Iommi – Fused [2005]

Iommi – Fused [2005]

Por Diogo Bizotto

Já li por aí uma frase, creditada a Glenn Hughes, onde o músico dizia que estar cantando no Black Sabbath seria tão absurdo quanto se Prince fosse o vocalista do Sepultura. Se essa frase realmente saiu da boca do baixista e vocalista eu não consegui comprovar, mas certamente ela não corresponde à realidade. Provas para isso não faltam. A amizade de Tony Iommi com Glenn Hughes data da época do gigantesco festival California Jam, ocorrido em abril de 1974, onde suas bandas, Black Sabbath e Deep Purple, foram duas das atrações principais. Ambos atravessavam pontos altos em suas carreiras. O Black Sabbath de Tony vinha do lançamento de um de seus melhores álbuns, o criativo Sabbath Bloody Sabbath (1973), bem sucedido nos dois lados do Atlântico. Glenn Hughes havia deixado o ótimo trio Trapeze para ser baixista e vocalista (junto a David Coverdale) de um Deep Purple reestruturado e com gana de provar seu valor, confirmado no excelente Burn (1974).

O primeiro encontro entre Iommi e Hughes no estúdio não ocorreu nas mesmas condições. Em 1985 a carreira de ambos encontrava-se em crise. Após a saída do vocalista Ian Gillan depois da turnê para Born Again (1983), Tony foi abandonado pelos outros membros do Black Sabbath, incluindo seu parceiro de mais longa data, o baixista Geezer Butler. Após uma época de incertezas, onde alguns vocalistas entraram e saíram do grupo mal registrando sessões de fotos, e uma rápida reunião com os membros originais do Black Sabbath (incluindo o vocalista Ozzy Osbourne e o baterista Bill Ward) para tocar algumas músicas durante o festival beneficente Live Aid, o guitarrista uniu-se a Glenn (no caso, apenas como vocalista) a fim de registrar aquele que, a princípio, seria seu primeiro álbum solo.

Seventh Star.

O baixista e vocalista também passava por uma época complicada. Apesar da recente performance no primeiro álbum do projeto Phenomena, que reunia um cast de grandes músicos dentro do rock pesado, a carreira de Hughes concentrava-se mais nas, hmmm, digamos… carreiras. O vício do músico em cocaína, algo presente desde a época de Deep Purple, encontrava-se no ápice. No entanto, sua performance em estúdio seguia mais que satisfatória, transformando o subestimadíssimo Seventh Star (1986), o álbum gravado ao lado de Iommi, que acabou saindo como “Black Sabbath Featuring Tony Iommi”, em uma audição mais que prazerosa, deixando aflorar o lado mais bluesy do guitarrista, sem abandonar o peso tradicional da banda que é tida como criadora do heavy metal. Apesar do destaque de músicas como “Danger Zone”, “Heart Like a Wheel” e da balada “No Stranger to Love”, que recebeu moderada atenção nas rádios, a turnê com Hughes foi um fiasco. Sua incapacidade para reproduzir o material ao vivo, potencializada por seu vício e por um pugilato com um membro da equipe técnica, que deixou seu nariz e sua garganta em estado ainda pior, fez com que seus serviços fossem dispensados após cinco datas, abrindo espaço para o excelente e até então desconhecido Ray Gillen, dono de timbre e técnica absurdos, que concluiria o giro.

Cada um seguiu sua carreira, Iommi sempre com o Black Sabbath e Hughes participando de diversos projetos, além de iniciar uma carreira solo bastante prolífica e de qualidade, livrando-se de vez de seus vícios. Cientes de que as circunstâncias de sua reunião não haviam sido as melhores na época, ambos se juntaram novamente em 1996, a fim de registrar, segundo os próprios, material que não necessariamente faria parte de um álbum, deixando que sua musicalidade fluísse e se moldasse conforme as canções se encaminhavam, sem um foco inicial. As sessões, abandonadas em favor da iminente reunião da formação clássica do Black Sabbath, se tornou objeto dos bootleggers, e o resultado foi lançado na época, de maneira não oficial, com o nome de Eight Star. Apenas em 2004, com sua bateria regravada por Jimmy Copley (o baterista original, Dave Holland, ex-Judas Priest e ex-Trapeze, havia sido encarcerado sob a acusação de abuso infantil), as oito músicas provenientes das gravações foram lançadas como The 1996 DEP Sessions, mostrando um resultado que moldou perfeitamente canções pesadas, como “Gone” e “Time Is the Healer” com algumas semibaladas, caso de “Don’t Drag the River” e “Fine”.

The 1996 DEP Sessions.

A boa repercussão do lançamento não tardou a fazer com que a dupla unisse forças novamente ainda em 2004, compondo e gravando no final do ano as músicas que fariam parte de Fused, concebido como um disco solo de Iommi, mas creditado igualmente entre ambos. Dessa vez parece ter havido um objetivo, que se não é real, ao menos refletiu-se em minha percepção: Iommi se esforçou, como nunca nos últimos anos, para fazer seu melhor álbum em muito, muito tempo. Desde Mob Rules, disco do Black Sabbath lançado em 1981, o músico não despejava uma profusão tão grande de riffs inspiradíssimos, que se permeiam por composições que fazem jus a essa criatividade toda, cortesia não somente de Iommi e Hughes, mas também do produtor, tecladista e ocasional baixista Bob Marlette, que executa aqui um fantástico trabalho, ajudando a capturar uma sonoridade perfeita de todos os instrumentos, em especial da guitarra, que soa com um peso extra, apesar de, ainda assim, 100% Tony Iommi.

Kenny Aronoff, veterano dos estúdios, cujas mãos trabalharam para artistas tão díspares quanto Alice Cooper, John Mellencamp e Celine Dion, administra a bateria com classe e pegada, provendo a espinha dorsal para que Iommi desça a mão sem dó e Hughes ofereça a performance vocal mais agressiva de sua carreira. Apesar de todas as músicas contarem com crédito para ambos, e de todas as letras serem de autoria do vocalista, fica claro quem é o maestro a reger o direcionamento do álbum. Iommi trabalha aqui como um motor de riffs e bases musculosas, mostrando serviço de uma maneira que não mostrava havia mais de duas décadas, sempre conduzindo o disco com seu instrumento.

Iommi e Hughes armados e prontos.

“Monstruoso” não é o melhor mas é o mais apto adjetivo para definir o riff que abre a primeira faixa, a avassaladora “Dopamine”. Assim como a substância que lhe denomina, a música toma conta de nossas veias e nos estimula a querer mais e mais, tornando-se mais viciante à cada audição. As linhas de baixo acompanham os riffs, tornando ainda mais pesada essa faixa, apesar das fortes doses de melodia empregadas por Glenn Hughes na ponte e no refrão. Mal “Dopamine” acaba e já somos premiados com outra paulada na orelha, “Wasted Again”, iniciada com um pequeno riff que é a cara de Tony Iommi, esbanjando malícia através de seus dedos e colocando um sorriso na cara do ouvinte sedento por som pesado com alma. Hughes faz uso de seus clássicos agudos, mas de uma maneira mais violenta que o habitual, em especial no refrão. O guitarrista sola com a sabedoria de quem à época já beirava os quarenta anos de carreira, encerrando a faixa de maneira apoteótica.

Já falei a respeito da quantidade absurda de bons riffs que constam de Fused? Pois bem, é impossível não me repetir, pois “Saviour of the Real” é mais uma a confirmar o período extremamente frutífero vivido por Iommi durante o processo de gravação do disco. Estranho é não bater cabeça mesmo nas porções onde a guitarra é propositalmente abafada, deixando o magnífico vocal de Hughes se destacar. A lenta “Resolution Song” alterna segmentos mais calmos durante as estrofes e o puro peso sabbathico na ponte e no refrão, quando Hughes canta sobre as bases de Iommi, tal qual nos velhos tempos da banda do guitarrista. Quase como uma continuação da anterior, inclusive possuindo riffs com certa semelhança, “Grace” é outra que poderia ter sido extraída facilmente de um disco como Heaven and Hell (1980) ou Mob Rules (1981). Aos três minutos e nove segundos a música muda de cara com a entrada de um andamento mais acelerado, baseado em mais um absurdo riff paquidérmico, retornando então para seu refrão e encerrando em alto estilo um dos destaques do álbum.

Revisitando a época de The 1996 DEP Sessions, “Deep Inside a Shell” surge como uma semibalada, revelando o lado mais melódico de Iommi, ressaltado pelas perfeitamente postadas linhas vocais de Hughes e por um solo até certo ponto atípico, lembrando o executado em “Lonely Is the Word” (presente em Heaven and Hell), apesar de não possuir a mesma qualidade. Para contrastar, “What You’re Living For” é a música mais rápida do disco, perfeita para empolgar as plateias sedentas por agitar ao som de um heavy metal direto, na veia, sem no entanto soar datada, lembrando um pouco os momentos mais prolíficos do Black Sabbath nos anos 90, mas melhor. Se um dia vier a ser executada ao vivo, é provável que o saldo final se traduza em um público cheio de hematomas!

“Face Your Fear” revolve em torno do vocal de Hughes, enquanto Iommi oferece uma base para que o cantor possa passear com naturalidade, além de uma sessão instrumental no meio da faixa unindo riffs e solo de uma maneira única no disco. Digna de fazer parte não apenas de um disco do Black Sabbath dos anos 70, mas até de um álbum dos suecos do Candlemass, mestres do doom metal, “The Spell” alterna segmentos onde o vocal de Hughes fala mais alto com outros recheados de riffs lentos e pesados. Ouça e perceba a influência de Tony em um sem-número de guitarristas que surgiram nos anos 80 e 90.

Tony Iommi e Glenn Hughes.

Se épicos eram presença constante na discografia do Black Sabbath em sua fase mais clássica, vide músicas como “Heaven and Hell”, “The Sign of the Southern Cross”, “The Writ” e “Hand of Doom”, em Fused a dupla produziu uma canção de magnitude semelhante. “I Go Insane” é a mostra mais evidente da genialidade dos músicos, apta a causar inveja em músicos mais jovens que tentam, geralmente em vão, transformar o heavy metal por eles produzidos em algo grandioso, geralmente falhando, perdidos em arranjos bregas e exagerados. Em “I Go Insane”, o trio Iommi/Hughes/Aronoff produziu, quase que apenas com guitarra, violão, baixo e bateria (e leves intervenções de teclado), uma canção em movimentos distintos, tal qual uma suíte progressiva, iniciando-se mais calma até evoluir para andamentos mais rápidos e extremamente pesados, mesmo com camadas de violão, então retornando ao segmento inicial após um belo solo de Iommi. Crianças, aprendam com quem sabe!

Não hesito em dizer que Fused, além de ser um dos discos mais arrebatadores produzidos na década passada, é o melhor lançamento relacionado ao Black Sabbath em mais de vinte anos. Ozzy Osbourne fez bonito em No More Tears (1991), Dio mandou muito bem com Magica (2000), o próprio Glenn Hughes vem lançando discos de qualidade inquestionável em sequência, em especial From Now On… (1994) e Songs in the Key of Rock (2003), além do próprio Black Sabbath ter feito um ótimo álbum na forma de Dehumanizer (1992). Entretanto, nenhum desses conta com uma sequência tão equilibrada de canções viciantes e uma performance tão avassaladora quanto a do velho mestre Iommi, complementada pela voz de Hughes, que ao invés de envelhecer, parece a cada lançamento ficar mais jovial. Largue de mão aquelas bandas que acham que basta utilizar instrumentos e equipamento vintage e soar forçadamente setentistas para fazer um som próximo ao do mestre, ouça o próprio em Fused, pois aqui ele está no auge de seu talento, e muito bem acompanhado!

Tracklist:

1. Dopamine
2. Wasted Again
3. Saviour of the Real
4. Resolution Song
5. Grace
6. Deep Inside a Shell
7. What You’re Living For
8. Face Your Fear
9. The Spell
10. I Go Insane

8 comentários sobre “Iommi – Fused [2005]

  1. Belíssimo texto Diogo. Dois dos meus maiores ídolos juntos em um álbum que como muito bem narra-se, é excelente. Discordo de ser o melhor lançamento do Sabbath nos últimos 20 anos (o Dehumanizer ainda é melhor que este) e do Hughes tb, que lançou muita coisa boa nos últimos anos, e ao meu ver, melhores que o Fused, mas tu escreveste uma frase que é perfeita: "Crianças, aprendam com quem sabe!"

    Desde os tempos do Sabbath que Iommi se profissionalizou em canções épicas, e "I Go Insane" é mais uma prova que não adianta se ter um monte de distorções se tu não tens a técnica de tocar que Iommi tem

    Abraços

  2. Pois é Mairon. Admito que foi uma afirmação arriscada, mas bem pensada, levando em conta o equilíbrio que permeia todo o track list de "Fused". Admito que os álbuns citados em comparação são todos de excelente qualidade, e que Glenn Hughes em especial vem constituindo uma carreira solo que alterna álbuns bons com ótimos, sem deixar a peteca cair em momento algum, mas seu trabalho em "Fused" junto ao sempre mestre Iommi é avassalador. É uma pena que essas músicas não estejam sendo executadas ao vivo. Pagaria o que fosse necessário para ver o trio Iommi/Hughes/Aronoff estraçalhando tudo ao vivo em faixas como "Dopamine" e "I Go Insane".

  3. Excelente texto. Pra mim, um dos discos mais subestimados da história do rock. Como aconteceu com o Coverdale Page, o disco passou meio batido por não ter acontecido uma tour para promovê-lo. Também acho melhor até que o Dehumanizer. Um verdadeiro clássico desconhecido da maioria!

  4. Ótimo texto, Diogo. Mandou super bem! Faz tempo que vc me fala sobre a carreira-solo do Hughes, e é algo que eu pretendo realmente conhecer, pois a fase do Deep Purple com ele é MUITO boa! Quem sabe eu faça escala nesse disco pra então partir pros solos.

  5. Belo texto Diogo! Iommi solo com colaborações de Hughes é significado de qualidade. Bem que eles poderiam se juntar novamente para um outro álbum…com certeza ninguém iria reclamar…

  6. tb gostei muito deste cd da dupla, mas eu prefiro o DEP sessions..

    acho o fused muito pesado pro hughes, não é ruim, é ótimo, mas não é o estilo do GH..

    prefiro mesmo o DEP..

    ótimo texto..

  7. Eu já acho o contrário, Hughes a todo trabalho "diferente" que se propõe a fazer, mostra o quão versátil pode ser.

    Fused é um dos meus álbuns preferidos da década passada, sem dúvida alguma. E um dos motivos pra isso, é justamente o contraste do vocal "soul/agudo" do Hughes, com o peso da guitarra do Iommi. Existem casos que "agua e óleo" se "fundem", saíndo esse petardo absurdo que é esse álbum!

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