Discos Que Parece Que Só Eu Gosto: Rush – Presto [1989]
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Por Marcelo Freire
Há discos que parecem nascer com um destino ingrato: jamais ocupar o lugar de clássico e, ao mesmo tempo, carregar o peso de sempre serem lembrados como “menores” dentro da discografia de uma grande banda. No caso do Rush, esse papel costuma recair sobre Presto, de 1989. Lançado no limiar entre duas décadas e duas estéticas, o álbum costuma ser apontado como “fraco”, “inexpressivo” ou “desconexo” pelos fãs mais ortodoxos. Pois bem: é justamente dele que venho falar aqui — e com um certo orgulho de quem gosta de defender os esquecidos. Lembro quando o ouvi pela primeira vez: não foi amor à primeira audição, mas uma curiosidade persistente de uma paixão que surgiria. Não tinha os riffs instantaneamente icônicos de Moving Pictures, nem a pompa futurista de 2112. Era outro Rush, mais discreto, quase contido. Mas, quanto mais eu voltava a ele, mais me convencia de que havia ali algo precioso, quase secreto — e que, sim, parecia que só eu enxergava.

Lançado em 17 de novembro de 1989, ou seja, há 36 anos atrás, Presto é, antes de tudo, um disco de transição. Depois da fase marcada pelos sintetizadores dos anos anteriores (Grace Under Pressure de 1984, Power Windows de 1985 e Hold Your Fire de 1987), o trio decidiu voltar a soar mais orgânico, mais centrado na guitarra de Alex Lifeson. Só que essa “volta ao rock” não se deu por um retorno ao peso dos anos 70, mas sim por uma via alternativa, quase tímida, que privilegiou melodias claras, arranjos enxutos e uma certa sobriedade melancólica. Talvez por isso o álbum soe, até hoje, como um objeto estranho dentro do catálogo da banda, estranho e fascinantemente agradável de se ouvir. Muita gente critica justamente esse “meio do caminho”: para uns, não é o Rush clássico; para outros, não tem o brilho pop dos álbuns anteriores. Para mim, no entanto, é um disco que se recusa a agradar expectativas fáceis. Presto é Rush em transição, caminhando, como sempre, sem querer se repetir — e, por isso, Rush em estado puro.

E é exatamente nessa estranheza que reside sua beleza. A faixa de abertura, “Show Don’t Tell”, já dá o recado. O groove é marcado, a guitarra tem aquele brilho metálico típico do fim dos anos 80, mas há uma leveza ali, como se a banda estivesse se divertindo em explorar um espaço novo. Não é à toa que se tornou um dos singles do álbum: ela equilibra muito bem a sofisticação instrumental com uma pegada acessível.
“The Pass”, talvez a música mais emblemática de Presto, merece ser ouvida com atenção quase solene. Neil Peart, em um de seus momentos mais sensíveis, longe da grandiloquência conceitual que muitos associam ao Rush, aborda o tema delicado do suicídio juvenil com rara sensibilidade, fugindo da tentação de soar moralista. A letra (“Todos nós perdemos / Na escuridão / Sonhadores se guiam / Pelas estrelas / Todos nós passamos / Um tempo na sarjeta / Sonhadores recorrem / A olhar para os carros / Vire-se e vire-se e vire-se / Vire-se e supere o limite / Não vire as costas / E bata a porta em mim”) é um consolo e um alerta ao mesmo tempo. Musicalmente, é uma das baladas mais impactantes da banda: Alex constrói texturas de guitarra que são quase etéreas, enquanto Geddy entrega uma das interpretações mais emocionais de sua carreira. Essa canção sozinha já justifica a existência do disco e o coloca em uma prateleira superior.

Mas há outros momentos igualmente reveladores. “Chain Lightning”, segunda faixa do álbum, é um daqueles exemplos de como o Rush sabia escrever rock radiofônico sem abrir mão de inteligência. O refrão tem uma força imediata, mas a letra, com sua metáfora da eletricidade como energia vital e passageira, carrega uma poesia inesperada: “Energia é contagiosa / Entusiasmo se espalha / Ondas respondem à gravitação lunar / Tudo gira numa relação de sincronia // Riso é contagiante / Emoções vão para a minha cabeça / Ventos são movidos pelos planetas em rotação / Fagulhas acendem e espalham novas informações”. Já “Scars” se destaca pelo trabalho rítmico, com Neil incorporando grooves inspirados em música africana — uma experimentação que mostra o quanto o trio nunca deixou de olhar para fora de sua bolha progressiva.
E como não falar do encerramento com “Available Light”? Certamente, a faixa mais subestimada de todo o repertório da banda, até mesmo os fãs mais ardorosos a esquecem. Começa suave, quase como um convite à contemplação, e cresce em intensidade até atingir um clímax de pura beleza melódica. A letra é uma ode àquilo que se pode viver com o que se tem — a “luz disponível”: “Corra com vento e do tempo / Para a música do mar / Todos os quatro ventos juntos / não pode trazer o mundo para mim / Persegui o vento ao redor do mundo / Eu quero olhar para a vida / À luz disponível”. Toda vez que ouço, sinto que a banda entrega ali um manifesto: não precisamos de grandiloquência para tocar fundo. Desde quando ouvi essa música, passei a usar essa metáfora de ver as coisas “à luz disponível”. Obrigado, Rush e, sobretudo, Neil Peart, por serem parte de minha formação.


“Available Light” fecha o disco, portanto, com uma delicadeza quase pop, e ainda assim profundamente Rush — ninguém mais poderia ter escrito aquela progressão instrumental que desemboca em uma catarse contida. Pensando assim, a partir da própria reflexão proposta por “Available Light”, entendo que Presto é um disco que pede tempo e, sem analisá-lo em perspectiva, realmente será aquela obra fácil de se colocar na rabeira da discografia, coisa que até mesmo Alex Lifeson e Geddy Lee já fizeram em entrevistas.
Eu discordo até mesmo deles: o álbum não conquista com riffs imediatos nem com a grandiosidade que marca outras de suas obras. É um álbum que convida o ouvinte a desacelerar, a se demorar nos detalhes: o timbre luminoso da guitarra de Lifeson, o baixo pulsante mas nunca intrusivo de Geddy Lee, as letras que, pela primeira vez em anos, soam mais íntimas do que épicas.
Tecnicamente, o disco também tem suas peculiaridades. Foi o primeiro disco do Rush pela Atlantic Records, produzido por Rupert Hine, conhecido por trabalhos com The Fixx e Howard Jones. Isso ajuda a explicar o ar “limpo” e cristalino da mixagem — que, embora soe datada para alguns, confere ao álbum uma transparência que permite apreciar cada detalhe. É possível perceber com clareza as linhas inventivas de baixo de Geddy, as texturas de guitarra de Alex e até a delicadeza de Neil em pequenos pratos e efeitos de percussão.

Gosto de pensar que Presto é um retrato honesto de uma banda que já não precisava provar nada a ninguém. Em vez de mirar as paradas ou tentar agradar aos fãs mais puristas, o Rush fez um disco de canções — e isso, para um grupo acostumado a conceitos e longas suítes, já era por si só um gesto de coragem. É claro que o disco não tem o status de Permanent Waves ou Signals, mas, justamente por isso, sinto que ele pede uma escuta diferente. É um disco que não se impõe; ele se insinua. Não grita por atenção, mas recompensa quem lhe dedica tempo e afeto. Talvez seja por isso que tantos fãs o subestimem — e talvez também seja por isso que eu o defenda com tanto entusiasmo.
Obviamente, pode ser que Presto nunca figure em listas dos “melhores álbuns do Rush”. Pode ser que muitos passem por ele com certa indiferença. Mas para quem se permite escutá-lo sem expectativas prévias, ele revela um Rush humano, vulnerável, poético. Uma banda que, mesmo no seu disco “menor”, ainda conseguia soar maior do que quase todo mundo. E é por isso que, se parece que só eu gosto de Presto e o considero um dos 5, 6 melhores álbuns do trio, confesso que não me incomodo: algumas preciosidades funcionam melhor quando guardadas como segredos pessoais. E, de vez em quando, compartilhadas em colunas como esta.

Track list
- Show Don’t Tell
- Chain Lightning
- The Pass
- War Paint
- Scars
- Presto
- Superconductor
- Anagram (For Mongo)
- Red Tide
- Hand Over Fist
- Available Light
“Presto” esteve entre meus primeiros discos do Rush, e me lembro que na época gostei bastante, e emprestei-o para uma amiga que não gostava da banda e ela adorou; nesse disco, acho “Superconductor” uma música excelente, gosto bastante de “Show Don’t Tell”, “The Pass”, “Anagram”, e destaco uma que você não menciona no texto e eu adoro: “War Paint”. Por outro lado, “Hand Over Fist” e “Scars” nunca me agradaram muito, mas, enfim, no caso dessa última, é aquele velho caso de “o que seria do vermelho se todos gostassem do amarelo?”. Pretendo revisitar toda a discografia do Rush em sequência para matar a saudade, então vai demorar um pouco para retomar “Presto”, mas ele está na lista das próximas audições!
Muito bom, Marcello! “Superconductor” é das melhores faixas de toda a discografia do Rush! Ao ouvir a discografia do Rush em sequência, “Presto” cresce em qualidade – e olha que os caras não têm um disco ruim!
Eu ia fazer um texto faixa a faixa, mas preferi escrever de modo mais sucinto desta vez, então citei apenas algumas delas…