discografia do Gong). Neste meio tempo, já liberado para entrar na Inglaterra, Allen registra nesse país o disco Banana Moon (BYG 1971), com a participação de Robert Wyatt do Soft Machine, Gary Wright do Spooky Tooth e da cantora Maggie Bell.

Bom, agora que você já abriu o apetite com estes antepastos do cardápio Gong, podemos servir a entrada: o LP Camembert Electrique (BYG 1971), o primeiro álbum com todos os ingredientes que fizeram a fama da banda: sax inspirado, tape loops, energia crua, sussurros espaciais e a famosa técnica de glissando da guitarra de Allen (desenvolvida, reza a lenda, depois de observar seu amigo Syd Barrett tocando nos shows do Pink Floyd quando este dividia o palco com o Soft Machine). Um álbum de uma anarquia deliciosa, que a sofisticação e o polimento dos próximos trabalhos iriam de certa forma diminuir.

Gong foto 2

Fã de carteirinha do músico Frank Zappa e, por extensão, de Captain Beefheart, Allen se inspirou na Magic Band deste último e resolveu batizar cada membro da banda com um apelido: Smyth era Shakti Yoni, Malherbe era Bloomdido Bad de Grasse, Trisch era o Submarine Captain, Pip Pyle era The Heap e Allen era tanto Bert Camembert quanto  Dingo Virgin.

Neste espírito começa a surgir a mitologia do grupo ambientada no pacífico Planet Gong, povoado por Radio Gnomes, Pothead Pixies e Octave Doctors. Eram os tempos dos super-heróis dos quadrinhos (principalmente da Marvel) e do cinema e é inspirado neles que Daevid Allen cria o protagonista das próximas aventuras musicais do grupo: Zero the Hero, um viajante terráqueo que se perde no espaço e encontra o Planet Gong, onde aprende os segredos desse novo mundo e é enviado de volta à Terra para difundir seus ensinamentos místicos.

Vamos então começar a degustar o prato principal desta matéria: a trilogia Radio Gnome Invisible, com direito a mexidas na cozinha (a entrada de Steve Hillage nas guitarras e de Tim Blake nos sintetizadores) e no nome do restaurante (sai a BYG e entra a Virgin Records).

113382-a (1)Flying Teapot (Virgin 1973) é o nome da primeira parte da trilogia e introduz, além dos personagens, novos instrumentos usados pelos habitantes do Planeta Gong para viajar (o bule de chá voador) e se comunicar (a rádio gnomo invisível, uma telepática rede pirata de rádio operando cérebro a cérebro diretamente do Planet Gong, através de transmissões via máquina de cristal). Musicalmente falando, o álbum funde opereta, cartum animado e teatro expressionista de uma forma jamais tentada, bebendo na fonte do jazz, hard rock e music-hall.

O som é impressionante, inventivo, colorido, repleto de imaginação surrealista e humor nonsense, centralizado na voz sedutora e espacial de Gilli Smyth e decorado pelos floreios elegantes do saxofone, do sintetizador e das guitarras. Nada é gratuito, da cacofonia fragmentada aos mantras no estilo “banana nirvana mañana”.

“Flying Teapot”, a segunda música do lado A, uma suíte de 12 minutos e 30 segundos, é o ponto alto do LP: um passeio do pote voador pelo espaço sideral que começa com uma cadência tribal e vai ganhando velocidade até transforma-se num jazz rock alimentado por crescentes intervenções de sax, guitarra e bateria e explodir em riffs sincopados e epiléticos. Estamos no espaço, no caos intergalático rarefeito da imaginação de Daevid Allen. E olha que depois desta suíte temos ainda todo o lado B para curtir.

Gong-Angels-EggSeis meses depois, em agosto de 1973, o Gong lança pela Virgin a segunda parte da trilogia, o LP Angels Egg. Novas mudanças acontecem no grupo, entrando o baixista Mike Howlett e o percussionista Pierre Moerlen. A musicalidade se torna mais consistente e madura com uma série de inovações trazidas pelos novos integrantes, principalmente a refinada bateria de Moerlen. Os outros elementos que já então caracterizavam o som do Gong estão todos lá: o sax e a flauta com influências tanto étnicas quanto derivadas do jazz, os solos da guitarra cósmica de Hillage, o glissando de Allen e os gorgeios etéreos de Smyth. Uma sofisticada ironia marca as novas aventuras do herói Zero por entre os sulcos desta negra esfera de vinil furada no meio.

132816-aTido por muitos como a obra prima do Gong, o LP You, a terceira parte da trilogia, é lançado um ano depois, novamente pela Virgin. Não deixa de ser uma reciclagem das obras anteriores, mas o enfoque maior na parte instrumental e a produção mais caprichada fazem a diferença. Talvez careça de novas ideias, porém o grupo está mais afinado do que nunca, explorando todo o seu ecletismo musical em três longas suítes: “The Isle of Everywhere”, “You Never Blow Yr Trip Forever” e “A Sprinkling of Clouds”.

O desgaste do grupo contudo é evidente. Além das idas e vindas de Pierre Moerlen , hesitante entre continuar com o Gong ou abraçar de vez sua paixão pela música clássica, os abandonos temporários de Allen e Smyth e o crescente conflito entre Daevid  e os demais membros da banda ocasionados pelo consumo exagerado de drogas (parece que Daevid resolveu parar de consumir enquanto os outros mandavam ver, principalmente na cocaína). Durante uma excursão pela Inglaterra com a Global Village Trucking Company, a tensão chegou a tal ponto que Allen e Smyth resolveram deixar a banda, refugiando-se em Majorca. Hillage também aproveita o momento para lançar-se numa bem sucedida carreira solo.

Pierre Moerlen, que havia assinado com a Virgin como artista solo, é convidado então pela gravadora a assumir o Gong e, ao lado de Didier Malherbe, dar uma nova direção musical para a banda. Ele aceita e o humor anárquico dos tempos de Allen dá lugar a um sisudo e previsível jazz rock.

Mas isso é uma outra história e eu aproveito para ir parando este texto por aqui mesmo porque, depois de uma refeição tão farta e deliciosa, uma coisa é inevitável: alguém tem que ir lavar a louça. Com licença então.

Gong foto 2

Ouça os três álbum da trilogia na íntegra:

Flying Teapot

Angels Egg 

You 

3 comentários sobre “Radio Gnome Invisible, do Gong

  1. Como é bom ver textos do Marco aqui. Ainda mais um texto tão marcante e fundamental como esse do Gong, do qual li a primeira vez na PZ, mas que aqui ficou ainda mais belo. Muito bom!!! Baita resgate!!

  2. Só pra ressaltar que o disco “Flying Teapot” foi o segundo a ser lançado pela gravadora Virgin em 1973 – o primeiro foi, obviamente, o Mike Oldfield e seu “Tubular Bells”.

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