1968: o ano em que nasceu, viveu e morreu o som de Boston

1968: o ano em que nasceu, viveu e morreu o som de Boston

Por Marco Gaspari

Vindo de Nova Iorque, Alan Lorber chegou a Boston em setembro de 1967. Sua fama o precedia, já que era um bem sucedido arranjador e produtor de discos, além de compositor de trilhas sonoras para o cinema e a televisão e responsável pelos arranjos musicais de muitos dos principais top-hits da época. O seu currículo estampava a respeitável cifra de mais de 50 milhões de dólares provenientes da venda de discos de artistas com os quais trabalhara até então.

Lorber se estabelecera na cidade com uma idéia na cabeça: transformar Boston em um mercado chave para o desenvolvimento de novos artistas, uma espécie de opção costa leste para o West Coast Sound de Los Angeles e São Francisco. E a cidade tinha vários aspectos positivos para que essa idéia se materializasse. Primeiro que Boston ficava próxima de Nova Iorque, que na época era o coração da indústria da música nos EUA, com os melhores estúdios, casas de show, profissionais, imprensa, promoção, agentes e empresários. Segundo que Boston já possuía a fama de revelar talentos para a cena folk e tinha pelo menos meia dúzia de revistas dedicadas exclusivamente à música. E terceiro, e mais importante de tudo, que Boston tinha um mercado consumidor flutuante de mais de 250 mil estudantes que freqüentavam suas universidades.

O plano de Lorber nada mais era do que puro marketing, ancorado em muita propaganda e cobertura da imprensa. E acabou seduzindo a MGM (que já trabalhara com artistas produzidos por ele e que se fixara em Boston justamente à procura de uma nova e menos concorrida São Francisco) para ser a major que colocaria o empreendimento nos trilhos. Durante os meses de outubro, novembro e dezembro, Lorber produziu a estreia em vinil do Ultimate Spinach e do Orpheus: dois dos três grupos que assinaram com a MGM e dariam o pontapé inicial ao movimento. O terceiro grupo, The Beacon Street Union, foi produzido por Wes Farren. Os três seriam lançados como um pacote no começo de 1968.

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O anúncio de página dupla que inaugurou o movimento

Nesse meio tempo, Lorber já havia anunciado seu plano com estardalhaço nas páginas da Billboard, Cash Box, Variety e Record World. Um anúncio de página dupla estampando o pretensioso título “The SoundHeardRound The World” deu seu início oficial que arregimentou clubes da cidade, como o Boston Tea Party, considerado a incubadora do Som de Boston, DJs das rádios locais, a imprensa musical da cidade, promotores de eventos e fez surgir novos combos que assinaram com outras gravadoras, todos querendo embarcar nesse trem da alegria. O “Bosstown Sound” era o novo hype, a bandeira de um grupo de artistas da costa leste voltados para a mais recente Meca do rock: Boston.

No entanto, nem bem o mês de janeiro daquele ano havia terminado e a coisa começou a feder. Uma matéria publicada na Newsweek de 29 de janeiro conseguiu a proeza de exagerar tanto nas virtudes do recente Boston Sound em comparação com o som da Califórnia que acabou por despertar o ceticismo da imprensa roqueira nacional, principalmente a da costa oeste, que estava começando a se tornar uma força importante na indústria musical dos EUA.

Estava na cara que o que a MGM e Alan Lorber estavam tentando fazer era capitalizar o sucesso que o som de São Francisco havia obtido no ano anterior. Procurando uma nova São Francisco, a MGM achou Boston. Mas como escreveu o critico Paul Williams nas páginas da edição de maio de 68 da Crawdaddy, uma das primeiras revistas de rock americanas com circulação nacional e fundada em Boston, as bandas da cidade não tinham a “unidade espiritual” que havia caracterizado a cena roqueira de São Francisco. E concluía: “não existe nem mesmo uma cena de rock em Boston”.

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Ultimate Spinach

No mês seguinte foi a vez da Rolling Stone gastar sua munição, usando como arma a pena do bostoniano John Landau, que havia inclusive tocado guitarra recentemente numa banda da cidade chamada Jelly Roll. Dissecando os recentes lançamentos do Boston Sound da MGM, escreveu que o Ultimate Spinach era “no máximo, pretensioso” e que o disco do The Beacon Street Union incluía “material original inepto cantado e produzido de forma muito pobre”. Até mesmo uma parte da imprensa musical da cidade deixou de lado o deslumbramento e começou a criticar: a revista Avatar, por exemplo, chamou o Boston Soundde derivativo, perdido em honestidade e originalidade e até mesmo fictício. A Fusion foi outra revista que de uma hora para outra assumiu uma postura mais neutra sem, no entanto, deixar de acusar o Ultimate Spinach de fracassar na expectativa criada pela publicidade da MGM.

O que poderia ser apenas uma bola de neve rapidamente se transformou em uma avalanche já que a Rolling Stone passou sistematicamente a atacar o Bosstown Sound. E nunca é demais lembrar que a RS era uma empresa de São Francisco totalmente comprometida com o West Coast Sound, enquanto que Boston estava tentando criar oEast Coast Sound.  O mais bizarro é que em um dos famosos artigos anti-Boston da revista, Mike Curb, um cantor chapa branca que atuava também na área executiva de gravadoras e tinha aspirações políticas (foi governador da Califórnia anos depois), criando a famigerada campanha “Dumpthe Doppers”, sai com todas as pedras nas mãos contra essa nova cena, com frases do tipo “Boston é bobagem” e “sua música é lixo”. Naquele contexto até que não era nada demais, mas acontece que Mike Curbera o presidente nacional da MGM, empossado assim que a companhia começou a promover o Bosstown Sound e suas palavras acabaram com qualquer suporte que as bandas de Boston poderiam ter de sua gravadora. Curb começou então sua campanha para livrar a empresa dos artistas que faziam apologia às drogas, como Velvet Underground, Frank Zappa (que logo criou a Byzarre Records) e todo aquele bando que levantou a bandeira do Boston Sound. Alan Lorber diria mais tarde que, apesar de todo esse discurso anti-drogas e anti-Boston, Mike Curb, com seus apenas 25 anos e cabelinho Beatle, pediu para ele se empenhar por mais material a ser lançado por Orpheus e Ultimate Spinach. Isso uma semana após suas palavras serem publicadas na Rolling Stone.

The Beacon Street Union
The Beacon Street Union

A verdade é que as bandas estavam cumprindo seu papel. O criticado Ultimate Spinach, mesmo sem ter muita reputação em Boston, estava ganhando cada vez mais audiência nacional e seu disco de estréia ficou 24 semanas na parada da Billboard, alcançando o 34º lugar e faturando em torno de um milhão de dólares. A banda excursionou por todo o país e tocou até mesmo no Fillmore de São Francisco, dividindo o palco com o Big Brother and The Holding Co., Electric Flag, Youngbloods e  Butterfield Blues Band. O Orpheus teve seu álbum de estréia lançado alguns meses após ter sido produzido, esperando por toda a publicidade da MGM e, apesar de seus poucos 25 minutos, faturou um quase-grande hit com a música “I Can’t Find The Time (To Tell You)”. E quando finalmente saiu o disco do The Beacon Street Union, em março, pouco antes do banquete do Bosstown Sound começar a produzir gases, ele se revelou um dos mais interessantes de toda a psicodelia americana.

Musicalmente, o som de Boston era um pastiche de influências: havia folk, psicodelia, hard rock, garage, jazz e até clássico, tudo embalado em papel de presente pop. Os clubes da cidade, como o Boston Tea Party, eram o caldeirão de onde as gravadoras regionais e as majors nacionais se serviam dos talentos locais, muitos deles amadores sem nenhuma experiência anterior. O hype promovido pela MGM estava totalmente fora de sincronia com a realidade do que acontecia nos clubes.

Orpheus
Orpheus

Mas não é exagero nenhum especular que o Bosstown Sound de certa forma serviu de pivô para uma batalha muito mais ambiciosa: a da imprensa underground, liderada pela Rolling Stone, contra a grande imprensa. Quase que um rito de passagem que acabou por sedimentar o poder e a influência que essas publicações musicaisanti-stablishment teriam nos anos seguintes. Ao afirmarem e insistirem messianicamente que o Som de Boston não passava de lixo fabricado, a Rolling Stone e companhia conseguiram, em pouco mais de um ano, sepultar em vergonha todos os envolvidos no movimento. Dezenas de bandas sumiram no anonimato, dúzias de discos não foram nem convenientemente julgados e uma boa quantidade de jovens músicos desiludidos e desgastados preferiram deixar a carreira musical.

Ironicamente, vinte anos depois, na edição de 1988 de sua enciclopédia do rock, Rock of Ages, a Rolling Stones resolveu assumir sua mea-culpa e absolver o Bosstown Sound com frases do tipo: “Com uma maciça reação anti-Boston por parte de toda a crítica, foi muito mais fácil acabar com o Ultimate Spinach e as outras bandas de Boston do que gostar delas”. Depois do advento do CD e com a reedição crítica de muitos dos discos esquecidos no limbo, o Boston Sound foi finalmente ouvido, julgado e aprovado.

Obs – Para aqueles que quiserem conhecer mais a fundo o Bosstown Sound, apresentdo uma seleção com pelo menos uma dezena de bandas neste “Consultoria Apresenta”. É só clicar e curtir.

Um comentário em “1968: o ano em que nasceu, viveu e morreu o som de Boston

  1. O som que anda rolando agora aqui na minha casinha de zelador do asilo é a bandaça do Earth Opera. Valeu Marco, por mais uma excelente resenha, e mais uma fantástica indicação.

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