Datas Especiais: 50 Anos de Lar De Maravilhas

Por Marcelo Freire
50 anos de um delírio sonoro na história do rock brasileiro
Há obras que desafiam a ferrugem do tempo. Não porque resistem a ele, mas porque se tornam parte dele. São bússolas e espelhos: apontam direções e, ao mesmo tempo, nos devolvem o que fomos. Quando revisitadas, não nos oferecem apenas lembranças; oferecem perguntas novas, como se tivessem esperado que o mundo amadurecesse para entendê-las melhor. Lançado em 10 de julho 1975, o álbum Lar de Maravilhas, da banda paulista Casa das Máquinas, representa um dos momentos mais sofisticados e audaciosos tanto do hard rock quanto, principalmente, do rock progressivo brasileiros. Meio século após sua estreia, o disco permanece como uma obra de referência para a compreensão das possibilidades estéticas do gênero no Brasil dos anos 1970, época marcada por efervescência artística, repressão política no auge da Ditadura Militar e uma juventude ávida por experimentações e liberdades. Cinquenta anos depois, essa obra ainda pulsa. Sua forma, sua essência, seu gesto inaugural permanecem. Ela já não é só do tempo em que nasceu — pertence agora ao que virá. Ao longo desta resenha, chamarei bastante a atenção para as mensagens “cifradas” nas letras do álbum. Ao unir arranjos complexos, influências internacionais absorvidas de modo original e um lirismo que oscila entre o onírico e o contestatório, Lar de Maravilhas se consolida como um artefato cultural de sua época — e um marco técnico na discografia nacional.

O Brasil vivia em 1975 o auge do chamado “Milagre econômico”, ao mesmo tempo em que a repressão do regime militar atingia patamares brutais com o assassinato de opositores como Vladimir Herzog em 25 de outubro do mesmo ano. A juventude, especialmente a classe média urbana, buscava refúgios estéticos e filosóficos em expressões contraculturais, nos quais o rock se tornava espaço de fuga, metáfora e denúncia. A banda Casa das Máquinas, formada por músicos experientes e oriundos de diferentes vertentes do cenário musical, absorveu esse clima de inquietação e entregou um álbum que dialogava diretamente com as tendências internacionais do rock progressivo, psicodélico e sinfônico, sem abrir mão de uma identidade própria e brasileira.
A solidez de Lar de Maravilhas está diretamente ligada à formação do grupo naquele momento. Figura central do Casa das Máquinas, Netinho começou sua carreira como baterista do grupo Os Incríveis, e sempre se destacou pela precisão técnica e criatividade rítmica. Netinho foi o grande articulador da virada sonora da banda em direção ao rock progressivo, além de ter sido o produtor do álbum. Outro destaque do disco é a presença de Mário Testoni Júnior nos teclados. Contratado para tocar no Lar de Maravilhas, Testoni trouxe o universo progressivo à banda, com Hammond, Moog, Mellotron, piano e clavinete, tornando-se referência no rock nacional ao inserir texturas sinfônicas e psicodélicas. Mesmo sem participar de nenhuma das composições, seus arranjos para os teclados foram fundamentais para a sonoridade do álbum. Por fim, Luís Carlos Catalau de Souza, o Catalau, foi convidado por Netinho para ser letrista da banda. Responsável por parte significativa das letras do álbum, Catalau — à época com 16 anos —, foi também conhecido por sua carreira como vocalista da própria Casa das Máquinas em anos posteriores, em seguida assume os vocais da banda Golpe de Estado e, atualmente, é pastor. Em Lar de Maravilhas, atuou tanto como letrista quanto como parceiro criativo. Suas letras equilibram crítica existencial, imaginação cósmica e lirismo místico, com forte influência da contracultura, da ficção científica e de simbolismos ligados à liberdade e transcendência. Em canções como “Liberdade Espacial”, “Vou Morar no Ar” e “Astralização”, Catalau dá voz a uma juventude que sonhava escapar da gravidade repressora do regime, apostando em metáforas de voo, espaço e dissolução dos limites terrenos. No entanto, é graças à produção de Netinho, que estabelece um timbre pesado para os instrumentos, que o disco soa ótimo de se ouvir até os dias de hoje — aliás, Netinho compra todos os equipamentos do espólio da banda Os Incríveis, que eram de alto nível para nossas paragens.

Do ponto de vista técnico, Lar de Maravilhas impressiona, portanto, por sua produção refinada e pela coesão instrumental que rivaliza com gravações contemporâneas de bandas como Genesis, Gentle Giant e especialmente o Yes, cuja influência é particularmente perceptível nos arranjos em compasso alternado, nos vocais polifônicos e na articulação de seções instrumentais extensas. Faixas como “Lar das Maravilhas” e “Vale Verde” demonstram essa herança ao alternar climas suaves e introspectivos com explosões de virtuosismo, característica típica do Yes em discos como Close to the Edge (1972) e Relayer (1974). A fluidez entre as partes, os diálogos entre baixo e guitarra e os solos intrincados reforçam essa aproximação com a escola sinfônica britânica. A gravação, realizada nos estúdios Vice-Versa, em São Paulo, e lançada pela gravadora Som Livre, também merece destaque. Para os padrões brasileiros da década de 1970, a qualidade sonora do disco é notável. A mixagem evidencia o cuidado com a espacialização dos instrumentos, especialmente nos momentos instrumentais mais densos, criando atmosferas imersivas que são parte fundamental da experiência progressiva.
A faixa de abertura, “Vou morar no ar”, já antecipa o clima etéreo e escapista do disco. A letra, que fala “Abra que eu quero ver / Esse céu azul / Abra que eu quero olhar / Esse mar do sul // Abra que eu quero voar / O mais alto que eu puder / Um dia eu vou sair / Vou morar no ar”, sugere tanto um desejo de transcendência quanto uma crítica à dureza do cotidiano materialista no qual o eu-lírico está preso – daí ele pedir que “abra”. A levada rítmica remete ao Pink Floyd de Dark Side of the Moon, e o uso de delay e reverberação na guitarra contribuem para o efeito de suspensão e devaneio. No álbum seguinte, Casa de Rock, lançado em dezembro de 1976, há uma música irmã, “Casa de Rock”, que é uma afirmação de pertencimento, um manifesto da própria banda em favor de um modo de vida alternativo e libertário. Musicalmente, flerta com o hard rock de Deep Purple e Uriah Heep, em especial no uso de riffs pesados e órgãos distorcidos. A letra, que celebra a “casa de rock” como refúgio, pode ser lida também como alegoria de resistência cultural: “Esta é a casa do tal rock’n’roll / É o rock que casa com a casa / Este é o ninho do passarinho / Que já nasce voando sem asa / Este é o santo remédio pro seu cansaço / É o alimento do nosso pedaço”.

No centro, em primeiro plano: Aroldo Santarosa (vocal, guitarra e violão).
Ao fundo, Testoni (teclados)Atrás de Aroldo, da esquerda para a direita:
Cargê (vocal e baixo).
Piska (vocal, guitarra e violão).
Pique Riverte (piano, órgão, saxofone e flauta).
“Vale Verde”, lírica e bucólica, retoma o ideal hippie da comunhão com a natureza. A melodia remete ao folk psicodélico dos Moody Blues e ao lado mais contemplativo do Som Imaginário. A letra propõe um retorno à simplicidade, sugerindo que “lá no vale tudo é mais azul” — metáfora para um lugar utópico de harmonia, paz e autenticidade. A faixa contrasta com a rigidez da cidade moderna e da opressão política pois, mais uma vez, o desejo é de sair, de voar, de libertar-se: “Não quero que reflita em meu rosto / Sombras, cinzas, impurezas desse ar / Olho o céu e o vejo mais escuro / Quero vê-lo brilhar / Como os raios coloridos deste Sol // Essa liberdade que nunca chega / De portas trancadas, preciso sair / Eu quero sentar num banco de um jardim / Pensando em poder achar um mundo assim / Com flores astrais ao redor de mim / Quero um vale verde pra que eu possa respirar enfim”. Compare-a com “Vou morar no ar” — e atente aos versos que são dois lados da mesma moeda: “Essa liberdade que nunca chega / De portas trancadas, preciso sair” e “Abra que eu quero voar / O mais alto que eu puder / Um dia eu vou sair”. Em tempos de repressão política e censura, a mensagem aqui está dada…
“Astralização” se destaca tanto pela inventividade da letra quanto pela psicodelia na construção musical. Trata-se de uma ode ao universo interior, uma espécie de viagem mística: “Tento respirar andando em busca de terra / Mais que a terra quero a serra / Que com mais terra berra / Pra que tornemos a ela / Misturando tudo / Me envolvendo com estrelas / Viajando, descolando uma transação”. Mais uma vez, temos na letra a busca, o desconforto de onde se está e a tentativa de ir além do que se vive. De alienados, não tinham nada, pelo contrário. Ouvi-la é ver como seria o som do Yes se os britânicos fossem do litoral paulista. Os solos de teclado nessa faixa também evidenciam a influência do jazz-rock e do krautrock, especialmente de bandas como Nektar e Eloy. A ambientação sonora cria uma sensação de descolamento temporal e espacial, muito próxima das experiências sensoriais buscadas pela juventude alternativa da época.

“Liberdade Espacial” é, sem dúvida, a joia mais brilhante do álbum — uma síntese quase perfeita entre a estética psicodélica, o lirismo progressivo e a crítica velada ao confinamento ideológico da época. A canção evoca a ideia de uma libertação cósmica, onde o espaço não é apenas geográfico ou astronômico, mas simbólico: o lugar onde se pode existir sem amarras. A linha melódica flutua sobre um arranjo denso de teclados e guitarras, com passagens que alternam tensão e alívio, criando uma narrativa musical que acompanha a jornada da letra. Ao cantar “Sinta a liberdade espacial” e “Faça o que você sentir / Porque nossa missão é viver / Não entre numa em só desistir, deixar de ser apenas você”, a banda se apropria de uma metáfora poderosa para o desejo de liberdade individual e coletiva — algo especialmente significativo no contexto de censura e repressão em que o disco foi concebido. As metáforas de “lua astral”, “força espiritual” e o convite existencial para viver de modo sensível e intuitivo, lidas 50 anos depois, nos fazem refletir sobre o quão pesados eram aqueles anos de chumbo. A influência do Yes volta a se fazer notar nos vocais, no baixo e na bateria e em camadas e na estrutura em espiral da faixa, que não se contenta com o formato tradicional da canção, mas explora suas possibilidades até o limite.

Embora parte da crítica à época tenha acusado a banda de “alienada”, por investir em letras fantasiosas e de teor escapista, uma leitura mais atenta, como a que proponho, revela camadas de ambiguidades. Como proponho no início do texto, precisamos do distanciamento para relermos esse disco e entende-lo no seu potencial. O lar do título é um espaço idealizado, de liberdade, sonhos e introspecção, mas sua construção também denuncia a ausência dessas condições na realidade opressora da ditadura. Assim, Lar de maravilhas se inscreve no rol das obras que, ao optar pela metáfora e pelo delírio poético, articulam resistência de modo indireto (até porque de modo indireto era inviável diante da censura e repressão impostas pelos militares) — uma característica também presente em discos contemporâneos de Mutantes, Secos & Molhados e do Clube da Esquina. A recorrência de imagens como o voo, o ar, o espaço, os vales e os corpos flutuantes não é mero devaneio lírico, mas uma tentativa simbólica de construir territórios outros, alternativos à normatividade do mundo concreto e pesado que viviam em 1975. É nessa dimensão simbólica que o disco se afirma como crítica poética da realidade. Deixarei a faixa “Cilindro cônico” guardada para uma resenha especial na seção “Maravilhas do mundo prog”, portanto não a mencionarei aqui conforme a linha que adotei para o estudo do álbum, já que, ao término deste texto, percebi que somente ela consumiu 2 das 6 laudas totais (sim, sou do tempo da lauda…)!
Lar de maravilhas permanece, sem sombra de dúvidas, atual e necessário. Seja pelo seu valor musical, técnico e artístico, seja por sua capacidade de condensar um espírito de época em forma de som e palavras, o disco da Casa das Máquinas é um testemunho do potencial do rock brasileiro em articular sofisticação estética, crítica social, contracultura e inovação sonora. Muito além de um exercício de virtuosismo, é uma obra coletiva de imaginação política, de fuga e de sonho — sobretudo fuga, pois não dá para dissociar a obra de arte de seu momento de produção e recepção: a banda Casa das Máquinas foi formada em 1973 por Netinho como uma forma de escapar de tudo o que estava acontecendo, já que o fim de Os Incríveis, em 1972, mesmo com todo o sucesso que tinham, se deu devido às pressões de imprensa, empresários e gravadora resultante do sucesso da canção “Eu te amo, meu Brasil”, considerada como uma apologia ao regime militar. A partir daí, o baterista comprou toda a estrutura de ensaio e apresentações de sua antiga banda e juntou uma nova para realizar uma turnê pelo país tocando clássicos do rock and roll.
Dos três álbuns essenciais e históricos que a banda gravou, somente em Lar de Maravilhas eles exploraram todas essas possibilidades e desejos ao máximo. No primeiro álbum, Casa das Máquinas (1974), a banda seguia tentando encontrar o seu som e se desvencilhar do que foram com Os Incríveis, portanto o álbum alterna entre canções mais pesadas, outras com pegada mais MPB e alguns momentos mais suaves — só a música de abertura, “A Natureza”, já vale o álbum, pois possui um dos melhores riffs de guitarra da história do rock nacional. Outros momentos rock and roll, a cargo da direção criativa de Netinho (sempre ele) estão em “Trem da verdade”, “Cantem este som com a gente” e “Sanduíche de queijo”, que fecha o trabalho. A banda está entre Rolling Stones e a inocência da Jovem Guarda, com um tempero da psicodelia de Os Mutantes em alguns momentos do disco, no qual as composições são, em sua maioria, da dupla Aroldo Santarosa e Carlos Geraldo, o Cargê, ainda que Netinho fosse o líder da banda. Já no terceiro álbum, Casa de Rock, gravado no ano seguinte, 1976, o grupo consegue a melhor qualidade de gravação, graças ao entrosamento dos membros restantes (Aroldo e Cargê saem da banda) e, sobretudo, graças a Don Lewis, que era o técnico de gravação que veio ao Brasil com Alice Cooper em 1974, num dos primeiros shows internacionais de grande porte que tivemos no Brasil, e por aqui ficou. Lewis incentivou a banda a gravar como tocavam ao vivo: com todos os instrumentos tocados juntos, ao mesmo tempo. O disco tem a sonoridade mais próxima do rock e do hard rock, deixando de lado o progressivo por conta da pressão da gravadora, e também as letras sofrem com isso, deixando de lado a religiosidade e espiritualidade dos primeiros discos, porém mantendo a cultura hippie presente.

Em 1977, Marinho Testoni também sai da banda, e passa a integrar o grupo Pholhas, e logo após, em abril de 1978, a banda põe fim, de modo triste e sombrio, às suas atividades, após um incidente envolvendo dois integrantes, Piska e Simbas, e a morte do cinegrafista Lucínio de Faria, da Rede Record. O processo decorrente deste incidente foi um fator determinante para o fim da banda, pois na imprensa da época noticiava-se a culpa e o julgamento da banda, e não dos integrantes. Dessa forma, Lar de maravilhas é uma obra sem precedentes e sem subsequência e que, longe de envelhecer, amadureceu — hoje, 50 anos após o seu lançamento, vivemos outros momentos e ela está pronta para ser redescoberta por novas gerações como um tesouro da música nacional e um dos maiores discos do rock brasileiro — mas isso é papo para outro momento, talvez daqui a 50 anos, quem sabe?

Track list
- Vou Morar No Ar
- Lar De Maravilhas
- Liberdade Espacial
- Astralização
- Cilindro Cônico
- Vale Verde
- Raios De Lua
- Epidemia De Rock
- O Sol / Reflexo Ativo